Muitas explicações circulam sobre a crise de imigração na Europa. Mas o tema é mais complexo do que parece

Policial grego orienta refugiados sírios na fronteira com a Macedônia (foto:AP)

Policial grego orienta refugiados sírios na fronteira com a Macedônia (foto:AP)

A foto do menino sírio Aylan afogado na praia turca coroou um crescimento de episódios terríveis recentes envolvendo a tentativa de refugiados do Oriente Médio e África de entrar na Europa para fugir da guerra e do terrorismo. Ao contrário do que se possa pensar, o fenômeno não é novo: já no seu primeiro ano de papado, em 2013, Francisco havia ido à ilha de Lampedusa alertar que ali havia se tornado ponto de chegada de fugitivos do caos na Líbia.

A crise de consciência que subitamente assola o mundo ocidental após a divulgação em massa desta foto e das diversas imagens de imigrantes mortos aponta para diversos culpados: o terrorismo, o imperialismo norte-americano e suas intervenções na Líbia, Síria e Iraque, a Primavera Árabe…

A outra comoção: Charlie Hebdo

A memória curta das massas comovidas se esquece que em janeiro o Ocidente foi varrido por outra comoção: o atentado conta o Charlie Hebdo. Naquela ocasião, o imigrante não era a vítima, mas o problema. E agora?

Talvez sejam as duas coisas. É difícil para nós americanos – latinos e anglo-saxões – entender o peso da oposição ao mundo islâmico na formação da identidade européia. Somos nações multiculturais, onde o racismo se baseia na herança social da escravidão e não em um conflito civilizatório de séculos ao qual devemos nossa existência. Sim, há racismo contra negros e índios, mas também há abertura a imigrantes de todo o mundo – o que explica nossos presidentes terem sobrenomes como Menem, Rousseff, Fujimori, Obama…

A Europa se formou em séculos de conflitos com o oriente muçulmano, como Poitiers, Cruzadas, Reconquista Espanhola, Lepanto. Quando o imperialismo europeu chega ao Oriente, a partir de Napoleão, seu orientalismo carrega a marca desta experiência trágica. E agora, quando o imigrante chega em massa, trazendo na mala sua cultura e sua civilização que igualmente se construiu no lado oposto do conflito, também se opondo ao ocidente cristão e greco-romano?

Nessa hora a xenofobia que costuma aparecer diante de ondas de imigração – veja a recepção que brasileiros têm dado aos haitianos e bolivianos – soma o fantasma da perda de identidade. E alimenta as fantasias higienistas do fascismo.

Mas aí é um círculo vicioso. O imigrante discriminado e mal recebido se torna recruta fácil para as redes terroristas em solo europeu, cuja inserção se deve não a eles, mas a europeus revoltados que vêem no Islã o maoísmo do século XXI. O Charlie Hebdo não foi vítima de imigrantes, como pode nos fazer pensar algumas leituras do episódio, mas de um terrorismo que se alimenta da rebeldia do europeu jovem, assim como a guerrilha de esquerda no passado (lembrem-se que os criminosos do Kmer Vermelho estudaram na Sorbonne).

Além disso – e neste sentido o best seller Submissão de Michel Houellebeq nos traz muitos insights – a civilização européia já foi penetrada por outras culturas e etnias há muito tempo. Houellebeq mostra isso no sushi e no chá árabe preferidos dos acadêmicos franceses, e até no fato de que os defensores da identidade européia no livro se baseiam em Touro Sentado, um índio americano.

Neste sentido, fechar as portas da Europa aos imigrantes, por medo do terrorismo, é mais do que uma bobagem. É inócuo. É criminoso. Os imigrantes que estão morrendo nos trens e mares da Europa estão fugindo do terrorismo. Podem ser os maiores aliados para combatê-lo na crescente população muçulmana européia. Seus depoimentos sobre a vida submetidos ao Estado Islâmico fariam mais para demover jovens do recrutamento terrorista que qualquer estratégia militar. Pelo contrário, os corpos de refugiados mortos acusam a xenofobia e o racismo europeu. É como se as praias da Europa recebessem um milhão de Malalas mortos.

Intervir ou não intervir?

Colocado o ponto da relação do imigrante com o terrorismo, vem a pergunta: afinal, as intervenções recentes no Iraque, Líbia e Síria geraram instabilidade e caos? Sim, com certeza. Por isso, era errado ter intervindo? Difícil dizer.

A geopolítica ocidental lida com o terrorismo árabe e muçulmano desde a descolonização. Desde a revolução iraniana o terrorismo ganhou um viés religioso forte. Ainda assim, o Ocidente não aprendeu a lidar com ele.

Até agora, o modelo mental para enfrentar os conflitos políticos na região tem sido o mesmo da Guerra Fria. Contra o comunismo, sempre havia um grupo político tradicional disposto a manter a estabilidade e as tradições do país – ainda que corrupto como Reza Pahlevi ou violento como Pinochet. Mas – e os EUA deveriam ter aprendido com os mujahidin afegãos – essa não é necessariamente a verdade por lá.

Neste sentido, o caso do Iraque parece ter sido realmente desnecessário, e o custo suplantou de longe o benefício de apear Saddam do poder. Teria sido melhor patrocinar mudanças por meio da política interna iraquiana, ainda que levassem mais tempo para acontecer. É o que o reformismo iraniano tem conseguido agora, mudança pacífica e com estabilidade.

No caso da Líbia e da Síria, o problema é mais complexo, e passa pelo balanço do que foi a Primavera Árabe. Seus críticos se esquecem de que a Tunísia, onde tudo começou, realmente tornou-se uma democracia, e o Egito estava bem longe de um califado, mesmo com a Irmandade Muçulmana no poder.

O que a Líbia e a Síria têm em comum foi a violenta repressão no início do processo. Ambos os governos lançaram bombardeio aéreo contra manifestantes pacíficos. Isso fortaleceu a via terrorista, da qual a Al Qaeda e o que se tornou Estado Islâmico são os principais representantes. O rumo que a Primavera Árabe tomou nesses países foi marcado pelos episódios iniciais, e isso nunca foi bem avaliado.

Quem simplesmente condena a intervenção se esquece de que estávamos falando de Gaddafi – um ditador que se manteve no poder com práticas como estupro seletivo de meninas líbias – e Assad – que lançou armas químicas contra sua própria população. Tratava-se de escolhas difíceis. O que pode se dizer, contudo, é que ao ouvir seus aliados no mundo árabe, especialmente os sauditas, o Ocidente foi induzido a apoiar o terrorismo sunita. Talvez se tivesse ouvido seus inimigos do Irã, o conselho tivesse sido melhor.

Mas não tenhamos ilusão. Talvez a vida tivesse sido melhor sob Assad, mas isso era mais efeito da paz que de seu governo. A guerra começou quando sírios se levantaram contra ele, e foram recebidos à bomba. O Ocidente neste caso foi reativo, e não o responsável pelo caos. Mesmo na Líbia, conhecendo a história de Gaddafi, soa inocente acreditar que sem a intervenção da OTAN tudo estaria melhor. Ali também a guerra começou internamente.

A verdade

A verdade é que ninguém liga para refugiados. Todas as avaliações olham mais para a política. Quem se comove com Aylan no Brasil também diz que o Lula trouxe os haitianos para votarem na Dilma e roubarem nossos empregos. Nem mesmo se importa em comprar roupas produzidas com trabalho boliviano escravo.

Também tivemos o nosso Aylan. Foi Bryan, menino boliviano assassinado durante um assalto em São Paulo. Houve alguma comoção, mas só o PCC tomou alguma atitude, dando fim aos quatro assassinos. O Estado de Direito falhou ao proteger esse refugiado em particular. Assim como falhou em proteger os haitianos vítimas de violência na Baixada do Glicério, também em São Paulo. Sim, somos quem mais recebe refugiados sírios. Mas isso não nos isenta de responsabilidade sobre as outras nacionalidades.

Ninguém se preocupou com refugiados quando defendeu a intervenção e a Primavera Árabe. Ou quando defendeu Assad e Gaddafi. Nenhum líder internacional, exceto o papa, olha para os refugiados na Europa desde 2013. E temo que Aylan tenha morrido em vão.

Paulo Roberto Silva

Jornalista e empreendedor. Mestre em Integração da América Latina pela USP.

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