Um diário de leitura de "Como Ser Um Conservador", de Roger Scruton.
1.
Roger Scruton é um filósofo e escritor inglês, chamado de enfant-terrible da filosofia na Europa por causa de sua franqueza e de suas ideias tradicionais, clássicas e polêmicas. O acesso à sua obra é crescente no Brasil, tanto por sua coragem de se posicionar politicamente quanto por seu pensamento contracorrente; obviamente, também por nossa carência de referências nos moldes conservadores.
O primeiro contato que tive com o autor surgiu pelo meu interesse em Estética, através do seu livro Beauty, traduzido no Brasil pela É Realizações em 2013, e por outra obra para estudos na graduação, A short history of Modern Philosophy: From Descartes to Wittgenstein. No primeiro, é maravilhoso e impressionante como seu discurso defende a beleza, o sagrado e problematiza questões da arte contemporânea. Para Scruton, temos necessidade do belo, e discursos que não o colocam como necessário vão contra nossa natureza. Fui com muita gana a Como ser um conservador.
Logo no Sumário, estranhei um pouco os títulos dos capítulos: A verdade no nacionalismo, socialismo, capitalismo etc. Em sobressalto, pensei: nossa, ele sabe a verdade de tudo isto? Muita audácia! A ver então como descreve o que se passa em cada fenômeno e se assim nos dá doses de verdades, verdade como relação do que é fato com o que é escrito.
Primeiramente, Scruton está falando para conservadores ingleses, e deixa isso claro no Prefácio, quando insere questões de liberdade, habeas corpus, common law inglesa, dizendo: “Por essa razão, ao explicar e defender o conservadorismo, estou direcionando as minhas observações, primeiramente, ao mundo de língua inglesa.” Não há problemas nisso; é possível fazermos analogias e tentar entender como seria tais verdades em nosso Brasil. Precisamos de referências, e Scruton é uma delas, e das boas. O ponto fundamental que percebo no argumento conservador do autor é: herdamos coletivamente coisas admiráveis que devemos nos empenhar para preservar. Principalmente porque pode acontecer de mudarmos para algo pior, devemos estar atentos ao que valorizamos.
Nosso autor está preocupado com o que chama de “cultura aberta e questionadora”, que despreza valores conquistados ao longo da história. É interessante quando ele aponta que a posição dos conservadores é verdadeira, mas enfadonha; a de seus oponentes é excitante, mas falsa. Vemos claramente como o discurso de recusa de valores seduz aqueles que não sabem a verdade de tais valores. Durante o livro, o autor acentuará quais são estes.
No primeiro capítulo, “Minha trajetória”, Scruton fala de suas origens. Bem lúcido, abre dizendo que não é incomum ser um conservador, mas que é invulgar ser um intelectual conservador. Sabe que o pensamento de esquerda domina os ambientes acadêmicos, e também como seu pensamento é recebido nestes meios. (Certa vez, eu disse que estava lendo Scruton na universidade, e um colega doutorando perguntou: “Aquele nazista?”) Sim, conservadores são associados a reacionários, preconceituosos, sexistas ou racistas.
Foi quando entrou para Cambridge que Scruton se tornou um conservador. Quando, na sequência, foi lecionar na França, presenciou o famoso Maio de 68. Relata a discrepância que percebeu no discurso que atacava o que chamavam de burguesia, dito pela sociedade mais burguesa imaginável, a Paris daquela época. Aponta ainda um detalhe importante e esquecido:
Os genocidas influenciados por tal luta não receberam qualquer menção nos escritos de Louis Althusser, Gilles Deleuze, Michel Foucault e Jacques Lacan, apesar de um desses genocídios ter se iniciado naquele exato momento no Camboja comandado por Pol Pot, um membro do Partido Comunista francês educado em Paris.
Nesse momento, Scruton percebeu que a alternativa para o socialismo revolucionário é o conservadorismo. Em 1979 escreve The meaning of Conservatism, criando novos caminhos para o que acreditava ser o conservadorismo, afirmando que a liberdade não era o ponto crucial que os conservadores acreditavam e queriam – liberdade sem rumo não fazia sentido. Viaja à Polônia e Tchecoslováquia, onde vê de perto a realidade do comunismo. Depois disso, ainda esteve no Oriente Médio, e relata o contato que teve com a cultura muçulmana.
2.
No capítulo 2, “Começando de casa”, Scruton demonstra que as sociedades são baseadas numa política de vizinhança, em desejos que devem ser coordenados a partir dos desejos individuais. Requer responsabilidade de seus cidadãos, respeitando valores fixos como a solidariedade. Não somos somente homo economicus, e estamos sujeitos a razões mais profundas, a valores que permeiam as relações interpessoais, como exemplo a culpa, vergonha, o amor pela beleza, o senso de justiça. São valores que nos conduzem a um sentimento de pertencimento a uma comunidade que compartilha um modo de vida moral.
Neste capítulo e nos seguintes, Scruton demonstra a influência de Edmund Burke, que via a sociedade como uma associação entre os mortos, e os vivos e os que estão por nascer; seu princípio vinculativo não é o contrato, mas algo mais parecido com o amor. São relações de afeto e lealdade construídas de baixo para cima, começando pela família, escola, locais de trabalho, igreja, associações diversas. Scruton rejeita um governo centralizado que comanda as associações de cima para baixo. Tratando das associações livres, o autor diferencia a associação civil da empresarial, e afirma a importância da sociedade conseguir se organizar em associações livres do Estado.
“A verdade no nacionalismo”, terceiro capítulo, retoma o sentimento de pertencimento para se viver em comunidade e afirma que a nação, o território, é fundamental para tanto. É clara a insatisfação do autor com a criação da União Européia. Ele quer defender sua cultura inglesa e identidade nacional, a condição de membro de uma sociedade. Nesse sentido, faz uma boa distinção entre países baseados em obediência civil e aqueles, como os muçulmanos, baseados em obediência religiosa, afirmando que a lei deve ser secular e que deve existir oposição, liberdade de discordância. As buscas de acordos devem ser fundamentadas num sentimento de pertença primordialmente nacional, “e não num ‘nós’ religioso ou étnico”.
Todas as afirmações neste capítulo também apontam para o problema da imigração que se passa na Europa. Scruton incide que o sentimento de nação seja compartilhado pelos que vivem juntos, mesmo provindos de outras nações. Problema gigantesco que parece estar em aberto, com milhares de imigrantes deslocados rememorando a cultura abandonada, até mesmo por não conseguirem se inserir. O autor está ciente do problema e diz: “Sendo assim, a única questão é, ‘Quem somos nós?’. E, nas condições atuais, a nação é a resposta, uma resposta sem a qual estaremos todos à deriva.”
O autor sabe dos problemas de suas afirmações, mas expõe que são coisas como estas que queremos defender e que valorizamos. Este capítulo é, a meu ver, um dos mais complicados da obra, pois este “nós” de que pergunta Scruton está agora limitado a Estados-nação, e complica quando se pensa em imigração. Nossa análise sobre tal questão sempre será rasa, porque não temos a experiência dos europeus com tantos refugiados em nosso meio. (Aliás, uma pergunta que me fiz foi: o que é nosso nacionalismo?)
No capítulo 4, “A verdade no socialismo”, Scruton já inicia argumentando contra um dos pilares do socialismo, a busca por igualdade. O autor afirma que as pessoas não devem ser tratadas de forma igual:
Muito do que significa tratamento igualitário é obviamente controverso. Criminosos não são tratados da mesma maneira que os cidadãos cumpridores da lei. Pessoas velhas, frágeis e aleijadas não são tratadas da mesma maneira que pessoas do corpo sadio.
Era a hora de abordar Marx, e assim o autor faz, dizendo que lutar pela classe é algo que intelectuais incitam; operário não luta por classe, e sim por melhores condições de vida. Scruton demonstra várias falácias do socialismo, e como a tentativa de criar um céu na Terra leva ao inferno, visto com seus próprios olhos nos países comunistas que visitou.
“A verdade no capitalismo” (capítulo 5) é sua negação feita pelo socialismo. Scruton afirma a necessidade de uma coordenação econômica onde a propriedade privada e as trocas voluntárias são indispensáveis a qualquer economia de grande escala. O autor apresenta teorias de Ludwig Von Mises e Friedrich Hayek como respostas aos embates com o socialismo. Os preços não podem ser controlados pelo Estado, pois dependem do desejo e necessidade das pessoas; o conhecimento disso está disperso, não nas mãos de algum indivíduo. Scruton faz outra análise sobre a ciência da teoria dos jogos desenvolvida por John Von Neumann e Oskar Morgenstern para considerar condições de mercado. Questões de como e quando o Estado poderá interferir ou não são apontadas no capítulo. Destaca o problema das empresas transferirem os custos para terceiros, gerando más conseqüências ambientais e sociais, o que será mais esmiuçado no capítulo sobre o ambientalismo. Insere a questão com um tom de apelo:
Por que os defensores do mercado não erguem as suas vozes contra a prática de externalizar os custos dessa maneira? Afinal, repassá-los sem se responsabilizar por eles não é apenas impô-los sobre os outros; é destruir o processo de recompensa e penalidade por meio do qual o mercado realiza o seu potencial como um mecanismo de autorregulação. A facilidade com que grandes produtores conseguem transferir seus custos é um abuso flagrante pelo qual o mercado – por outro lado, um dos valores fundamentais do conservadorismo – condena a si mesmo.
3.
Em “A verdade no liberalismo”, Scruton recupera do capítulo anterior a diferença de ordem religiosa e política e desenvolve o problema. Sua compreensão é fundamental para lidar com várias questões na obra. Cito-o para ficar mais claro o que quer realçar:
O liberalismo tradicional é a visão segundo a qual essa sociedade só é possível caso os membros individuais tenham soberania sobre as próprias vidas_ o que significa ser livre tanto para dar quanto para recusar o consentimento em relação a quaisquer relações que possam vir a ser propostas. A soberania individual só existe onde o Estado garante os direitos, tais como o direito à vida, à integridade física e à propriedade, protegendo, desse modo, os cidadãos de violação e coação de terceiros, incluindo da violação e da coação praticadas pelo Estado.
No capítulo seguinte, “A verdade no multiculturalismo”, o autor se posiciona novamente sobre o problema de quem é o “nós”. Para uma sociedade se tornar inclusiva, diz Scruton, ela não deve abrir mão de costumes e crenças. É o famoso politicamente correto que ele está criticando:
O politicamente correto nos incita a ser tão “inclusivos” quanto pudermos, a não discriminar nem em pensamento em palavra muito menos a agir deliberadamente contra as minorias étnicas, sexuais, religiosas ou comportamentais. Para ser inclusivos, somos encorajados a denegrir aquilo que mais sentimos, acima de tudo, como nosso.
Neste momento, Scruton começa a deixar mais claro o que ele entende por “nós”, que remete ao nosso, ao que é compartilhado, ao legado cultural. Ele então começa a defender a existência de verdades, contrapondo-se a autores como Nietzsche, para quem há apenas interpretações, e o contemporâneo Richard Rorty, pragmático que afirmou que verdade é a proposição mais útil. Novamente no tema dos imigrantes, Scruton assinala que a cultura anterior destes deve sim ser abandonada. Controverso. Mas Scruton se posiciona firmemente:
É uma injustiça? Não acho que seja. Se os imigrantes vêm é porque se beneficiam ao vir. É, portanto, razoável lembrá-los de que também há um custo. Só agora, porém, a nossa classe política está preparada para dizê-lo e insistir que o custo seja pago.
Retomando o pensamento de Burke segundo o qual conservadores admitem a sociedade como uma parceria entre vivos, mortos e quem ainda está por nascer, Scruton trabalha no próximo capítulo a questão do meio ambiente. O conservador não é aquele que quer conservar o que valoriza? Então precisa de engajamento na conservação do lar. A solução para a degradação ambiental não é o socialismo, ou a abolição da economia livre, e sim encontrar uma maneira de pressionar as empresas a corrigirem erros. A atuação local também deve ter primazia. É preciso encontrar maneiras de motivar tais ações em todos os homens. O autor dá exemplos concretos de como isso pode acontecer.
O conservadorismo de que fala Scruton não é internacionalista, e o autor suspeita do tipo de posicionamento onde o poder é transferido para além de um território específico. O “nós” é nacional, e a exceção são as pessoas de fora que se identifiquem com a cultura. Esse é o tema do capítulo 9, “A verdade no internacionalismo”.
Conservadores querem legislar dentro das suas jurisdições nacionais, e acreditam que projetos de governos globais são utópicos. A ordem política envolve afetividade, e este tipo de governo não a torna possível. Scruton faz uma longa e crítica análise do papel da ONU, volta às falhas da União Européia e propõe o fortalecimento do Estado-nação, citando a Suíça como modelo.
4.
O capítulo “A verdade no conservadorismo” é entusiasmante. Começo incrível:
O negócio do conservadorismo não é corrigir a natureza humana ou moldá-la de acordo com alguma concepção ideal de um ser racional que faz escolhas. O conservadorismo tenta compreender como as sociedades funcionam e criar o espaço necessário para que sejam bem-sucedidas ao funcionar. O ponto de partida é a psicologia da pessoa humana.
Adivinhem qual filosofia Scruton toma como base para o argumento acima? Claro, Hegel! É na Fenomenologia do Espírito que insiste-se sobre autoconsciência, liberdade, o eu rumo ao outro, direitos e deveres mútuos, valor de si e dos demais. “Somos criaturas que constroem lares”, diz Scruton, “em busca de valores intrínsecos e o que nos importa são os fins, não os meios de nossa existência”.
Este capítulo só perde em riqueza para o seguinte, “Esferas de valor”, sobre como o papel do Estado deveria ser menor do que pensam os socialistas e maior do que os liberais clássicos permitem.
Scruton diferencia o que são valores do que tem preço. Valores são aquilo que não se pode comprar. Scruton afirma: “o que importa é aquilo que não trocaremos”. Valores emergem do esforço cooperativo e estão enraizados na natureza social; dizem respeito ao que criamos em nossa convivência, através de costumes, da tradição. É aí que entra a religião, em especial o mandamento do amor cristão. Conservadores não impõem a fé, embora reconheçam a religião como elemento inalterável da psique humana. Scruton analisa o que é educação moral e o papel da família, já que a religião se afasta cada vez mais da vida pública. Trata de temas como o feminismo e casamento homoafetivo – parte bem polêmica, como podem imaginar.
Cultura, para Roger Scruton, é a transmissão de juízos. Ele retoma o pensamento presente em seu livro Beauty, onde descreveu como a arte contemporânea abre mão da beleza, e critica a cultura tediosa da transgressão. O belo é um dos elementos que nos faz pertencer a um lar.
O capítulo termina destacando que a educação dever ser retirada das mãos do Estado:
Nesse aspecto, nenhuma causa é mais importante, creio, do que a da educação, que precisa ser libertada permanentemente do Estado e devolvida à sociedade. A liberdade dos cidadãos de fundar as próprias escolas, de estabelecer relações voluntárias e obrigatórias com os pais é uma causa que o Partido Conservador britânico deve concordar em apoiar.
O último capítulo, “Uma despedida”, é uma meditação sobre o caos moral nos tempos em que a fé cristã desaparece. Perdemos muitos valores que vinham desta – base da cultura ocidental. Fé não é opinião comum; é estado de espírito transformador, capaz de alterar percepções, emoções, crenças. Fé é um consolo, que também colabora ao sentimento de pertencimento. O mundo da fé envolve o social, que é o mundo de compromissos seguros, casamentos, exéquias e batismo, de presença real nas vidas comuns e de visões sublimes da arte. Muitas igrejas ainda existem mais por causa de sua beleza do que pelo uso, o que comprova a profunda utilidade da beleza.
Admitir que perdemos muito é importante, mas que isso não seja o lugar principal dos conservadores, onde valores que são deixados e nos colocam num vazio, aflorando o pranto, a desistência. Há uma passagem que responde ao tema e me marcou muito: “O caminho da renúncia pressupõe, afinal que existe algo a renunciar. Renunciar ao amor só é possível depois que aprendemos a amar”.
Como afirma o autor, “nossas perdas podem ser compreendidas e aceitas, e o recurso que temos é a beleza”. Fazer da perda um aspecto essencial da experiência relaciona-se com colocar a tragédia no centro da literatura – as obras clássicas nos ensinam a lidar com as perdas. O vazio sempre existirá, mas não devemos viver no pesar, mas nos esforçarmos para preenchê-lo com recursos próprios. Devemos resistir.