Até o autor saber quem é

por Gustavo Melo Czekster (04/09/2016)

A execução do livro pecou pelo excesso de vontade de se encaixar em fórmulas prontas.

"Até você saber quem é", de Diogo Rosas G. (Record, 2016, 224 páginas)

“Até você saber quem é”, de Diogo Rosas G. (Record, 2016, 224 páginas)

Uma das características mais singulares da literatura contemporânea é a capacidade de tecer histórias que levam a nenhum lugar, deixando o leitor com a sensação de enxergar uma bela nuvem cruzar o céu em um dia de sol, mas fadada ao desaparecimento da memória tão logo se desvie o olhar. São livros que passam pelos seus leitores, mas não persistem, pois são incapazes de gerar sequer uma onda de perturbação ou de maravilha. Não é algo em relação à história (pois ela é interessante), nem quanto ao estilo do autor (pois ele é perfeito, é possível ver o esmerilhamento de cada frase), nem de construção psicológica (as personagens são claramente identificadas e seus conflitos são evidentes), mas tem a ver com algo maior: a vontade de contar uma história que leve o escritor – e, por conseguinte, o leitor – ao seu limite existencial, que o faça ver abismos da forma que nunca enxergou antes, que o faça mergulhar a faca no inconsciente, sentindo suas mais sagradas convicções se esvaírem como sangue negro. Uma obra que tenha pulsação e personalidade, que seja capaz de se desafiar e, assim, levar o leitor àquela sensação que só pode ser descrita como arrebatamento. Claro que nem todo livro consegue fazer isso (na verdade, poucos atingem tal objetivo), mas a tentativa de ser maior do que os próprios limites físicos também é instigante. Afinal, todo livro tem a ambição de ser decisivo na vida de alguém.

Quando li o resumo de Até você saber quem é, de Diogo Rosas G., logo percebi que a história tinha potencial para atrair qualquer leitor: jovem escritor curitibano resolve escrever um livro definitivo sobre o Demônio, usando uma interpretação peculiar de Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa, e acaba mergulhando de tal forma na intensidade da própria obra que se torna niilista, sorumbático e amargo. É uma ideia preciosa, capaz de reunir sob a sua égide algumas das melhores obras já escritas, desde o niilismo extremado de Raskolnikov em Crime e castigo de Dostoiévski até o pacto demoníaco firmado no Fausto de Goethe ou no Doutor Fausto, de Thomas Mann, passando pela sempre interessante questão de que o escritor também vende a alma e a paz de espírito para a sua própria obra. No entanto, a execução do livro pecou pelo excesso de vontade de se encaixar em fórmulas prontas, e as boas ideias acabaram se diluindo em meio a uma história que não disse muito bem o que pretendia.

Antes que se prossiga, uma ressalva: Até você saber quem é é um livro excelentemente bem escrito. Possui todos os elementos necessários para uma obra atingir um vasto público leitor: para começar, é escrita com muita acuidade, cada frase sendo refletida com cuidado e sem maiores digressões; as personagens são delineadas com precisão, assim como os seus motivos; os cenários são tão visuais quanto uma fotografia ou um filme; o conflito é definido logo no princípio, fazendo com que as tramas secundárias girem ao seu redor; os capítulos são curtos, diretos, e a trama caminha de forma inexorável para o seu final. Está ali tudo aquilo que ensinam que um leitor busca tão logo abre a primeira página de qualquer livro. No entanto, tamanho cuidado na estrutura narrativa acaba por atrapalhá-la. Dá-se mais ênfase à matéria do que à substância, e tal escolha compromete a identificação com a história, que deveria ser o principal objetivo do livro.

Na sua obra Crítica, literatura e narratofobia, o crítico Rodrigo Gurgel menciona a “narratofobia” ou “medo de narrar”, fenômeno presente na literatura contemporânea, em que a escrita se afasta da sua função precípua – exercício de comunicação – e transforma-se em um fetiche, em uma história onde a criatividade não é mais importante do que “se submeter às regras difundidas por supostos expertos”. É um risco da literatura produzida nos tempos atuais: soar vazia e esquemática, sem sabor, sem entrega, mais ligada à experimentação estilística do que ao efeito estético. Em alguns momentos, Até você saber quem é padece dessa dicotomia – perder-se nos prazeres e meandros da história ou seguir a estrutura que se espera de um romance contemporâneo? A escolha pela segunda alternativa não é um demérito do romance, mas uma opção narrativa, o que se pode respeitar, apesar de um leitor atento lamentar que o livro não tenha se soltado diante das suas excitantes possibilidades.

Assim, o leitor passa a acompanhar a jornada do escritor Daniel Hauptmann, que possui uma relação de raiva e atração por Curitiba (espelhada no relacionamento que tem com os próprios pais), e de como a sua vida é sacudida pela ideia de escrever um romance sobre o Demônio. Mesmo com todos os componentes para não dar certo – um livro de 600 páginas, escrito em português arcaico do século XVII, com uma história relatando o diálogo entre um jesuíta e o Príncipe do Oriente em um castelo situado na floresta tropical de Goa –, “Os diálogos do castelo” revela-se um sucesso entre os leitores comuns e a crítica especializada, catapultando seu autor a um reconhecimento mundial. Como consequência de tal fato, Daniel passa a apresentar um comportamento errático e auto-destrutivo, enquanto circula entre rodas literárias com escritores famosos do Brasil, inclusive visitando o Salão do Livro em Paris. A história é narrada pelo melhor amigo, colega de trabalho e, ao final, secretário do escritor, Roberto, o qual desde o início anuncia que está contando a trajetória de Daniel em retrospectiva, visando a esclarecer os motivos da sua morte.

Existe uma certa indefinição na história, se o leitor está diante de um mistério a ser desvendado ou se está somente lendo os fatos presenciados por uma testemunha ocular, e é uma dúvida que paira até as últimas páginas do livro, quando o conflito inteiro surge em uma profusão vertiginosa de acontecimentos. Até você saber quem é é constituído por uma série de cenas que, apesar de interessantes, soam fúteis, como as várias páginas dedicadas à briga pública entre Bruno Tolentino e os irmãos Campos nos anos 90 por conta de diferenças sobre a tradução de poesias (o “affair Tolentino-Campos” conforme mencionado e que, à medida que os anos passam, mais soa como uma briga de vaidades do que como uma questão definidora da literatura) e as descrições da vida literária e das recepções luxuosas em Paris. Todas as cenas estão amarradas no final do livro, e o fato delas se sucederem em ritmo acelerado faz com que eventos nevrálgicos – como a revelação surgida graças ao Grande Sertão: veredas de Guimarães Rosa e o massacre protagonizado por Daniel – acabem sendo narrados com tamanha superficialidade que soam inverossímeis. Inclusive é de se questionar essa tendência dos romances atuais de serem construídos através de cenas sobrepostas que só se resolvem – e rapidamente – nas últimas folhas, algo com nítida influência do cinema, mas que, em literatura, acaba cansando e soando falso.

Até você saber quem é promete muito, mas falha na concretização da sua ideia. Diogo Rosas G. é excelente escritor e possui domínio completo da narrativa. No entanto, a vontade de encontrar uma voz narrativa típica da literatura contemporânea fez com que perdesse a própria originalidade. Apesar de deixar um clima de frustração pela história que poderia ter existido, é um livro tão bem escrito que consegue mascarar as deficiências de algumas decisões autorais. Pode-se afirmar com segurança que, no momento em que o autor descobrir qual a voz da história que deve contar, diante do seu manejo singular das palavras, poderá encantar ainda muitos leitores.

Gustavo Melo Czekster

Autor dos livros de contos Não há amanhã (2017) e O homem despedaçado (2011). Doutorando em Letras pela PUCRS.

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