Quando grande parte da opinião pública dos EUA ainda via na URSS um aliado importante, Kennan advertiu sobre a ingenuidade (e o perigo) dessa ideia
1.
Não é todo dia que se vê uma biografia com o fôlego de A Vida de George F. Kennan. Aliás, não é todo dia que se vê tamanha simetria (intelectual, política e retórica) entre biografado e biógrafo. De um lado, George F. Kennan (1904-2005): um dos principais responsáveis pela estratégia da política externa norte-americana durante o período da Guerra Fria – com tudo de positivo e negativo que isso implica. Do outro, John Lewis Gaddis: o acadêmico que, ao longo dos anos, se notabilizou como o principal intérprete da historiografia norte-americana sobre a Guerra Fria – com tudo de positivo e negativo que isso implica.
Ao longo de mais de setecentas páginas, Gaddis nos conta a história de Kennan – começando por sua infância, passando pela educação em Princeton, seus inúmeros cargos públicos, sua vida acadêmica, até chegar à sua velhice e morte. A propósito, Kennan morreu apenas em 17 de março de 2005. Com cento e um anos de idade, momento no qual ficara acordado que só então seria publicada a biografia. Gaddis obteve acesso irrestrito aos documentos e diários de seu biografado, a maior parte manuscritos, que ocupam doze das 330 caixas com material sobre Kennan – e se encontram na Seeley G. Mudd Manuscript Library, na Universidade de Princeton, e estão disponíveis para pesquisa do público geral. Além disso, Gaddis conseguiu colher depoimentos pessoais de um sem-número de familiares e amigos íntimos de Kennan.
É interessante notar que, muito embora a pesquisa para o livro tenha sido extremamente rigorosa, além de consequência direta da análise minuciosa de farta documentação histórica e fontes primárias, o modelo de escrita, e mesmo de análise, seguiu a sugestão de Kennan em mimetizar a famosa biografia de Henry James, feita por Leon Edel. Isto é, o importante era prestar atenção não somente àquilo que os registros apontavam. Ao contrário, os silêncios e elipses poderiam igualmente revelar pontos sutis e relevantes sobre o biografado e o contexto que o circundava.
Foi durante o período em que Kennan trabalhou no Foreign Service, uma agência federal com atribuições diplomáticas e consulares ligada ao Departamento de Estado norte-americano, que ele finalmente desenvolveu a personalidade pela qual ficaria conhecido. Nos termos de Gaddis, a melhor forma de compreender essa tal personalidade é imaginá-la como “um triângulo cujos lados se mantêm unidos pela tensão” (p.65). Segundo essa perspectiva, o primeiro lado corresponderia ao seu profissionalismo. Isto é, à reputação que ele constituiria ao longo de anos, na burocracia do governo federal norte-americano, como o maior especialista em Rússia (não apenas com relação à sua política, mas, sobretudo, à cultura do país). O segundo lado dizia respeito ao seu pessimismo cultural. Para Kennan, a civilização ocidental era inescapavelmente frágil, e possuía uma incapacidade latente em lidar não apenas com as ameaças externas, mas igualmente com suas próprias contradições internas. Dito de outra forma, ela continha em si mesma as sementes de sua própria ruína. O terceiro lado do triângulo era a sua angústia pessoal – que, de um modo ou de outro, condicionava os dois outros lados.
Antes de nos atermos ao pensamento político de Kennan voltado à política externa norte-americana, é interessante falarmos um pouco sobre suas ideias a respeito da agenda doméstica dos EUA. Em sua visão de mundo, havia a constante presença de inequívocos traços conservadores; entretanto, seu conservadorismo não era de matiz liberal, mas antes temperado por certo ceticismo filosófico continental, bem diverso das ideias mainstream do ambiente intelectual dos EUA. Por exemplo, Kennan frequentemente discordava da ortodoxia liberal americana, sempre pronta a equiparar qualquer ação do Estado à coerção e autoritarismo. Para ele, ao contrário, esse traço sociológico e cultural dos EUA poderia levar o país a sofrer “ilimitadas injustiças e violações da liberdade por parte de irresponsáveis grupos privados, mas nada disso por parte de responsáveis agências governamentais (…)”.
Para compreendermos melhor as bases nas quais se fundamentava o seu argumento, é necessário recordar que, como escrevera em uma carta, durante meados da década de 1930, uma das maiores ameaças à liberdade era a ação irresponsável do big business no tecido social norte-americano. Para ele, por exemplo, a resistência dos americanos diante de qualquer ação governamental reguladora dos efeitos nocivos da industrialização era análoga à conduta das “tribos etíopes em face dos ataques italianos a gás” (p.100).
Além da preocupação com a fragilidade estrutural da economia durante a década de 1930, Kennan era imensamente cético com relação à capacidade política e à durabilidade das instituições democráticas norte-americanas. Tendo como base o modelo de organização e racionalização administrativa da Alemanha nacional-socialista e da União Soviética, Kennan acreditava que era imperativo que os EUA adotassem com urgência um modelo de Estado com um poder central mais forte do que aquele previsto na Constituição – a principal finalidade seria, de um lado, estar à altura dos seus rivais no plano externo e, do outro, ser capaz de “resgatar os indivíduos das privações econômicas e da injustiça social” (p.100).
2.
No relato de Gaddis ficam patentes algumas das principais influências intelectuais de Kennan. Talvez a maior delas tenha sido a obra clássica Ascensão e Queda do Império Romano, de Edward Gibbon, lido por ele em meados da década de 1940. George F. Kennan era simpático à ideia de historia magistra vitae. Era imprescindível conhecer bem as lições do passado antes de dar passos em direção ao futuro, portanto. De Gibbon, ele assimilara com atenção a advertência de que convém ser prudente com a ocupação dos territórios de adversários vencidos – uma vez que uma consequência não intencional da manutenção de forças de ocupação é insuflar o espírito de resistência e combate dos povos ocupados.
Era precisamente esse conselho que Roosevelt e Churchill deveriam ter ouvido no momento da Conferência de Casablanca, em janeiro de 1943. Isto é, para Kennan, a política de rendição incondicional da Alemanha certamente ocorreria a partir de um grau reduzido de responsabilidade dos Aliados, o que precipitaria um futuro ambiente de caos social e de incertezas políticas. Além disso, ele igualmente discordava da ideia de “desnazificação”. Aqui, Kennan argumentava que deveria ocorrer a “triagem e punição dos mais notórios e ostensivos líderes nazis”, o que certamente não significava a completa retirada de antigos membros do partido da esfera burocrática da administração do país.
O mais importante para Kennan era evitar que a Alemanha caísse em uma espiral de convulsão social no pós-Segunda Guerra. Ademais, era imperativo que se evitasse a imposição de uma responsabilidade pública aos elementos liberais e democráticos do país justamente no momento de catástrofes e humilhações inauditas. Como bom conservador e analista realista, sua principal preocupação era com a preservação de uma ordem social e política com um razoável grau de estabilidade. Apartando-se a fórceps os ex-integrantes do Partido Nazista da burocracia do governo alemão, o Estado se tornaria completamente disfuncional e desordenado. (Aqui Kennan demonstrava razoável presciência analítica, pois foi basicamente o que viria a ocorrer com o Iraque a partir da invasão norte-americana em 2003, quando membros da administração pública foram exonerados de seus cargos por possuírem antigas relações com o Partido Baath.)
3.
O livro de Gaddis é especialmente bom quando analisa, sob ângulos diferentes, alguns fatos já bem conhecidos da política externa dos EUA. Por exemplo, é interessante colocar em perspectiva o contexto no qual Kennan escreveu o documento que ficaria historicamente conhecido como “o longo telegrama” – no qual descrevera para a Secretaria de Estado dos EUA, em minúcias, o funcionamento da política soviética. Em primeiro lugar, Gaddis chama atenção para a estrutura retórica do documento, que fora ordenadamente dividido em cinco partes separadas, como um sermão protestante do século XVIII. Além disso, salta aos olhos o posicionamento de Kennan no que diz respeito não somente à política externa, mas igualmente à política doméstica norte-americana. Por exemplo, embora desde o início ele tenha se posicionado com inequívoca lucidez sobre o real caráter soviético, há a preocupação constante, ao longo de todo o documento, em diferir (em tom, mas também em conteúdo) do histrionismo do discurso anticomunista nos EUA. Para Kennan, o contencioso com a União Soviética deveria ser obrigatoriamente resolvido de forma pacífica. E assim o seria por conta de alguns motivos enumerados ao longo do telegrama.
Em primeiro lugar, os comunistas não possuíam um mecanismo destinado à substituição ordeira de seus próprios líderes. Em segundo, a URSS estava anexando indiscriminadamente territórios que tinham “enfraquecido gravemente o seu antecessor czarista” (p.221). Para Kennan, poderíamos aguardar que ocorresse um processo historicamente análogo com a União Soviética. Em terceiro lugar, as lideranças soviéticas careciam de legitimidade diante do povo russo. Além disso, os comunistas eram militarmente mais fracos do que os americanos e mantinham um regime político assentado basicamente em propagandas negativas e destrutivas. Para Kennan, deveria ser fácil combatê-lo com um programa que fosse basicamente “inteligente e construtivo”. Em última análise, a União Soviética entraria em colapso por conta de suas próprias contradições internas. Aos EUA restaria apenas se pautar por uma atitude conservadora prudente e paciente. O que estava em jogo era realismo político, portanto.
Face ao contexto peculiar da Guerra Fria, Kennan acreditava que era necessário a criação e a adoção urgente de uma grande estratégia norte-americana. Até então, a política externa dos EUA tinha se comportado de forma errática, excessivamente ao sabor das contingências históricas e políticas. Para ele, era oportuno que a burocracia federal diplomática se pautasse por princípios básicos e permanentes. Após a leitura de Makers of Modern Strategy, uma seleção de ensaios sobre pensadores da política externa europeia, feita por Edward Mead Earle, Kennan mais uma vez deixou seu impulso conservador falar mais alto: a história (a Europa do século XVIII, especificamente) poderia, afinal de contas, ter mais uma lição ou outra a ser ensinada aos EUA da Guerra Fria.
A partir da leitura dos ensaios da coletânea de Earle, Kennan dirigiu grande atenção especificamente a dois estrategistas europeus do período pós-napoleônico. O primeiro foi o estrategista suíço Antoine-Henri Jomini, abordado pelos historiadores Crane Brinton, Gordon Craig e Felix Gilbert. No ensaio, era francamente admitido que Jomini fosse pouco lido, e mesmo que carregava algo de ultrapassado e anacrônico (p.234). No entanto, fora responsável por uma formulação que ainda seria muito importante para Kennan – a ideia de que o problema central da guerra era deixar ao inimigo apenas duas opções: de um lado, a retirada, e do outro, o combate em condições desfavoráveis. A doutrina de contenção, que seria formulada por Kennan algum tempo depois, se assentava basicamente a partir dessas duas opções.
O segundo estrategista apreciado por Kennan foi o teórico prussiano Carl von Clausewitz, abordado em ensaio de Hans Rothfels – na época, um dos melhores estudos em inglês sobre o pensador. A primeira ideia de Clausewitz que agradou ao diplomata americano foi o argumento de que, em primeiro lugar, deve-se desarmar o inimigo psicologicamente: isto é, ao adversário deve ficar claro que a vitória “ou é improvável ou muito onerosa”. Para que isso ocorra, é necessário que se encontre o “centro de gravidade” do oponente – que pode ser “um exército, uma cidade importante, uma aliança ou até mesmo a opinião pública” (p.235).
Além desse ensinamento, Kennan julgava de grande importância a famosa (e frequentemente citada) afirmação de Clausewitz de que “a guerra é a continuação da política por outros meios”. Isso significava que a guerra jamais poderia ser tomada como um fim em si mesma; ao contrário, precisaria estar sempre subordinada aos objetivos concretos de política externa. O corolário disso era a ideia de que era importante evitar a todo custo um combate direto com a União Soviética. A melhor alternativa seria “uma guerra política, uma guerra de atrito por objetivos limitados” (p.235).
4.
A melhor forma de se compreender o pensamento de política externa de George F. Kennan é dar atenção ao seu posicionamento diante dos dois principais impulsos presentes na diplomacia dos EUA: um, universal, e o outro, particularista. Segundo ele, o primeiro aplainava as diferenças nacionais (do sem-número de Estados do sistema internacional), as condensava e tentava reduzi-las a um simples denominador comum – para a melhor compreensão dos impacientes policy makers americanos. Já com relação ao segundo impulso, havia a preocupação em questionar “conceitos legalistas”, além da admissão da presença constante de considerações pautadas pragmaticamente por uma lógica de equilíbrio de poder. Kennan se posicionava inequivocamente simpático ao argumento particularista, e avesso ao universal (p.299).
Essa atenção ao particular foi o que levou Kennan a perceber, ainda na década de 1940, a diferença entre os inúmeros regimes comunistas da época. Naquele momento a posição majoritária no governo americano estava refletida na Doutrina Truman – segundo a qual o comunismo era lido como “uma doutrina única, coerente, unitária e autoconsciente” (p.353). Para Kennan, era importante estabelecer uma diferença entre o que era o desdobramento, por assim dizer, natural de uma agenda comunista e aquilo que era meramente o imperialismo russo em ação. Estabelecendo esse contraste, talvez fosse possível retirar a China e outros países comunistas da esfera de influência soviética – e mais que isso, talvez fosse possível eventualmente abrir canais diplomáticos com esses países. Isso significa que, ao imputar ao comunismo um grau tão elevado de coordenação e coesão, a rigor, o governo americano estava ele mesmo persuadido pelo hiperbolismo da propaganda soviética. Para Kennan os principais obstáculos a combater durante a Guerra Fria eram dois: no plano externo, o expansionismo e militarismo do imperialismo russo e, no plano doméstico, um anticomunismo “primitivo dirigido contra um conjunto de teorias políticas vagamente definido, obsoleto, autocontraditório e possivelmente moribundo” (p.353).
Além de ter sido o responsável por boa parte do que ficou conhecido como a grande estratégia norte-americana durante a Guerra Fria, Kennan igualmente escreveu e falou de modo prolífico sobre o estado (que lamentava) da cultura e do sistema educacional superior nos EUA. Por exemplo, em uma edição da The Atlantic Monthly, na década de 1950, da qual foi capa, ele lastimava que o campo das Relações Internacionais se tornasse algum tipo de extensão do Direito, ou mesmo de uma ciência social. Para ele, a melhor preparação para a diplomacia residia no estudo atento da História, além “das expressões mais sutis e reveladoras da natureza humana”, que poderiam ser encontradas através da arte e da literatura (p.489). Kennan acreditava que mais importante do que o estudo de modelos teóricos do campo das Relações Internacionais era a leitura da Bíblia, de Shakespeare, Plutarco e Gibbon, por exemplo. Somente a partir daí que os estudantes conseguiriam obter as virtudes necessárias à diplomacia – “honra, lealdade, generosidade e consideração pelos outros” (p.490). Uma das principais objeções de Kennan ao macarthismo, por exemplo, não era apenas a demagogia política e a degeneração do discurso, mas, sobretudo, o seu anti-intelectualismo característico e histérico.
No fim das contas, a importância de Kennan na formulação da política externa norte-americana fora fundamental. Ele, mais do que qualquer outra pessoa de sua época, reunia a credibilidade e a argúcia analítica necessárias na denúncia do verdadeiro caráter do regime soviético. Em um momento no qual parte significativa da opinião pública dos EUA ainda via o governo russo como um aliado internacional importante, Kennan advertiu sobre a ingenuidade (e o perigo) dessa ideia. Seu argumento desencorajava frontalmente qualquer tentativa de acomodação de longo prazo, uma vez que a conjunção de razões históricas russas e premissas subjacentes ao argumento marxista-leninista demonstravam a vacuidade desse tipo de intenção. No entanto, seguindo uma tradição de realismo político (que vinha de Sun Tzu, passava por Maquiavel e chegava a Clausewitz), ele achava que os EUA e seus aliados poderiam precipitar um quadro no qual a União Soviética acabasse por derrotar a si mesma.
Kennan chegou a essa ideia através de alguns autores muito importantes na constituição de sua visão de mundo. Gibbon, por exemplo, o alertou sobre a dificuldade do império romano em administrar, sob prazo indefinido, territórios conquistados em inúmeras guerras. As obras de escritores como Tolstói, Dostoievski e Tchekhov demonstraram a clara dissonância que havia entre a resistência espiritual do povo russo ao projeto revolucionário e a agenda política soviética. Além disso, Kennan acreditava que os EUA deveriam sempre se pautar por seus princípios fundacionais, além de conter a ânsia expansionista da URSS e aguardar pacientemente a implosão de seu nocivo regime.
O livro de Gaddis faz um uso muito interessante das fontes. Ele situa a narrativa histórica sempre em três planos diferentes: 1) a partir do ponto de vista do biografado (de acordo com os escritos de seu diário íntimo e de suas correspondências pessoais); 2) a partir do contexto histórico do momento analisado e 3) a partir de uma síntese pessoal dos dois primeiros planos. É possível que o maior problema da obra seja o explícito tom laudatório. De todo modo, é inegável que, ainda por muito tempo, A Vida de George F. Kennan será uma referência historiográfica incontornável não apenas para todos os interessados na vida do maior diplomata norte-americano, mas também para os estudiosos da Guerra Fria e da política americana e europeia contemporânea.
Gabriel Trigueiro
Doutorando em História Comparada na UFRJ. Especialista em história intelectual americana.