Afinal, nem os maiores defensores da liberdade sexual acreditam que ela não deve ter limites.
A civilização se constrói sobre o controle de duas forças humanas poderosas: a sexualidade e a agressividade. Desde Freud e o seu Mal-estar na civilização esta tem sido uma verdade básica do pensamento moderno, embora apropriada de formas diferentes pelo pensamento erudito e pelo senso comum. Pois enquanto este usa Eros e Thanatos para questionar toda repressão sexual, aquela busca na verdade uma forma menos patológica de controle dessas forças, que Freud chamava de pulsões. Afinal, nem mesmo Freud advogava sua liberação absoluta, mas sim sua sublimação, ou seja, sua liberação sob formas socialmente aceitáveis, como as artes e o esporte.
E assim, contrariando as boas práticas de SEO, escrevo sobre castidade sem citar tal palavra chave no primeiro parágrafo. Mas ela está ali. Palavra maldita pelo senso comum freudiano, ela foi recolocada em pauta pelo próprio Freud sob a forma da sublimação. Pois a castidade nada mais é que o autodomínio aplicado à sexualidade. Não a autorrepressão, veja bem, mas o autodomínio, isto é, o controle não patológico desta força psicológica, ou seja, sua sublimação.
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O senso comum olha a sociedade moderna e vê nela um elevado grau de liberação dos instintos humanos. Para alguns, essa é a perdição, para outros a salvação. Para estes, sinto dizer, o comportamento humano neste aspecto não é novo. Basta ler o relatos sobre as alcovas dos nobres europeus no Antigo Regime ou dos reformadores protestantes sobre a depravação católica na Idade Média. Sim, a promiscuidade faz parte da condição humana desde sempre, e neste ponto não somos melhores nem piores que nossos antepassados.
Aliás, talvez estejamos mais pudicos do que sempre. Pesquisas recentes apontam que a geração Y faz menos sexo que seus pais. A explicação aceita é que meninos e meninas estão se entendendo menos, e a criminalização da cantada não ajuda. Mas isso não significa que tenhamos menos sexo no cotidiano. O documentário Hot Girls Wanted, produzido pela Netflix, aponta que nunca houve tantas meninas dispostas a serem atrizes pornôs.
Ou seja, o sexo está mais presente, mas somos cada vez mais espectadores que ativos praticantes deste esporte milenar. Contudo, isso não significa que a indústria pornográfica esteja em melhores condições, o que se prova pelo reposicionamento editorial da Playboy. Pelo contrário, ela foi a primeira indústria afetada pela destruição criativa da internet:, que hoje irrita de taxistas a companhias telefônicas. Afinal, conteúdos pornográficos mais hardcore estão disponíveis online em formato freemium: muita isca gratuita e conteúdos completos por poucos dólares. Sai a Playboy, entra o Xvideos.
Além disso, a sexualidade e a agressividade operam na indústria do entretenimento como o açúcar nos alimentos: é um aditivo que impulsiona o consumo. Assim como o açúcar, com esses ingredientes você pode produzir alta gastronomia – Tarantino – alimentos exóticos – Lars Von Trier – comida pouco nutritiva – a maioria dos filmes do Stallone – e comida tradicional – Cecil B. de Mille. Há também os dietéticos – como os filmes dos irmãos Kendrick.
Agora, fato é que nossa exposição à sexualidade cresce tanto na internet, com a oferta de cenas hardcore, quanto na cultura pop, com doses exageradas do aditivo. Basta assistir um clip no Vimeo para se chegar a essa conclusão.
E antes que me acuse de moralista, indico que as feministas, especialmente as mais radicais, concordam comigo. Ao invés de libertação, elas veem a banalização da sexualidade, com a consequente exploração do corpo feminino, como a transformação da mulher em objeto, uma forma de opressão do Patriarcado.
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Tendo como mote a resistência ao Patriarcado, os ativistas do gênero têm elaborado uma nova moral sexual. Em vários aspectos, essa moral contém elementos libertários, como a autodeterminação da mulher sobre seu corpo e o reconhecimento de orientações sexuais alternativas.
Porém – e sempre existe um porém – o discurso libertador esconde mecanismos de contenção. Surgem novos tabus – a virgindade, a cantada vista como assédio – e outros velhos são ressignificados. Por exemplo, a prática real dos casamentos homoafetivos não deixa de ser um “casamento” típico, com direito a tudo o que se esperaria de uma família vitoriana – inclusive o ciúmes, o romance de Sessão da Tarde e a hipoteca.
O leitor apressado correria para julgar essa prática como hipócrita. Mas paremos um instante e vejamos como isso não passa de uma reedição do bom e velho controle sobre a pulsão sexual, tão cara à civilização. A ordem social pode até tolerar formas diferentes de amor, mas jamais aceitará uma vida sexual sem limites, sob pena de recair na Barbárie. Toda forma de amor vale a pena, mas ela terá que reproduzir a forma trovadoresca do amor romântico.
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Por isso, talvez o principal insight de Michel Foucault é a percepção de que todo discurso libertador engendra uma nova forma de controle. É o que vemos ao observar as diversas formas de organização social da sexualidade ao longo do tempo. A cada momento, novos mecanismos de controle da sexualidade são criados. Jared Diamond os identifica inclusive nas sociedades tradicionais, mais próximas à condição natural do homem.
É como se a vida em sociedade tivesse por um de seus imperativos que o sexo não seja infinito. O outro imperativo é restringir o uso da violência.
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Mas, veja só, não é apenas a questão do controle da sexualidade que nos interessa aqui. Lá em cima eu disse que o padrão de família vivido na prática dos casamentos homoafetivos é vitoriano. E isso diz muita coisa. A era vitoriana é considerada como o auge do moralismo sexual pequeno burguês na História da Inglaterra.
Mas, para um julgamento adequado deste período, apelamos a uma testemunha ocular, cuja infância foi vivida nos estertores do vitorianismo: Chesterton. Em sua autobiografia, ao descrever o comportamento moral da época, ele afirma que era um moralismo sem convicção moral. Ou, podemos dizer nós, uma moral em crise.
Isto fica evidente quando Chesterton aponta que os mais moralistas do período eram os menos religiosos. Era como se o sujeito renegasse o sentimento religioso como coisa do passado, mas, na vida prática, buscasse neste mesmo sentimento seu sentido moral, mas desta vez descontextualizado e, por isso, vazio de sentido.
Não vivemos a continuidade da crise moral vitoriana. Esta se encerrou no período entre guerras, o qual foi marcado por uma retomada da moralidade prática, estabilizada a partir de uma ética profissional. O auge deste espírito no Ocidente é o fordismo, cujo sucesso em produtividade dependia de que o trabalhador tivesse uma família estável e se mantivesse longe do álcool, das brigas e da promiscuidade.
Mas hoje, junto do discurso pretensamente libertador, há uma retomada da moral vitoriana. O novo feminismo busca estigmatizar comportamentos intrínsecos do relacionamento amoroso, os quais passam a ser considerados assédio. Não estamos falando da violência, do assédio em si, mas da extrapolação deste assédio a todo comportamento que possa ser interpretado como uma corte de uma homem a uma mulher. O homem e a mulher médios – não medíocres, medianos – veem-se portanto entre a alta oferta de voyeurismo e a recriminação do flerte. Visto desta forma, parece óbvia a escolha pela pornografia.
Mas será que apenas os fatores sociais estão interferindo?
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O conhecimento da química cerebral nos últimos tempos tem mostrado como a exposição excessiva à pornografia pode causar dependência. Basicamente, a evolução fez com que a atividade sexual gerasse a emissão de dopamina no cérebro, um hormônio que gera sensação de satisfação. Isto faz com que o sexo seja prazeroso, e no nível neurológico estabiliza as sinapses que levaram àquele comportamento, fazendo com que o ato prazeroso seja repetido.
Este processo de emissão de dopamina acontece no sexo assim como na alimentação. Novamente, o paralelo entre açúcar e pornografia aparece, desta vez com base biológica. A dopamina é produzida para dar prazer como recompensa por uma atividade essencial à vida. Uma alimentação calórica assegura ao corpo um excedente de energia, caso falte comida. O sexo assegura a reprodução. Nos dois casos, a dopamina nos dá prazer. Mas, nos dois casos, um aditivo – açúcar ou pornografia – pode enganar o nosso cérebro, e estimular a produção de dopamina sem que a finalidade do ato tenha sido atingida.
Voltando ao cenário que afeta o homem moderno, temos aqui um trade of bastante desigual. De um lado, as dificuldades que sempre afetaram os relacionamentos humanos, impactados por um moralismo na crise. De outro lado, uma oferta exagerada de satisfação sensorial, desatrelada não só da reprodução humana, mas do ato sexual em si. Não é pouca coisa.
Mas se a dopamina dá prazer, não é uma coisa boa? Ora, a questão é que a química do prazer demanda uma exposição cada vez maior e mais fácil para assegurar a mesma quantidade de dopamina. É a lógica do vício. Em um determinado ponto, a busca do prazer sexual começa a atrapalhar todo o resto da vida do dependente. É uma versão pessoal da Barbárie.
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E aí? Não há saída para este dilema sem o controle da exposição à sexualidade. Contudo, há controles e controles. Como evitar o patológico e fomentar uma relação saudável com a sexualidade?
A filosofia moral clássica via a solução para este ponto na virtude do autodomínio. Muito antes de conhecermos os efeitos da dopamina, os moralistas antigos já relacionavam o exagero na sexualidade e na alimentação. De certa forma, é a contraprova da tese de Habermas, segundo a qual filósofos medievais não teriam respostas para problemas modernos.
O autodomínio aplicado à alimentação era chamado de temperança. O mesmo, aplicado à sexualidade, era a castidade. Nos dois casos, trata-se de uma restrição voluntária para os prazeres, de forma a aproveitá-los moderadamente, mas permanentemente.
Contudo, uma associação entre castidade e repressão sexual tornou-a uma palavra maldita. A retórica libertária tornou expressões como continência ou restrição, ou decência, coisas que não devem ser ditas na frente de crianças.
É importante resgatar o valor da castidade para o homem moderno. Precisamos falar sobre isso, basicamente.
Paulo Roberto Silva
Jornalista e empreendedor. Mestre em Integração da América Latina pela USP.
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