Com sugestividade e um impressionante contorno lírico, o diretor chinês trabalha os horrores da Revolução Cultural
O enfrentamento ou a mera sobrevivência a regimes despóticos inciados no século XX (muitos infelizmente continuados no atual) renderam livros e filmes memoráveis. No cinema brasileiro, basta lembrar de Pra Frente Brasil, de Roberto Farias, ou Cabra Marcado pra Morrer, de Eduardo Coutinho; são exemplos suficientes para que se perceba que a temática é capaz de produzir clássicos. Em todo o mundo, filmes mais ou menos conhecidos retrataram momentos históricos inesquecíveis, não pela beleza ou pelo maravilhamento, mas pelo horror, pela opressão totalitária e o nonsense de ter de viver em meio a ditaduras. Poucos diretores, entretanto, após obterem sucesso comercial, costumam voltar à temática, normalmente permeada por aspereza e não pouca violência. Não é o caso do diretor chinês Zhang Yimou, que no seu mais recente filme, Coming Home (Gui Lai, em chinês), voltou a mostrar nuances menos explícitas da violência subjacente à Revolução Cultural liderada pelo “timoneiro” Mao Tsé Tung, entre os anos de 1969 e 1976.
Yimou, que em 1994 havia recebido o Grande Prêmio do Júri em Cannes por Tempos de Viver (Huo Zhe), abordando a trajetória de uma família desde a década de 40 até os anos 80, ou seja, atravessando os anos em que o regime de Mao governou o país, experimentou ele mesmo o expurgo do cinema chinês, sob a acusação de que estaria denegrindo a revolução comunista. Vinte anos depois, na mesma Cannes, Yimou voltou a vivificar os momentos de maior radicalização ideológica em seu país, mas desta vez sem concorrer à premiação, com Coming Home sendo exibido fora da premiação. Para tanto, ele ainda pode contar com a atriz Gong Li, com quem produziu alguns dos mais premiados filmes chineses, como Sorgo Vermelho, Lanternas Vermelhas, A História de Qiu Ju e o próprio Tempos de Viver, que ela também protagonizou.
Yimou, cuja filmografia passa por filmes que enfocam a vida tradicional e os costumes da China pré-revolucionária e até mesmo por películas do assim chamado wushia, cinema baseado em histórias de heróis das artes marciais, bastante populares na China, é um dos diretores mais conhecidos e premiados no ocidente. Diferentemente de filmes com baixo orçamento, típicos das produções dos anos 70 dos estúdios de Hong Kong, Yimou realizou filmes de alto orçamento, produções elaboradas beirando o épico (ou um improvável barroco chinês), como o filme Herói ou O Clã das Adagas Voadoras. Curiosamente, Herói foi coproduzido com Quentin Tarantino, vencedor da Palma de Ouro com Pulp Fiction no mesmo ano em que Tempos de Viver levou o Grande Prêmio do Júri.
Sem deixar de ser também uma espécie de épico, Coming Home (que deverá chamar-se De Volta Para Casa no Brasil) é um filme caprichado ao extremo nas especialidades de Yimou, a fotografia impecável e a direção de arte. Mas este seria apenas mais um épico de aventura, não fosse o tema escolhido um dos mais candentes do seu próprio país. Não poderia ser diferente para quem passou o período da Revolução Cultural justamente nas linhas de produção estatais, na tecelagem do algodão, quase o oposto da seda imperial onipresente em seus filmes wushia, em que a pancadaria é comandada pela fantasia.
Em Coming Home, baseado no livro da escritora Geling Yan, a pancadaria, por outro lado, é comandada pelo real, mas narrada a partir de uma sutileza incomum. Quando o mais fácil seria escancarar o horror da violência totalitária mostrando a dor em seu estado lancinante, Yimou quase apenas a sugere e centra fogo não em uma encenação realista, mas em uma metáfora que diz respeito a muitas maneiras que democracias recém postas tratam o passado arbitrário, não que seja este o caso da China. Porém, talvez exatamente por isso, pela iminência permanente de um reviver de violência e opressão política e cultural, Yimou tenha escolhido mostrar o desenlace de seu enredo tendo como elemento central a temática da perda da memória.
Em entrevista a O Globo, o diretor declarou que um filme como Coming Home precisa ser feito em seu país para que a memória não seja simplesmente apagada, para que ela mostre até onde é possível chegar-se na ausência da liberdade.
A personagem de Gong Li, Feng Wanyu, perde a memória justamente no momento em que o marido Lu Yanshi, interpretado pelo ator Chen Daoming, retorna para casa após o expurgo promovido pela Revolução Cultural, cerca de 20 anos após sua prisão, mas encontra uma família destroçada. Ambos professores, ela preferiu não se opor ao endurecimento do regime, mas ele pagou por sua oposição com a liberdade, como aconteceu na realidade com milhares de professores que desejavam, na época, depurar o regime maoista, mas receberam em troca perseguição e ostracismo. O duro do roteiro adaptado por Yimou é que este pai é justamente levado à prisão por meio da delação de sua filha, a bailarina Dandan, formada no sistema de doutrinação imposto nas escolas chinesas. E, a partir desse momento, uma série de violências apenas sugeridas acontece com a família. Neste ponto, que para muito filmes sobre regimes autoritários seria o ápice, como se por uma necessidade de saturação, em Coming Home é quando o drama dá lugar ao épico e começa a desenrolar-se o restante da vida dos personagens. O restante da vida possível.
Daí em diante, deste ponto de retorno que jamais chega a cumprir-se, porque a personagem nunca recobra completamente a memória do marido, o filme ganha um contorno lírico impressionante, embora muitos possam por isso vir a classificá-lo como melodramático. Neste momento, com a Revolução Cultural já finalizada e o regime dando indícios de uma incipiente rarefação, com a reabilitação dos professores aprisionados e banidos, quer dizer, daqueles que puderam sobreviver às condições degradantes impostas por Mao. No filme, pode-se saber de colegas de ambos que se suicidaram ou simplesmente não voltaram para suas casas e famílias nunca mais. A narrativa de Yimou, neste caso, por sugerir a dor subjacente a um momento histórico tremendo como este, é mesmo comovente, caso essa palavra tão em voga chamada empatia possa ser empregada em relação a um passado nem tão distante, mas que é sem dúvida um exemplo inexpugnável do horror que é viver em um regime sem liberdades.
Daquele momento preciso do retorno de Yanshi até o envelhecimento de ambos, passando-se anos a fio, nos quais ele tenta recuperar a própria identidade (que é afinal de contas dependente do reconhecimento dela, a esposa), ele encontra uma maneira de manter-se ao mesmo tempo junto a ela, sem desistir da ideia de ser recebido e identificado. Ele começa a ler, sem que ela jamais o reconheça, as cartas que escreveu da prisão e até mesmo a forjar estratagemas de convencimento para que a memória dela o perceba e receba em sua própria casa novamente. Em determinado momento, uma conhecida de ambos, também professora, determina e garante “em nome do regime” que ele é mesmo o seu marido, mas a violência sistemática, até mesmo sexual, perpetrada por agentes do mesmo regime, enfim revelada, é traumática demais. Em busca de vingar-se de alguma forma, ele vai perceber que a violência, ao fim das contas, não é casual, mas deflagrada pelo desespero social e que mesmo os algozes do regime maoista são vítimas de uma violência ainda maior, de ordem política, capaz de encobrir a razão social com truculência de sobra e muitas palavras de ordem.
Através da delicadeza da trilha sonora composta e executada pelo pianista Lang Lang, primeiro chinês a figurar com a Filarmônica de Berlim, a história avança e, diante da impossível recuperação da memória da esposa, o incansável professor, em uma cena por si só antológica, une-se a ela na espera por ele mesmo, jamais reconhecido. Com a compreensão da filha e com a família reunida em torno do possível mais do que pelo desejável e do que seria digno e justo, Yimou desenha, através da impecável atuação de seus atores, de uma forma verdadeiramente indescritível o que a capacidade de sobrevivência do afeto torna possível aos seres humanos, mesmo nas mais precárias situações. Convenhamos que sobreviver à Revolução Cultural maoista é dos exemplos mais formidáveis de onde extrair-se um roteiro e uma história de amor vigorosa como a contada em seu filme.
Lúcio Carvalho
Editor da revista digital Inclusive. Lançou em 2015 os livros Inclusão em pauta e A aposta (contos).
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