A guerra interior de Kevin Powers

Se há uma guerra a ser contada neste romance, é uma guerra interior. O único inimigo que o protagonista não pôde assassinar foi a própria culpa.

"Pássaros amarelos", de Kevin Powers

“Pássaros amarelos”, de Kevin Powers

“O diabo mora ao lado, nunca em minha casa”.

Essa imagem pode ser extrapolada para além das fronteiras continentais quando irrompe um conflito armado da natureza da Guerra do Iraque. O discurso patriota diz “o mal está do outro lado”, e a ele seguem os discursos políticos, midiáticos, a propaganda, o boca a boca. Se o mal está em outro lugar, o bem somos nós. Assim, é fácil combater um inimigo que chafurda na própria lama moral, o assassinato está justificado. O soldado que hesita não mata e corre o risco de ser morto – nesse sentido toda guerra é maniqueísta. Nos EUA pós-11 de Setembro nasce uma nova forma de xenofobia, que transforma todo um credo em terrorismo quando identifica o muçulmano como habitante dessa lama. Kevin Powers dá voz a esse discurso quando coloca palavras na boca do coronel diante do pelotão em Pássaros amarelos, seu romance de estreia:

“Rapazes”, começou ele, “em breve vocês serão chamados a atos de grande violência pela causa do bem”. “Está é a terra em que Jonas está sepultado, onde ele suplicou pela chegada da justiça de Deus”. Uma pausa, e prosseguiu: “Nós somos essa justiça.”

Essa breve passagem condensa toda a política que há em Pássaros amarelos. Mas, incomum em livros de guerra, ela apenas tangencia a narrativa de John Bartle. O slogan nacionalista não tem efeito sobre ele, e é justamente o sentimento inominável derivado do pensamento “o que estou fazendo aqui?” que permeia toda a obra. Pássaros amarelos é uma história de indivíduos e não de grupos, onde os dilemas dos soldados são expostos com a mesma obscuridade funesta das narrativas tradicionais de guerra.

Bartle não quer ser nenhum justiceiro. Sensível, amante da poesia e tido como “veadinho” por seus inimigos, foi à guerra para ser homem e para se emancipar do jugo familiar. Se o lar materno é uma grande cela onde o filho está constantemente sob o olhar vigilante da mãe, o Iraque é uma solitária a céu aberto, interminável como os planícies de Nínive. Na cidade de Al Tafar, emoldurada por montanhas, desertos e pelo fluxo eterno do rio Tigre, todas as solidões tomam proporções monolíticas. John Bartle não consegue se conectar com os soldados ao seu redor, exceto Daniel Murphy e Sterling, um homem nascido para guerrear, objeto ao mesmo tempo de admiração e ódio por parte dos subalternos. Bartle promete à mãe de Murphy que o trará de volta em segurança – uma promessa infundada e estúpida que surge de algum lugar sem nome e ganha vida em seus lábios.

Sabemos desde muito cedo que Pássaros amarelos é um ritual catártico para que John Bartle possa expiar a culpa pela promessa quebrada. Com sua narrativa poética e emotiva, Kevin Powers reafirma a velha máxima de que todo homem é um campo de batalha e algumas dessas batalhas estão perdidas desde sempre. Se há uma guerra a ser contada em Pássaros amarelos é a história de uma guerra interior. O único inimigo que John Bartle não pôde assassinar foi a própria culpa, inimigo íntimo que o persegue tanto na imensidão árida quanto no conforto do seu lar nos Estados Unidos.

Em Pássaros amarelos não enxergamos a realidade com clareza; a culpa de Bartle cria uma barreira espessa e intransponível. O livro é um longo ensaio sobre o perdão e as possibilidades de redenção diretamente do niilismo dos campos de batalha. “Era difícil acreditar que ficaríamos bem e que tínhamos lutado bem. Mas eu me lembro de alguém ter me dito que a verdade não depende de que acreditem nela”, diz ele. “Os detalhes do mundo em que vivemos são sempre secundários em relação ao fato de que temos que viver nele”. Essa verdade inatingível e travestida no discurso bélico é a grande desilusão para os personagens de Pássaros amarelos. Enquanto avança por desertos banhados em sangue, John Bartle se torna ele mesmo um deserto.

Kevin Powers serviu no Iraque. Sua experiência é a matéria-prima para a ação do romance, que ganhou os prêmios Hemingway Foundation/PEN Award e Guardian First Book Award, para autores estreantes. Desde sua publicação em 2012 tem sido apontado como a grande ficção sobre a Guerra do Iraque, que começa a produzir suas primeiras grandes obras: Fobbit, de David Abrams; Billy Lynn’s long halftime walk, de Ben Fountain; e Sand queen, de Helen Benedict. Pássaros amarelos é a maior delas e apenas o primeiro romance de Powers. Nele, somos apresentados a uma guerra que acontece todos os dias, uma guerra invisível – não é transmitida nos noticiários, não vira artigo de jornal, nem post de blog. A tragédia moderna de Powers lança bases sólidas para a produção de um romancista que pode estar a caminho de ser reconhecido com o grande nome surgido a partir da presença americana no Oriente Médio.

::: Pássaros amarelos :::
::: Kevin Powers (trad. Donaldson Garschagen)
::: Companhia das Letras, 2013, 184 páginas :::

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  • Sérgio Tavares

    Muito boa resenha!

  • http://marquesdouglas.wordpress.com Douglas Marques

    Obrigado, Sérgio!