Em Sarajevo ou em Chicago o trágico está presente, à espreita, mas atrás dele há sempre um rastro absurdo de comédia.
Durante anos uma mulher vive sob a mira de um atirador de elite. Ele aponta na direção de seu quarto e a tem sob vigilância constante. Jamais descansa. Ocasionalmente dispara contra a mulher e os projéteis sobrevoam sua cabeça, esfacelando memórias na parede de alvenaria perfurada ao longo da eternidade dos anos do cerco a Sarajevo. Ela suspira aliviada e agradece: ele atira para alertá-la que tem o poder para lhe tirar a vida, mas opta por não fazê-lo – o atirador é um homem bom.
Essa história é contada no texto “As vidas de um flâneur”, de O livro das minhas vidas, coletânea de não-ficção de Aleksandar Hemon, hoje radicado nos Estados Unidos mas nascido na República Socialista da Iugoslávia. O autor bósnio reúne textos publicados em diversos veículos ao longo de sua carreira e conta a experiência de ter a vida cindida ao meio por duas cidades: a Sarajevo abandonada pela guerra civil, e Chicago, que o acolheu e o ajudou a se transformar no escritor que é.
Tendo se mudado para os Estados Unidos já com certa idade e aprendido o idioma inglês tardiamente, Aleksandar Hemon é frequentemente comparado a Vladimir Nabokov. Mas a semelhança não termina aí. Como ele, Hemon surpreendeu ao escolher usar o inglês como escritor, demonstrando o mesmo domínio sobre a linguagem que os autores nativos. Em seus livros são frequentes os trocadilhos e jogos de palavras. Também o humor está presente: “escrevo histórias tristes para pessoas bem-humoradas”, diz. É verdade: mesmo quando narra uma realidade hedionda, Hemon não deixa de lado a ironia e o humor de quem aprendeu que o riso é uma das formas mais maduras de superação.
O escritor viveu a primeira parte de sua vida em Sarajevo e, verdade seja dita, nunca quis sair da cidade. Viu o governo socialista ruir diante de seus olhos e a promessa de uma nova vida surgir e morrer antes do nascimento. A Guerra Civil Iugoslava trouxe consigo o maior cerco militar da era moderna – Sarajevo foi cercada pelos sérvios durante quase quatro anos. Na ocasião, Hemon já havia partido da Bósnia para os EUA para um intercâmbio de um mês que se prolongou para uma inesperada estadia definitiva, alheio que estava às possibilidades de um conflito em larga escala. Foi através dos noticiários americanos que viu as tensões explodirem no mais mortífero confronto desde a Segunda Guerra Mundial. Acompanhou angustiado e distante o suplício de seus familiares e amigos até que alguns deles também pudessem se asilar em outros países.
Impedido de voltar ao seu lar na Bósnia, Aleksandar Hemon aos poucos começou a ser adotado por Chicago e pelo estilo de vida americano. Ganhou peso e teve de abandonar alguns hábitos do lugar de origem. Em Chicago foi confrontado com uma nova subjetividade, individualista e privada, em detrimento da coletividade de Sarajevo, onde todos se conheciam e não havia espaço para a privacidade. Acompanhado por seu deslocamento geográfico e pela sensação de despertencimento, Hemon observou de outro continente a fragmentação de sua pátria. Chicago, com sua cota de subempregos e multiplicidade étnica, acolheu o autor, que deve aos imigrantes e refugiados que encontrou a sua adaptação.
Um desses imigrantes foi Alemão, um nigeriano que dedicava todos os seus finais de semana a promover partidas de futebol no parque. Chegava com equipamentos e uniformes e os distribuía entre as equipes compostas essencialmente por estrangeiros: mexicanos, hondurenhos, salvadorenhos, brasileiros, somalis, peruanos, chilenos, colombianos, jamaicanos, etíopes, senegaleses, franceses, espanhóis, ganeses, camaroneses, argelinos, ucranianos, russos, vietnamitas, marroquinos, romenos, búlgaros, bósnios, coreanos. Eles agradeciam ignorantes dos motivos por trás da benevolência de Alemão. Quando perguntado, o nigeriano dizia apenas que agia em nome de Deus, para reunir as pessoas e espalhar Seu amor. Essa era sua missão e o futebol uma ferramenta para encontrar a vida eterna. Apaixonado por futebol, Aleksandar Hemon deve a essas partidas o seu primeiro círculo de relações em solo americano.
Outras tragédias acompanham a trajetória do autor, tragédias que não dizem respeito a política, guerras ou etnias. A maior delas é a de sua filha Isabel. “Respirando em meu peito para todo o sempre”, diz a dedicatória que abre a coletânea. O livro das minhas vidas começa e termina com Isabel: o texto final, O aquário, conta a história da filha diagnosticada com um tumor teratóide aos nove meses. Implacável, o câncer abrevia a curta vida de Isabel. Diferente do atirador de Sarajevo que agredia sem ser letal, o teratóide do tamanho de uma bola de golfe invade o corpo da pequena com uma precisão capaz de fazer afronta ao Exército Popular da Iugoslávia. Para Hemon, é a maior de suas perdas – maior ainda que qualquer guerra civil.
O livro das minhas vidas é um livro triste, mas também carregado de humor e sensibilidade. Em Sarajevo ou em Chicago o trágico está presente, à espreita, mas atrás dele há sempre um rastro absurdo de comédia. Em linguagem confessional e intimista, o autor convida o leitor a participar da montagem de seu quebra-cabeça de recordações. Revela-nos uma parte de sua biografia onde não há espaço para nostalgias, mas sim o respeito pela memória: as paredes cravejadas pelas balas do atirador sérvio são, na verdade, as paredes do lar onde Hemon e seus familiares costumavam passar o Natal. A lembrança é triste, mas logo em seguida o autor faz questão de frisar: é motivo de orgulho para muitos bósnios que boa parte da gordura do traseiro de Elizabeth Taylor foi adquirida graças às tortas de carne e creme de leite azedo típicas de Sarajevo. Melhor do que apontar para a desgraça alheia e rir é se olhar no espelho com a coragem de perceber as ironias do próprio destino.
::: O livro das minhas vidas :::
::: Aleksandar Hemon (trad. Geni Hirata) :::
::: Rocco, 2013, 224 páginas :::