1.
O esforço deliberado de destruir opositores indesejados subjaz, potencialmente, em todo receituário ideológico. Daí porque endosso – sem ressábios – Gerhart Niemeyer: “Todas as ideologias modernas têm a mesma raiz irracional” (“Ideas have also roots”). Crescente desde a modernidade, e crucial a partir da crise do mundo medieval, tal receituário se empenharia em descrever a realidade como um sistema, reduzindo-a parcialmente a determinados anseios mecanicistas e regulares. Ora, como encerrar as disposições humanas, e mais especificamente as escolhas políticas, dentro de uma visão unilateral como se a realidade fosse invariavelmente linear? Dentro desta estrutura descritiva, todos os fenômenos passam a ser catalogáveis sistemicamente, à maneira do espírito jardineiro perante a natureza, empenhado que é em controlá-la.
Ao tomarmos o jardim como a oposição dialética entre natureza e cultura, civilização e barbárie, logo percebemos que o cultivo dessa analogia espacial, fora determinante no decurso da civilização Ocidental, ganhando um sentido simbólico a partir da tensão entre a Idade Média e a modernidade, resultando dai a metáfora para o controle das diferenças, à maneira de uma técnica manual para podar eventuais ervas daninhas; otimizar sua execração, e massacrar ameaças biologicamente indesejadas. Como tônica – todo propósito jardineiro voltar-se-ia para a criação artificiosa de um estado supostamente perfectível, cuja mera existência de criaturas espontaneamente diferentes, já as credenciaria para o altar do sacrifício milenarista da história.
2.
Dentre inúmeras perspectivas acerca da arte da jardinagem, os medievais cultivavam tais jardins com anseios eminentemente espirituais, além, é claro, de ilustrá-los como um sistema de catalogação dos saberes. Em 1250, Richard de Fournival desenvolveu, a partir de um modelo horticultural, um método intelectual e igualmente bibliotecário, comparando uma biblioteca a um jardim, de onde se poderia colher os frutos do conhecimento. Remetendo-se ao modelo das sete artes liberais (gramática, retórica, lógica, aritmética, geometria, astronomia e música), Fournival resgataria o cultivo do espírito como hortus deliciarum, cujo esforço seria o de compreender o homem como um ser decaído em meio à natureza, mas habilitado à cultivável transcendência. Ademais, outra leitura acerca da jardinagem surge a partir da leitura exegética dos Cânticos (4:12) como hortus conclusus, portanto, como o símbolo da pureza e da maternidade mariana, e da inviolável individualidade.
Como quem não mais contemplasse a totalidade do fenômeno observado, por mera incapacidade, o olhar que surge desde a modernidade passa a manipular o jardim como expressão da contingência do mundo real por meio do discurso científico, voltado à defesa redentora do espírito geométrico perante o caos. Passados alguns séculos e, decorrido o esfacelamento do mundo medieval, o conceito de jardinagem encamparia um apelo filosófico tão caro ao Iluminismo, trazendo para o bastidor da ação política, o reclame à racionalidade, à ordem e à tentativa asséptica de fundar uma sociedade perfeita. Tal fenômeno traria consigo aquilo que Steven Lukes chama de “espírito de retificação“, ou seja, alentada justificativa para a correção de possíveis desigualdades naturais ou sociais com o usufruto de deliberada engenharia social. Do propósito, até sua entusiasmada consecução: o esforço em podar os indesejados; aguçar o espírito de retificação; ensejar a perfectibilidade humana, só seria possível desacomodando a ordem natural por meio da violência. Entretanto, dentro desta perspectiva, nada se sustenta sem justificativas.
3.
Pautando-se em planejamento, burocracia, planificação e aguçado senso messiânico, o espírito de retificação do estado jardineiro, compreenderia toda e qualquer oposição como bacilos sociais que, em condições imediatamente daninhas, são indignas à existência. Se no auge da solução final, durante o Holocausto nazista, judeus, homossexuais, ciganos e anônimos inocentes eram incriminados por cometer o crime de existir – como os imaculados cidadãos que eram pegos com óculos no Camboja de Pol Pot por subversiva alusão à intelectualidade burguesa míope e letrada –, o que surpreende em tais desmandos é tanto o esforço em retificar e corrigir os diferentes quanto o justificado discurso e sua autossuficiência.
Indiferente à culpa de quem reconhece seus próprios erros, o espírito de retificação justifica-se com aguçado senso de autoindulgência, arremetendo a uma inculpação projetiva em nome da humanidade, do proletariado, da justiça social e da raça (todos imponderáveis e abstratos) o propósito de seus atos. Portanto, toda a retificação, ou seja, todo espírito jardineiro caracteriza-se pela remissão à coletividade e a culminância em um Indivíduo Absoluto que, por catalogar todas as diferenças a partir de suas inclinações ocasionais, as indispõem justificadamente.
Como toda ideologia se assemelha, neste esforço de podar os indesejados com demasiado senso de autojustificativa, quem quer que pronuncie a frase seguinte, trocando apenas o sujeito ao bel-prazer de sua capacidade crítica (por exemplo, raça ariana em vez de classe do proletariado) desdobra ad infinitum o espírito de retificação: “A consciência de classe do proletariado é intencionalmente dirigida para a verdade – mesmo quando comete erros.” Que diferença faz se Joseph Goebbels tivesse pronunciado isso em vez de Lukács?
4.
Talvez todo o assombro do espírito jardineiro moderno com sua retificação autossuficiente caiba nas palavras de Horace Walpole em menção ao paisagista William Kent, segundo o qual “pulou a cerca e descobriu que toda a natureza era um jardim.” Espantada com a indiferença da natureza – múltipla, variável e orgânica -, a jardinagem moderna empenharia seu afã agrimensor até o limite da técnica, inviabilizando a espontaneidade da vida e sua variedade de manifestações. Aliás, por ser potentia, a vida é sempre uma ameaça. A partir deste processo, ao perder sua reserva ontológica e seu mistério, a vida decai a um nível exclusivamente biológico, resultando daí uma compreensão dessacralizada e, quando não, indiferentemente sanitária.
Entretanto, se recorrermos à noção aristotélica de “bios theoretikos” (vida contemplativa) – que se apresenta como o processo intelectual em toda sua maturidade, capaz de fomentar a noção integral sobre o ser humano; em sua acepção política, moral e teórica – a própria compreensão sobre a vida (meramente biológica) transcende seus condicionantes, para além dos meros mecanismos ideológicos. Diferentemente da noção pejorativa que se tem deste bios theoretikos, vale considerar que seu sentido efetivo só pode se consumar dentro da atuação individual na vida pública, de forma espontânea e livre, ou seja, sem as exigências culposas do discurso ideológico.
De um modo alternativo à vida moderna, a melhor via de acesso ao bios theoretikos encontra-se na Gramática do Assentimento (1870) de John Henry Newman, com seu conceito de ilação: “A vida é para a ação. Se insistirmos em provas para todas as coisas, jamais chegaremos à ação; para agir tens de supor, e tal suposição chama-se fé.” Haja vista, os quatorze atos de Misericórdia (sete atos espirituais e sete atos corporais) destacados magnificamente pelos Evangelhos, desdobráveis desde a passagem Mateus 25:35-46.
5.
Com a observação anterior se pode perceber que somente a consciência individual, no auge de seu bios theoretikos voltada para a ação, contraria as implicações destrutivas do élan ideológico. Desta forma, para os gregos antigos a excelência da capacidade intelectiva, a sede da bios theoretikos, encontrar-se-ia na cabeça, pois como nos diria Aristóteles: “O que é superior e mais nobre tende a estar no alto” (De partibus animalium). Logo, não é de estranhar que no auge da modernidade, com seu fôlego ideológico (mais especificamente com a Revolução Francesa), o estado jardineiro guilhotinasse seus respectivos inimigos com acaloradas justificativas, indispondo-os cabeça afora.
Não por acaso, é na modernidade que surge a palavra inglesa “grim“, como sinônimo de sombrio, decorrente do medo que uma cabeça desencarnada perambulasse assustadoramente pelas cidades. Do sentido adicional da palavra “grim“, acrescenta-se espectro ou fantasma. Estatisticamente, e em todos estes séculos, da modernidade para cá, quantas cabeças essas ideologias mais aclamadas já decapitaram, corroborando assim com as palavras de Lafcadio Hearn (“Estamos repletos de fantasmas”)?
Por mais que contabilizássemos hipoteticamente pouco menos que duas vítimas em todos estes séculos, ainda assim nenhuma razão de ser, nenhum alento ideológico justificaria o massacre, o vilipêndio e o assassinato de um homem ou de uma mulher. Fazê-lo – excetuados aqueles excludentes de ilicitude, como a legítima defesa – requer a observância de insanidade, ou de um vezo incorrigivelmente ideológico. Entretanto, como não os vejo relativamente distantes, costumo pensar que todo apelo de retificação que parte de um ideólogo, se remete naturalmente à seguinte situação, com a insuspeitada defesa de um delírio sem remorsos. Passados uns anos, portanto, logo após os julgamentos de Nuremberg, e retornando ao estádio daquela cidade aos 70 anos, o arquiteto de Adolf Hitler, Albert Speer, vendo algo destoante entre os escombros da suntuosa, porém fantasmagórica construção, afirmou: “O Führer ficaria furioso se soubesse que o concreto deixava passar ervas daninhas.”
O que espanta é que muitos ainda reiteram essas palavras com nomes diversos e com outras bandeiras; nada é mais espantoso que os fantasmas acéfalos dessas insepultas ideologias. No mais, das vítimas aos carrascos, todos seguem sem cabeça neste imprevisível jardim chamado história.
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Humberto Bueno Bello
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André Martins
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