A ascensão errática do Brasil como potência mundial

Michael Reid faz um trabalho de reconstituição histórica, indicando bem que boa parte dos nossos desafios e problemas não foram forjados da noite para o dia.

"Brasil: A turbulenta ascensão de um país", de Michael Reid. (Elsevier, 2014, 320 páginas)

“Brasil: A turbulenta ascensão de um país”, de Michael Reid. (Campus, 2014, 320 páginas)

Em 2009, uma edição da The Economist foi altamente celebrada como uma espécie de chancela do mundo em relação ao Brasil. Como se sabe, a publicação inglesa é celebrada internacionalmente pela sua precisão e capacidade de antever cenários. Aquela edição, todavia, só foi levada em consideração pelos cenários positivos que projetou acerca do país, posto que ninguém deu muita atenção aos vaticínios a respeito das coisas que precisavam ser aprimoradas por aqui. O resultado, alguns anos depois, não poderia ser mais frustrante para quem só estava acostumado com elogios: a mesma revista apontava agora, após quatro anos, para uma nação que girava em falso, desgovernada; com isso, questionava, em tom de provocação: o Brasil estragou tudo?

Esses dois momentos precisam ser observados em perspectiva a fim de que possamos compreender o que efetivamente aconteceu com o dono da letra b dos Brics nos últimos anos. Além disso, é interessante observar o trabalho de fôlego elaborado pelo jornalista Michael Reid, que foi o primeiro correspondente da The Economist para o Brasil nos anos 1990. Reid é autor de Brasil: A ascensão turbulenta de um país, publicado antes da Copa do Mundo em língua inglesa e que agora ganhou edição brasileira. O livro tem uma pretensão bastante abrangente: contemplar o Brasil de forma panorâmica, apresentando ao leitor como é que essa nação chegou até onde está. A empreitada, portanto, escapa da narrativa triunfalista que assola o Brasil desde 2003, segundo a qual houve uma refundação da política, da economia e da cultura brasileira em janeiro daquele ano. Michael Reid resgata o Brasil a partir de suas origens para mostrar quem somos, como pensamos e como o país funciona.

Sim, a tarefa é para lá de complexa. E o leitor toma ciência disso na medida em que Reid nem sempre tem a resposta certa – aliás, é bom ressaltar: ele não pretende apresentar um juízo definitivo, mas sim sublinhar o que se discute sobre temas polêmicos, por exemplo. Nesse sentido, chama a atenção o fato de ele conseguir atribuir um cosmo ao caos lançando mão das leituras a respeito do Brasil – não apenas livros de história, mas ensaios de interpretação –, assim como de testemunhos que ajudam a fazer com que seu livro seja um exercício de reportagem histórica notável ao mesmo tempo em que traz dados atualizados sobre o estado de coisas no Brasil.

Para um leitor não-iniciado, o livro cumpre um papel elementar ao apresentar nossas idiossincrasias. A relação complexa do Brasil com sua própria narrativa, ora em estado de negação com relação a um passado difícil, como as inúmeras tentativas de desintegração do país durante as guerras regenciais; ou, ainda, a infame história da escravidão, com suas consequências ainda não totalmente processadas pela identidade nacional. Não é que o livro apresente um dado novo ou revelador sobre como acontece a política e a economia por aqui. Em vez disso, faz um trabalho de reconstituição histórica relevante ao apontar os detalhes nem sempre disseminados sobre a trajetória, indicando, assim, que boa parte dos desafios e problemas que enfrentamos hoje não foram forjados da noite para o dia.

A narrativa elaborada por Reid pode, no entanto, frustrar os leitores que já têm algum conhecimento prévio sobre o Brasil. Isso porque o autor retoma, às vezes com detalhes excessivos, os momentos decisivos da formação do país: guerras regenciais, queda da Monarquia, fim da República Velha, governo Vargas, ditadura militar. Em algumas passagens, ele se entrega com afeição ao projeto de recontar a história do Brasil; a despeito do interesse e do desejo de oferecer uma leitura original sobre o assunto, o livro parece se transformar em uma longa revisão de leituras, destacando os principais comentaristas desses diversos assuntos.

De qualquer modo, a ideia de que o Brasil avança, apesar dos seus problemas estruturais, ganha um sentido. Dito de outra maneira, o país está como está não porque este ou aquele governante decidiu que seria assim; trata-se, isto sim, de um problema que tem raízes mais profundas, tanto na maneira como as pessoas administraram a coisa pública no Brasil, como no modo em que os brasileiros atravessaram esse processo para se transformar em sociedade.

Uma passagem interessante dá conta de como o autor observa as mudanças sociais na sociedade brasileira e de quais são as consequências disso. Exemplo disso se dá quando o jornalista explica o longo caminho de transição necessário para que o Brasil encontrasse sua classe média, esse grupo social tão vilipendiado por celerados afoitos em estabelecer uma reedição hardcore da luta de classes. Felizmente, Reid não cai na esparrela de separar as classes somente conforme os ganhos econômicos, mas observa de forma bastante arguta que existe diferença entre a classe C e a classe média de fato. A avaliação do autor sinaliza não apenas a identificação desse fenômeno, mas, sobretudo, a interpretação dos dados que muitas vezes são despejados de forma aleatória no noticiário cotidiano, provocando mais confusão do que compreensão.

Ao falar das Jornadas de Junho, evento que até hoje carece de uma análise mais sólida e estruturada dos pundits locais, Reid observa sua filiação direta a uma conjuntura que passou a exigir mais qualidade dos serviços públicos do Estado e, antevendo um cenário que hoje parece óbvio em termos eleitorais, relembra que Marina Silva, hoje candidata à presidência da República pelo PSB, foi a única liderança política que saiu sem ser chamuscada pelos protestos. Aqui, mais uma vez o autor faz um sofisticado exercício de interpretação desse evento, buscando vozes distintas: de Bruno Torturra, ativista que esteve à frente do Mídia Ninja à época das manifestações, ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, resgatando, nesse último caso, uma entrevista concedida pelo sociólogo à Folha de S. Paulo. Em outras palavras, a virtude da leitura de Michael Reid a respeito desse acontecimento repousa no fato de que o autor não se baseia apenas na sua condição privilegiada de observador estrangeiro.

É bastante comum os brasileiros adotarmos como nosso o olhar que vem de fora – seja para chancelar, seja para reprovar – a respeito de nossas ações, gestos e comportamentos. Em vez de oferecer essa chave que facilmente poderia ser confundida com um imperialismo tardio pelos partidários do socialismo moreno, o jornalista atua com sobriedade e condensa essas duas referências: o seu olhar como ex-correspondente aliado à própria narrativa que os brasileiros construímos acerca de nós mesmos.

Outro caso exemplar acerca disso está presente no capítulo onde o autor analisa especificamente a projeção internacional do Brasil. Aqui, novamente, quem acompanha o noticiário desse setor está acostumado a uma tendência indulgente por parte dos comentaristas locais – afinal, o País é, pelo menos, uma potência emergente, e não há dia em que esses mesmos comentaristas, principalmente em período eleitoral, não exaltam os números que comprovam a inserção do Brasil no contexto internacional. De acordo com a interpretação de Michael Reid, essas ambições globais, em alguns casos, se transformaram em frustrações internacionais. É o caso da vitória de pirro da diplomacia brasileira em torno do quase acordo com o Irã em 2010 com o objetivo de evitar tensão por conta do enriquecimento de urânio daquele país. Conforme analisa Reid, na percepção de alguns analistas, o Brasil caiu numa armadilha retórica preparada por Ahmadinejad – e, como informa o autor, o País ficou segurando a vela sozinho desse “grande acordo”, principalmente depois que mesmo os países dos BRICs se uniram aos Estados Unidos no voto para aumentar as sanções contra o Irã.

Dito de outra maneira, embora tenha ambições de potência global, não está claro, para a comunidade internacional, qual é o tipo de liderança que o Brasil pretende exercer. Em outras palavras, em que pese a retórica que se ufana do País, a agenda internacional do Brasil ainda é esquálida e não promove ações que sinalizam qual é o rumo que se pretende oferecer a partir do momento em que ocupa uma posição-chave no cenário global. Nas palavras do autor, nos grandes debates ideológicos entre democracia e autoritarismo, entre valores universais (como direitos humanos) e o relativismo moral, não se sabe qual é a posição do Brasil.

“Brasil: a turbulenta ascensão de um país” é um exemplo de que, apesar das novas correntes de análise, os grandes mergulhos ensaísticos de interpretação ainda são possíveis e, certamente, necessários. A leitura do livro mostra que o fato de o Brasil ter se destacado nos últimos anos não necessariamente coloca o País em patamar de igualdade com as grandes potências. Em tempo: é possível discordar da mensagem, mas é difícil contestar os argumentos.



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