O escárnio de Stanislaw Ponte Preta para com a autoridade só não é superado por sua compaixão para com o homem comum
As parcelas mais hidrófobas dos dois lados da polarização política que toma conta do Brasil atual fariam bem em ler os três tomos do Febeapá, de Stanislaw Ponte Preta, recém-relançados pela Companhia das Letras num jeitoso volume único.
Ali, os áulicos da “intervenção” militar teriam um fino retrato do tipo de imbecil pomposo e truculento que a submissão do poder civil à mão militar acaba, inevitavelmente, transformando em árbitro da sociedade. E os defensores incondicionais do governo Dilma, a turma do “apesar da crise” e do “dólar é problema de burguês”, talvez vissem como seu desbragado puxassaquismo governista não é nem um pouco menos ridículo do que o dos civis que, por interesses escusos ou cegueira ideológica, celebravam como vitória inconteste do regime até mesmo os mais óbvios tropeços da “redentora” de 1964.
Para os mais jovens, que sofrem com a amnésia histórico-cultural imposta pelo nosso sistema de educação: Stanislaw Ponte Preta foi o pseudônimo adotado pelo jornalista e escritor carioca Sérgio Porto (1923-1968) para assinar a parte, digamos assim, mais humorística de seu trabalho.
Sérgio Porto foi uma importante figura do jornalismo e da cena cultural carioca, naquela época em que as chances de encontrar uma mesa de grandes intelectuais brasileiros num boteco de Ipanema era sensivelmente maior do que num seminário de qualquer universidade do país.
Também foi um pioneiro da televisão, da crítica de televisão (“Sílvio Santos é um sujeito que ficou milionário industrializando a miséria humana”, escreveu ele, em 1967) e dos empresários de mídia.
Os três volumes do Febeapá, publicados originalmente em 1966, 1967 e 1968, dividem-se entre coletâneas comentadas de notícias, frases, declarações e documentos oficiais reunidos pelo próprio Stanislaw ou por seus leitores, e que mostravam o grau de estupidez a que o Brasil vinha sendo reduzido pelo regime de 1964, e crônicas, muitas delas protagonizadas por “tipos” criados pelo autor, como Tia Zulmira (a sábia), Primo Altamirando (o escroque), Primo Rosamundo (o distraído) e Bonifácio (o patriota).
Os principais alvos, tanto das notícias quanto das crônicas, eram os militares, embriagados pelo poder civil e já entrados em arbitrariedades várias, e os políticos e “figuras da sociedade” que se prostravam, fazendo fila para lamber sola de coturno.
Algumas das notícias falam por si mesmas, como a dos militares que queriam prender Sófocles por considerar Édipo Rei subversivo, ou dos estudantes presos por falar inglês em público, porque língua estrangeira é coisa de comunista; dos inúmeros Inquéritos Policiais Militares abertos por razões fúteis e abstrusas; e, minha favorita, a de que o novo diretor da Rádio Ministério da Educação, nomeado pelos militares, havia separado verba para montar um corpo de baile para a emissora.
Outras pediam um comentário final, às vezes jocoso, às vezes indignado. À informação de que os talões de multa passariam a registrar as punições em três vias para reduzir a corrupção, Stanislaw acrescenta que, num país sério, havendo corrupção, troca-se o guarda; no Brasil, troca-se o talão. À notícia de que o governo buscava entender o que estava por trás das passeatas estudantis, o cronista apõe: talvez porque mataram um coleguinha deles outro dia? Diante de documento oficial esclarecendo que homicídio e suicídio são coisas diferentes, Stanislaw se pergunta se o Dops, por acaso, recebeu o memorando.
Já em suas crônicas, o autor descreve situações como a do homem que, depois de criticar o governo em público, recebe em sua casa uma visita de soldados de Exército, “encarregados de lhe explicar o perfeito funcionamento das instituições democráticas”. Ou do trabalhador penalizado pela carência de serviços públicos, a falta de água, de energia, a inconstância do transporte público (“o ônibus ou está atrasado ou já passou”).
Um esboço de enredo que se repete, com variações, é o do personagem truculento que intimida outro mais fraco e dócil, impondo sua vontade pela força – só para ser atraiçoado no instante em que vira as costas. Não é difícil ver nesse tema, da timidez como estratégia e dissimulação diante de uma força superior mas irracional, ao mesmo tempo um elogio da malandragem “boa praça” e um esboço de programa político.
Não que Stanislaw/Sérgio Porto se intimidasse – longe disso. Suas críticas à mídia, às personalidades da mídia, ao governo e a homens públicos eram de uma contundência – e elegância – que não se vê mais hoje, onde grassam, de um lado, a covardia e o compadrio (quem se atreve a levantar, contra os reality-shows de hoje, uma crítica moral, mas não moralista, tão cristalina quanto a feita por Ponte Preta a Sílvio Santos?) e, de outro, a grosseria pura e simples.
Ibrahim Sued, escreve Ponte Preta, diz que só comunistas não gostam se seu último livro. Logo, Ibrahim é o único não-comunista do Brasil. Roteiristas de televisão desesperam-se por não serem capazes de escrever tão mal quanto os executivos das emissoras exigem. Em suas últimas crônicas, a própria questão da distribuição das concessões de canais de TV é tratada com uma crueza inaudita, e é assustador imaginar o que poderia ter acontecido com Sérgio Porto se problemas cardíacos não o tivessem levado deste mundo antes da chegada do AI-5.
Hoje em dia haverá, suponho, quem o acuse de machista, por suas crônicas tratando de infidelidade conjugal, ou racista, pelo uso da expressão “crioulo doido” (cujo samba o próprio Stanislaw escreveu). Mas será miopia. Há um enorme coração humanista que pulsa no trabalho de Stanislaw Ponte Preta. Seu escárnio para com a autoridade só não é superado por sua compaixão para com o homem comum: a vítima da enchente, do corte de luz, da polícia. O brasileiro, que é o mesmo ontem e hoje.
Carlos Orsi
Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.