O tempo destrói tudo, até o sonho socialista

Eduardo Galeano percebeu o fracasso do socialismo a tempo? Outros perceberam, de Kolalowski a Ferreira Gullar.


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Quem não se lembra daquela clássica foto em que o então presidente venezuelano, Hugo Chávez, deu de presente o livro As Veias Abertas da América Latina para o presidente dos EUA, Barack Obama? O livro do escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015) é indicado aos quatro ventos pela esquerda latino-americana aos jovens, por gerações e mais gerações. Mas o que existe de errado com ele?

Eduardo Galeano afirmou no aniversário em homenagem aos 43 anos do lançamento da obra que não concordava com o direcionamento do próprio livro: “Veias Abertas pretendia ser um livro de economia política, mas eu não tinha o treinamento e o preparo necessário”. Ele acrescentou: “Eu não seria capaz de reler esse livro; cairia dormindo. Para mim, essa prosa da esquerda tradicional é extremamente árida, e meu físico já não a tolera.”

Tal afirmação e posicionamento é um enorme choque aos militantes de esquerda, atuais e antigos. Imaginem a gama de profissionais do ensino que o elevaram a nível de “obra-prima” por anos? A afirmação de Galeano causou decepção em nomes como Isabel Allende, que escreveu texto introdutório numa das edições recentes do livro. Todo o frenesi sobre a causa da “pátria grande” latino-americana, por algum milagre indecoroso, nunca conseguiu ser o grande baluarte da educação, economia e prosperidade, como chegou a imaginar Galeano.

A esquerda especializou-se em culpar causas externas, como o colonialismo e o “imperialismo” de todas as grandes potências. Terá Galeano notado a tempo? É bem verdade que o autor escreveu o livro em um período de pós-juventude, onde os sonhos são mais importantes do que a racionalidade na busca das reais causas dos nossos fracassos continentais. Não é de hoje que tentam os revolucionários construir esse sonho que nunca se consolidou, devido, segundo a esquerda, às “forças estrangeiras”.

Segundo a teoria do historiador romântico e nacionalista paraguaio Juan Emiliano O’Leary (1879-1969), acredita-se, por exemplo, que a “última Guerra do Prata” foi causada por influência da Inglaterra! Para a enigmática teoria conspiratória, Brasil, Uruguai e Argentina guerrearam contra o paraguaio Solano Lopez. “É culpa do imperialismo”, dizem.

Galeano conviveu bastante com o peruano Mário Vargas Llosa (1936), renomado escritor de clássicos da literatura latina, como Guerra do Fim do Mundo (1981), onde aborda a Guerra de Canudos, e dedica a obra a Euclides Cunha (1866-1909). Vargas Llosa também era um ex-simpatizante da esquerda latina, e chegou a flertar com o governo de Fidel Castro. Porém, após o apoio de Fidel à invasão da URSS na Tchecoslovaquia (1968), Llosa passou a afastar-se dos movimentos de esquerda, e atualmente declara-se simplesmente ativista da liberdade na América Latina.

A história do conhecimento sempre apresenta vários pensadores que em determinado momento de suas vidas tornaram-se mais ou menos conservadores ou liberais. Alguns, mesmo diante das atrocidades de seus antigos ideais, não tiveram hombridade o suficiente, como foi o caso de György Lukács (1885-1971) e outros imponentes intelectuais da esquerda. Não obstante, viram, todos, seu mundo ir ao chão com o lançamento do Arquipélago Gulag(1973) de Alexander Soljenítsin (1918-2008), prisioneiro em campos de trabalho forçados soviéticos e o primeiro a fazer denúncias sobre as condições aterrorizadoras dos Gulags socialistas. Seguindo as denúncias, escreveu também Um dia na vida de Ivan Denisovich (1962).

É necessário lembrar o escritor polonês Leszek Kolalowski (1927-2009). Ávido marxista em boa parte da sua vida, escreveu posteriormente uma extensa obra de 1.200 páginas na qual critica o marxismo, em três volumes intitulados As Principais Correntes do Marxismo (1976). Ele leu em John Locke (1632-1704) as bases do liberalismo moderno, e não poupou críticas à Crítica da razão dialética (1960) de Jean-Paul Sartre (1906-1980) e ao marxismo campesino do maoismo na China, bem como ao comunismo que devastou os países do leste da Europa.

E os nossos escritores brasileiros? Poderíamos começar não somente com Graciliano Ramos (1892-1953), que chegou a filiar-se ao Partido Comunista e logo depois se afastou. Jorge Amado(1912-2001), um dos maiores best-sellers da literatura brasileira, ao assistir ao fim da URSS pela televisão, viu a realidade do fim do socialismo real, e seu mundo de crenças desmoronou ao descobrir que Stalin não era o pai dos pobres, como imaginava. Para o ex-deputado do Partido Comunista, o mundo cruel e as verdades expostas pelo governo de Mikhail Gorbachev (1931-) foram cruciais à derrocada do sonho.

E quanto ao poeta Ferreira Gullar (1930-)? Em um passado não tão distante, cantou alegorias à revolução e comentou que “a beleza da moça é tão bela quanto a revolução cubana”; hoje considera o socialismo uma utopia e o capitalismo uma força invencível. Sobre a insistência em ser socialista no mundo moderno, diz: “Quando ser de esquerda dava cadeia, ninguém era. Agora que dá prêmio, todo mundo é”. Nada melhor do que o tempo. O grande problema de lutar por utopia e contra o capitalismo é tentar construir um sistema baseado em sonhos cuja aplicação só gera miséria e tragédias, enquanto a tal “força do capitalismo” é apenas um sistema econômico natural, não um sonho.

A realidade é sempre mais prática do que qualquer romance. As “veias” da América Latina precisam de oxigênio, de mais liberdade. Você não precisa chegar aos 70 anos para enfim perceber o inevitável.

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