A execução do livro pecou pelo excesso de vontade de se encaixar em fórmulas prontas.
Uma das características mais singulares da literatura contemporânea é a capacidade de tecer histórias que levam a nenhum lugar, deixando o leitor com a sensação de enxergar uma bela nuvem cruzar o céu em um dia de sol, mas fadada ao desaparecimento da memória tão logo se desvie o olhar. São livros que passam pelos seus leitores, mas não persistem, pois são incapazes de gerar sequer uma onda de perturbação ou de maravilha. Não é algo em relação à história (pois ela é interessante), nem quanto ao estilo do autor (pois ele é perfeito, é possível ver o esmerilhamento de cada frase), nem de construção psicológica (as personagens são claramente identificadas e seus conflitos são evidentes), mas tem a ver com algo maior: a vontade de contar uma história que leve o escritor – e, por conseguinte, o leitor – ao seu limite existencial, que o faça ver abismos da forma que nunca enxergou antes, que o faça mergulhar a faca no inconsciente, sentindo suas mais sagradas convicções se esvaírem como sangue negro. Uma obra que tenha pulsação e personalidade, que seja capaz de se desafiar e, assim, levar o leitor àquela sensação que só pode ser descrita como arrebatamento. Claro que nem todo livro consegue fazer isso (na verdade, poucos atingem tal objetivo), mas a tentativa de ser maior do que os próprios limites físicos também é instigante. Afinal, todo livro tem a ambição de ser decisivo na vida de alguém.
Quando li o resumo de Até você saber quem é, de Diogo Rosas G., logo percebi que a história tinha potencial para atrair qualquer leitor: jovem escritor curitibano resolve escrever um livro definitivo sobre o Demônio, usando uma interpretação peculiar de Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa, e acaba mergulhando de tal forma na intensidade da própria obra que se torna niilista, sorumbático e amargo. É uma ideia preciosa, capaz de reunir sob a sua égide algumas das melhores obras já escritas, desde o niilismo extremado de Raskolnikov em Crime e castigo de Dostoiévski até o pacto demoníaco firmado no Fausto de Goethe ou no Doutor Fausto, de Thomas Mann, passando pela sempre interessante questão de que o escritor também vende a alma e a paz de espírito para a sua própria obra. No entanto, a execução do livro pecou pelo excesso de vontade de se encaixar em fórmulas prontas, e as boas ideias acabaram se diluindo em meio a uma história que não disse muito bem o que pretendia.
Antes que se prossiga, uma ressalva: Até você saber quem é é um livro excelentemente bem escrito. Possui todos os elementos necessários para uma obra atingir um vasto público leitor: para começar, é escrita com muita acuidade, cada frase sendo refletida com cuidado e sem maiores digressões; as personagens são delineadas com precisão, assim como os seus motivos; os cenários são tão visuais quanto uma fotografia ou um filme; o conflito é definido logo no princípio, fazendo com que as tramas secundárias girem ao seu redor; os capítulos são curtos, diretos, e a trama caminha de forma inexorável para o seu final. Está ali tudo aquilo que ensinam que um leitor busca tão logo abre a primeira página de qualquer livro. No entanto, tamanho cuidado na estrutura narrativa acaba por atrapalhá-la. Dá-se mais ênfase à matéria do que à substância, e tal escolha compromete a identificação com a história, que deveria ser o principal objetivo do livro.
Na sua obra Crítica, literatura e narratofobia, o crítico Rodrigo Gurgel menciona a “narratofobia” ou “medo de narrar”, fenômeno presente na literatura contemporânea, em que a escrita se afasta da sua função precípua – exercício de comunicação – e transforma-se em um fetiche, em uma história onde a criatividade não é mais importante do que “se submeter às regras difundidas por supostos expertos”. É um risco da literatura produzida nos tempos atuais: soar vazia e esquemática, sem sabor, sem entrega, mais ligada à experimentação estilística do que ao efeito estético. Em alguns momentos, Até você saber quem é padece dessa dicotomia – perder-se nos prazeres e meandros da história ou seguir a estrutura que se espera de um romance contemporâneo? A escolha pela segunda alternativa não é um demérito do romance, mas uma opção narrativa, o que se pode respeitar, apesar de um leitor atento lamentar que o livro não tenha se soltado diante das suas excitantes possibilidades.
Assim, o leitor passa a acompanhar a jornada do escritor Daniel Hauptmann, que possui uma relação de raiva e atração por Curitiba (espelhada no relacionamento que tem com os próprios pais), e de como a sua vida é sacudida pela ideia de escrever um romance sobre o Demônio. Mesmo com todos os componentes para não dar certo – um livro de 600 páginas, escrito em português arcaico do século XVII, com uma história relatando o diálogo entre um jesuíta e o Príncipe do Oriente em um castelo situado na floresta tropical de Goa –, “Os diálogos do castelo” revela-se um sucesso entre os leitores comuns e a crítica especializada, catapultando seu autor a um reconhecimento mundial. Como consequência de tal fato, Daniel passa a apresentar um comportamento errático e auto-destrutivo, enquanto circula entre rodas literárias com escritores famosos do Brasil, inclusive visitando o Salão do Livro em Paris. A história é narrada pelo melhor amigo, colega de trabalho e, ao final, secretário do escritor, Roberto, o qual desde o início anuncia que está contando a trajetória de Daniel em retrospectiva, visando a esclarecer os motivos da sua morte.
Existe uma certa indefinição na história, se o leitor está diante de um mistério a ser desvendado ou se está somente lendo os fatos presenciados por uma testemunha ocular, e é uma dúvida que paira até as últimas páginas do livro, quando o conflito inteiro surge em uma profusão vertiginosa de acontecimentos. Até você saber quem é é constituído por uma série de cenas que, apesar de interessantes, soam fúteis, como as várias páginas dedicadas à briga pública entre Bruno Tolentino e os irmãos Campos nos anos 90 por conta de diferenças sobre a tradução de poesias (o “affair Tolentino-Campos” conforme mencionado e que, à medida que os anos passam, mais soa como uma briga de vaidades do que como uma questão definidora da literatura) e as descrições da vida literária e das recepções luxuosas em Paris. Todas as cenas estão amarradas no final do livro, e o fato delas se sucederem em ritmo acelerado faz com que eventos nevrálgicos – como a revelação surgida graças ao Grande Sertão: veredas de Guimarães Rosa e o massacre protagonizado por Daniel – acabem sendo narrados com tamanha superficialidade que soam inverossímeis. Inclusive é de se questionar essa tendência dos romances atuais de serem construídos através de cenas sobrepostas que só se resolvem – e rapidamente – nas últimas folhas, algo com nítida influência do cinema, mas que, em literatura, acaba cansando e soando falso.
Até você saber quem é promete muito, mas falha na concretização da sua ideia. Diogo Rosas G. é excelente escritor e possui domínio completo da narrativa. No entanto, a vontade de encontrar uma voz narrativa típica da literatura contemporânea fez com que perdesse a própria originalidade. Apesar de deixar um clima de frustração pela história que poderia ter existido, é um livro tão bem escrito que consegue mascarar as deficiências de algumas decisões autorais. Pode-se afirmar com segurança que, no momento em que o autor descobrir qual a voz da história que deve contar, diante do seu manejo singular das palavras, poderá encantar ainda muitos leitores.
Gustavo Melo Czekster
Autor dos livros de contos Não há amanhã (2017) e O homem despedaçado (2011). Doutorando em Letras pela PUCRS.
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