A nova edição de 'A Rebelião das Massas', com o prefácio de Julian Marías, mostra que ainda é importante em nosso tempo ler Ortega y Gasset.
Um único fato é simbólico dos tempos em que vivemos, em sua característica mais profunda. Em 25 de maio, poucos dias após Michel Temer constituir o governo provisório por conta do afastamento de Dilma Rousseff, Alexandre Frota se reuniu com o ministro da Educação. Não foi Gustavo Iochpe, Neca Setúbal, Gabriel Chalita, Mário Sérgio Cortella ou qualquer outro “formador de opinião” sobre educação. Não foi também nenhum líder político e social. Foi Alexandre Frota, cujo currículo dispensa descrições.
O fato é simbólico por diversas razões. Por um lado, pela naturalidade com que um ministro da Educação que acabava de assumir o governo, e cuja agenda deve ser bastante ocupada, recebe em audiência alguém que tem pouco a contribuir para sua pasta. A agência Lupa mostrou inclusive que a agenda da reunião não tinha relação alguma com a Educação. Contudo, a reação foi marcada pelo posicionamento ideológico: quem se opunha ao governo Temer lembrou que Frota fez apologia ao estupro, enquanto quem defendeu lembrou os vínculos do ator com o movimento Revoltados Online.
O que não houve foram manifestações de espanto com o fato de que Alexandre Frota jamais deveria estar ali, em qualquer circunstância, independente do seu histórico como ator pornô ou de declarações levianas que tenha feito. Ou façamos um teste: se, ao invés do Frota, fosse a Valeska Popozuda? Os sinais estariam trocados, mas a reação de naturalidade seria a mesma. Com exceção de uma minoria com sinais de normalidade intelectual, a maioria sequer se questionaria do fato de que nem Frota nem nossa suposta Valesca deveriam estar naquela audiência.
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Provavelmente os três primeiros parágrafos serão duramente criticados nas redes. É inevitável. Afinal, quem sou eu para decidir quem pode e quem não pode falar sobre qualquer tema? Estaria eu, afinal, questionando a contribuição que a vivência de um Frota pode trazer ao debate? Seria eu, afinal, um elitista? E, ao citar Valesca Popozuda, estaria eu deliberadamente agindo contra o empoderamento feminino e das classes menos favorecidas?
O que é terrível aqui é como qualquer um se sente, por um passe de mágica, autoridade em tudo. Frota é apenas um exemplo extremo de uma avalanche de “formadores de opinião” online que de repente se tornaram referências sobre temas que exigem um pouco mais do que acesso à internet e capacidade de digitação para que se possa emitir alguma opinião abalizada. De Bel Pesce a Madre Teresa de Calcutá, todo mundo tem algo a dizer. E ai de quem se opõe. Esta é a era do empoderamento.
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É neste contexto que a nova edição de A rebelião das massas se torna relevante. Especialmente porque diferentemente da edição da Martins Fontes e a versão online da Ridendo Castigat Mores, esta da Vide Editorial conta com a introdução de Julian Marías, discípulo de Ortega y Gasset, e que oferece um roteiro de leitura interessante para escaparmos da armadilha da politização. Em especial, a proposta de Marías é apontar, nesta que é a obra mais lida e traduzida do filósofo espanhol, as referências à sua filosofia e sua obra que não estão de quem não lê em espanhol.
De fato, ao leitor desavisado a obra aparece como uma defesa do liberalismo contra os totalitarismos do século XX, ou mesmo como uma defesa de um certo aristocratismo político contra a política de massas. Mas não se trata disso, simplesmente. Alerta Marías:
Isto fez com que a obra de Ortega fosse entendida politicamente, ou seja, não fosse bem entendida. (…) Isto quer dizer que A rebelião das massas não tem nada a ver com política? Claro que tem, e seu significado político é muito maior hoje que o de quase todos os livros de política do último meio século [o texto de Marías é de 1975]; mas isso é assim por ter abordado os problemas políticos em sua raiz social, num nível mais profundo que o da política. A grande maioria dos leitores de A rebelião tinha uma optica políticamente condicionada e, a rigor, não leu mais do que aquilo que, nesse livro, tem uma significação política direta; o que quer dizer que sua leitura foi parcial, incompleta, insuficiente e, em última instância, politicamente insuficiente.
Se consola Marías, a leitura politicamente insuficiente não é um privilégio de Ortega y Gasset. É, antes, uma chaga de nosso tempo. Um tempo em que, como lembra Martim Vasques da Cunha em A poeira da glória, os intelectuais “mal sabem quais são as suas próprias opiniões sobre a natureza do ser humano, seu lugar no mundo, seu lugar na sociedade e na história, e sua relação com qualquer coisa que saia de seu horizonte terrestre”.
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Meu primeiro contato com Ortega y Gasset não foi com A rebelião das massas, mas com o curioso ensaio “A caça como exercício e como ética”, publicado originalmente como prefácio de um livro sobre caças do conde de Yetes. Neste trabalho, o filósofo reflete como a caça foi nos moldando enquanto homens, e como a sua prática teve que ser mantida mesmo com a escassez de presas e a evolução da técnica, processos que tornavam a caça inviável. Ao se perguntar porque o esforço da humanidade em manter a prática da caça apesar de tudo, conclui:
Os demais seres vivem, sem mais. Ao homem, entretanto, não lhe é permitido deixar-se apenas viver, pelo contrário, pode e deve dedicar-se a viver, ou seja, a entregar sua vida, ou partes dela, deliberadamente e sob sua intransferível responsabilidade, a determinadas ocupações. A dedicação é o privilégio e o tormento de nossa espécie.
Ao ler A rebelião das massas sob o direcionamento de Julian Marías, este ensaio me veio imediatamente à lembrança. Nossa vida, para ter sentido, precisa estar envolvida em algum projeto que envolva aventura, sacrifício e conquista. E, de fato, esta mesma noção está presente, textualmente, no texto:
A vida humana, por sua própria natureza, tem que estar direcionada a algo, a uma empresa gloriosa ou humilde, a um destino ilustre ou trivial. Trata-se de uma condição estranha, mas inexorável, inscrita em nossa existência. Por um lado, viver é algo que cada um faz por si e para si. Por outro lado, se a minha vida, que só importa a mim, não me é entregue por mim a algo, caminhará desvencilhada, sem tensão e nem forma.
Ou seja, viver implica necessariamente um projeto, ir atrás de uma meta. Pode ser formar uma família, defender uma causa, fazer um filme. Mas não se pode simplesmente viver por viver. Contudo, nada lhe dá certeza de que este projeto faz sentido. Pelo contrário, o sentido da vida é algo que construímos à força das nossas escolhas, das nossas decisões. Por isso, “o sentido primário e radical da palavra vida aparece quando ela é empregada no sentido de biografia e não no de biologia”.
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Em que consiste, portanto, a verdadeira rebelião das massas? A leitura fútil feita até hoje via esta rebelião sob a forma de revolução ou totalitarismo, ou seja, sua expressão violenta. A leitura do primeiro capítulo, inclusive, sobre a aglomeração, pode levar um leitor leviano a afirmar que Ortega y Gasset, como todo golpista, é contra pobre em aeroporto.
Mas, e por isso a leitura não política é fundamental, trata-se de algo ainda mais profundo e perigoso. Com o avanço da técnica, o homem massa perdeu a “noção do perigo”, ou seja, a sensação de que sua vida está por um fio, e que deve lutar por ela, fazer escolhas, sacrificar-se. Sem ter pelo que lutar, é como se tudo aquilo que lhe garante segurança fosse-lhe dado por direito.
O mundo que rodeia o homem novo desde o seu nascimento não o faz se limitar em nenhum sentido, não lhe apresenta veto nem contenção alguma, mas, pelo contrário, instiga seus apetites que, em princípio, podem crescer indefinidamente. Pois acontece (…) que este mundo do século XIX e começos do século XX não só tem as perfeições e amplitudes que de fato possui, como também sugere a seus habitantes uma segurança radical de que amanhã será ainda mais rico, mais perfeito e mais amplo, como se gozasse de um crescimento espontâneo e inesgotável. (…) Porque, de fato, quando o homem vulgar se depara com esse mundo técnico e socialmente tão perfeito, crê que a natureza o produziu, sem jamais pensar nos esforços geniais de indivíduos excelentes que a sua criação pressupõe. Admitirá menos ainda a ideia de que todas essas facilidades continuam se apoiando em certas virtudes difíceis dos homens, cuja menor falha arruinaria rapidamente a magnífica construção.
O resultado não poderia ser mais perigoso. o homem médio torna-se um menino mimado, ou seja, alguém que acredita que pode saciar seus desejos indefinidamente e que é extremamente ingrato às condições que levaram-no a esta condição. Para Ortega y Gasset, essas condições são a democracia liberal e o conhecimento técnico e científico.
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Eu citei a audiência de Alexandre Frota no MEC, mas poderia citar a forma como foi conduzida a liberação da fosfoetanolamina como outro sinal de que as coisas vão mal. Apesar de todos os alertas da comunidade científica, uma droga foi liberada sem os devidos testes por pressão das famílias de pacientes, dispostas a defender qualquer garrafada de ervas que lhe desse uma vã esperança.
No Brasil, vivemos uma década sem crises. Isso elevou o patamar de consumo de uma massa, sem que se elevasse o nível de educação. E colocou em risco, também aqui, a democracia liberal e o conhecimento técnico e científico. Por um lado, o petismo promoveu uma ampla traição dos intelectuais em favor da manutenção de sua nomenklatura partidária no poder. Por outro lado, uma aliança entre autoritarismo e fisiologismo colocou Olavo de Carvalho na boca de antigos aliados do petismo travestidos de nova direita parlamentar. E por outro lado ainda, questões de foro íntimo e privado são politizadas todos os dias, com o estado interferindo até nas relações afetivas e religiosas para proteger os interesses do homem-massa mimado.
Neste momento, o leitor deve estar meio perdido, sem saber se concorda ou discorda do parágrafo acima. Sim, porque todos, direita e esquerda, libertários e conservadores, coxinhas e petralhas, Fora Dilma e Fora Temer, estão de certa forma amalgamados na lógica de comportamento do homem massa. Como uma paródia da peça de Fernando Melo, “Marilena Chauí, quem diria?, acabou no Irajá”.
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Para Ortega y Gasset, em 1925, a barbárie resultante da ascensão do homem massa era algo que estava logo ali. E, de fato, os anos subsequentes testemunharam a ascensão do fascismo, do comunismo soviético, do nazismo e, de forma mais dura para ele, da Guerra Civil Espanhola.
E, contudo, a barbárie final nunca veio. Ficamos diante dela, namoramos com ela, mas ela nunca reinou sobre nós. Por outro lado, sua sombra tampouco nos deixou. Julian Marías via em 1975 atualidade nos alertas políticos feitos por Ortega y Gasset 50 anos antes. Naqueles tempos, uma geração que não vivera a Segunda Guerra Mundial vivia sua versão de rebelião das massas, flertando com o maoismo e o foquismo revolucionário.
E hoje vemos novamente a barbárie à nossa frente. Não na forma do golpe imaginário, nêmesis do “Foro de São Paulo” que alimenta o medo da classe média olavete. Mas na própria dinâmica, que faz a maioria ver golpe onde há instituições funcionando, e comunismo onde há Odebrecht e Itaú.
Golpe e comunismo. Duas versões politizadas do jacaré debaixo da cama que assusta as crianças. O que separa os meninos dos homens é a capacidade de olhar para o abismo real e refletir sobre ele. Ou, como diz Ortega y Gasset:
Porque a vida é um verdadeiro caos onde ele está perdido. O homem suspeita disso, mas tem pavor de se encontrar cara a cara com essa realidade terrível, e procura ocultá-la com uma cortina fantasmagórica, onde tudo está muito claro. Não importa que suas ‘idéias’ não sejam verdadeiras; usa-as como trincheiras para se defender da sua vida, como rompantes para afugentar a realidade. O homem de cabeça clara é aquele que se liberta dessas ‘ideias’ fantasmagóricas e olha a vida de frente, e assume tudo o que é problemático nela, e se sente perdido. Como isso é a pura verdade – a saber, que viver é se sentir perdido – aquele que o aceita já começou a se encontrar, já começou a descobrir a sua autêntica realidade, já está em terra firme. Instintivamente, como o náufrago, buscará algo a que se agarrar, e essa busca trágica, peremptória, absolutamente veraz, porque se trata de salvar-se, o fará ordenar o caos da sua vida. Essas são as únicas ideias verdadeiras: as ideias dos náufragos.
Sempre há homens que olhar a vida de frente, e diante do abismo buscam algo a que se agarrar. E, quando a barbárie está posta, são esses homens que assumem para si a esperança da civilização.
Um exemplo histórico: todas as edições de A rebelião das massas trazem o epílogo aos ingleses, com um alerta de Ortega y Gasset sobre os perigos do “pacifismo inglês”. O nome não é citado, mas claramente trata-se da postura de Neville Chamberlain, que por aquela altura buscava soluções diplomáticas para a paz na Europa, ainda que às custas de ceder demais a Hitler. Em meio aos alertas, o filósofo espanhol afirma:
Evito precisar a que grupo pertenciam os profetas. Basta dizer que, na fauna humana, representam a espécie mais oposta ao político. Sempre será este que deve governar, e não o profeta; mas importa muito que o político sempre ouça o que o profeta grita ou insinua. Todas as grandes épocas da história nasceram da colaboração sutil entre esses dois tipos de homem. E talvez uma das causas profundas do desconcerto atual seja que os políticos, há duas gerações, se declararam independentes e cancelaram essa colaboração. Graças a isso, produziu-se o fenômeno de que à essa altura da história e da civilização, o mundo navegue mais a deriva que nunca, entregue a uma mecânica cega. Cada vez é menos possível uma política sã sem larga antecipação histórica, sem profecia. Talvez as catástrofes atuais abram de novo os olhos dos políticos para o fato evidente de haver homens que, pelos temas dos quais se ocupam habitualmente, ou por possuírem almas sensíveis como finos registradores sísmicos, recebam antes que os demais a visita do porvir. [grifo meu]
Este texto foi escrito em dezembro de 1937. Três anos depois, em maio de 1940, um Winston Churchill que alertava há anos dos perigos do nazismo alemão substituía Chamberlain como primeiro ministro britânico, liderando o país durante a guerra.
O que nos resta é esperar que a sensatez de quem lança um olhar para o abismo possa em algum momento livrar o Brasil da barbárie que construímos aos poucos.
Paulo Roberto Silva
Jornalista e empreendedor. Mestre em Integração da América Latina pela USP.
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