Leo Strauss estuda tipos de repressão ao pensamento situados entre o extremo de brutalidade da Inquisição e o extremo do “mero” ostracismo social
Este livro é uma excelente introdução à elegante escrita do filósofo Leo Strauss (1899-1973) e a seus (polêmicos) poderes de exegese. O núcleo são três longos ensaios sobre Yehuda Halevi (1075-1141), Maimônides (1138-1204) e Espinosa (1632-1677), que centram em obras específicas suas para tentar demonstrar como a literatura dos três é “esotérica”, repleta de aparentes contradições que visaram, na verdade, livrar seus autores da perseguição de sociedades adeptas da censura.
Halevi, Maimônides e Espinosa, defende Strauss, são exemplos de autores que, ao longo da história, demandam um tipo de leitor especial, capaz de ler as entrelinhas de seus escritos e tirar o significado essencial. Isso, claro, torna a leitura dos três pensadores assaz demandante. Mas é assim que o jogo deve ser jogado, diz Strauss.
Strauss que, igualmente, também não é um autor fácil de ser lido. O que ele diz de certos clássicos – “As obras dos grandes autores do passado são belas mesmo quando vistas de fora. Não obstante, sua beleza visível não passa de feiura se comparada à beleza daqueles tesouros ocultos que só se revelam após um trabalho assaz demorado e nunca fácil, mas sempre prazeroso” – serve em grande parte para a leitura dos próprios ensaios de Perseguição.
A “literatura exotérica”, escreve Strauss no ensaio “Perseguição e a arte de escrever” pressupõe uma sociedade não liberal. A literatura esotérica, outra face da moeda, também. O autor toma “liberal” em sentido amplo – uma sociedade liberal é aquela que, no mínimo, permite a livre expressão de ideias contrárias às ideias consagradas pelas autoridades –, e é por isso que pode falar da sociedade de Halevi, por exemplo, como não liberal, numa época em que a democracia liberal sequer estava no horizonte.
Nas sociedades não liberais, a perseguição a ideias fora do mainstream leva a uma “lógica equina”, segundo a qual “uma declaração repetida constantemente e jamais contradita deve ser verdadeira”, e “a declaração de alguém responsável e respeitável, e portanto de alguém que ocupa uma posição de alta responsabilidade ou prestígio, é moralmente certa”.
Mas a perseguição “é incapaz de impedir o pensamento independente”, porque em toda sociedade, por mais repressora que seja, existem indivíduos que não seguem a lógica equina. E não a seguem por superioridade intelectual. É para esses poucos, de acordo com a análise straussiana, que gigantes como Espinosa realmente se endereçavam, utilizando da técnica da escrita nas entrelinhas.
O atalho para se descobrir o que está nas entrelinhas é bastante complexo, e envolve um pensamento quase matemático, esmiuçado por Strauss principalmente no ensaio sobre o Guia dos perplexos de Mainônides (ver especialmente a página 79). Por outro lado, critérios especiais para quando não se deve ler uma obra nas entrelinhas são elencados anda no primeiro ensaio (páginas 40-42).
O fato dos três autores analisados por Strauss serem judeus não é acidental. Segundo ele, a relação filosofia-teologia na tradição judaica (assim como na islâmica) é fundamentalmente diferente da encontrada na tradição cristã.
Para o cristão, a doutrina sagrada é a doutrina revelada; para o judeu e o muçulmano, trata-se, ao menos primeiramente, da interpretação legal da Lei Divina. (…) é por essa razão que o prestígio da filosofia era muito mais precário no judaísmo e no islamismo do que no cristianismo: neste, ela tornou-se parte integrante da formação oficialmente reconhecida – e até mesmo exigida – do estudioso da sagrada doutrina. Essa diferença explica, em parte, o derradeiro colapso da investigação filosófica no mundo islâmico e judeu, um colapso que não encontra paralelo no mundo cristão ocidental.
Para Halevi e Maimônides, ou se era judeu, ou se era filósofo. Para Espinosa, os judeus desprezavam a filosofia. Se os escolásticos cristãos beberam na fonte de Aristóteles, Cícero e do Direito Romano, os filósofos judeus e muçulmanos beberam em Platão. Estes últimos defendiam os interesses da filosofia contra o interesse religioso. A perseguição intelectual das autoridades religiosas, portanto, levou Halevi, Mainônides, Espinosa e tantos outros a adotarem a escrita nas entrelinhas.
Perseguição e arte de escrever, portanto, estuda tipos de repressão ao pensamento situados entre o extremo de brutalidade da Inquisição e o extremo do “mero” ostracismo social – os tipos, segundo Strauss, “mais importantes do ponto de vista da história literária ou intelectual”.
Publicada inicialmente em 1952, a obra tem traços fundamentais do pensamento straussiano, como a inseparabilidade de filosofia e política e um elitismo que, muitos anos depois, alguns estudiosos do pensamento americano colocariam como de grande influência no advento do movimento neoconservador.
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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