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A ordem nasceu para ser caos

por Andrei Ribas (25/09/2016)

'Entropia' é uma obra para ser compreendida aos poucos.

"Entropia", de Alexandre Marques Rodrigues (Record, 2016, 304 páginas)

“Entropia”, de Alexandre Marques Rodrigues (Record, 2016, 304 páginas)

Enquanto Roberto espera Constantina, vasculha suas coisas no quarto-sala em que ela reside e que usam para seus encontros. Num caderno ele passa os olhos na palavra entropia destacada na página. Além do termo está ali também seu significado. “Grandeza termodinâmica que mede, em um sistema isolado, seu grau de irreversibilidade.” Roberto continua: “Não ocorrem processos que levem à diminuição da Entropia em um sistema fechado”. Depois a caligrafia redonda de Constantina voltava na página seguinte, precedida por um gigante falo desenhado no espaço anterior, “A segunda lei da Termodinâmica diz que o trabalho pode ser convertido por inteiro em calor, mas o calor não pode ser transformado completamente em trabalho”. Colocando tais conceitos no cotidiano, pode-se dizer que uma pessoa, ao iniciar uma atividade, tem seus objetos organizados, e a medida que ela vai os utilizando e desenvolvendo suas atividades, seus objetos tendem a ficar cada vez mais desorganizados. A parte citada do livro evidencia, pode-se dizer, a característica principal do segundo trabalho de Alexandre Marques Rodrigues. Um desgaste natural de algo que, por ser o que é, não foi feito para durar, falando não de objetos e seus materiais, na Física e nas leis que a constituem, mas de pessoas e das relações que (des)constroem.

Roberto e Constantina, num caso extraconjugal do primeiro – se bem que não fica totalmente explícito que esteja dentro de um casamento ou união estável com Cecília, apesar de morar com esta e a gata que possui o mesmo nome da mulher –, é uma das tramas no romance. Outro viés é a visão da companheira Cecília acerca das escapadas, das quais sabe e não se opõe, chegando a se conformar, no fluxo de consciência que desenvolve, com esse papel quando confessa que Roberto, ao retornar, será novamente um estranho no ambiente doméstico, inclusive pelo animal de estimação, mas não será hostilizado, nem expulso, o que cria a indicada desconfiança da relação perene que possam ter. No decorrer das páginas, lemos que Roberto é contador, sai de viagem autorizado pela empresa, o que coincide com o afastamento de que seria comunicado a fim de que apurem um diferença que fez no balancete contábil de setembro. Na viagem para Nova Harz, além da preocupação com a suspeita de fraude que carrega, descobre-se que vai ter seu encontro sexual com Constantina e, também, procurar o túmulo de sua mãe, Brigitte Döringer, que se envolvera com um compositor de música clássica ucraniano, Anton Stein. Lemos e chegamos à revelação, também, que Roberto é conhecido, ou teria adotado outra personalidade ou identidade, como Bernardo Franz, em que fica clara a influência (inconsciente?) no autor de O som e a fúria, de Falkner, além (aqui, acredito, conscientemente) dos estudos psicanalíticos embasados em Heidegger, Nietzsche e Schopenhauer, cujo capítulo em que o encontro das duas pessoas na mesma figura é descortinado tem propositadamente o nome do trio. Existem ainda garimpadas em David Foster Wallace com as notas de rodapé, cujo uso o autor estadunidense consagrou – e muitos trechos ali relegadas poderiam ter sido incertos no texto principal, sem desacertos, compondo a utilização apenas uma escolha autoral.

Por outro lado, com escrita não usual, em que a quebra de parágrafos não respeita o padrão normalizado, digamos assim,

como a que faço agora, Alexandre coloca dentro da história já intrincada de seus personagens uma biografia não editada do pianista Stein, a qual saberemos quando, por quem e por que foi escrita. Como a inserção da trajetória do músico (trecho analítico e formal, respeitando a redação dita oficial, academicista), tudo é feito de maneira a ser sondado pelo leitor, que espalha o pó para revelar os mistérios na trama, descrita nas visões de Cecília, Roberto/Bernardo, do biógrafo de Stein e de um narrador onisciente, tudo colocado em capítulos que tem, muitas vezes, títulos que poderiam ter sido retirados de frases de jornais ou de pensamentos insólitos, como “Após cortes, projeções apontam queda de 0,30% no PIB deste ano” ou “Cebolas brotam da geladeira”, e são, sempre, de poucas laudas, constituindo-se praticamente em trechos. Existe ainda o sexo a ser colocado muitas vezes como pano de fundo, demonstrando a inevitabilidade da impermanência, quando de atos no começo esperados e prazerosos restam as ações mecânicas, justificativas para que os relacionamentos (e a própria existência) continuem, aos tropeços, não vendo o abismo à frente. O prazer individual também é ressaltado quando Roberto/Bernardo, ao se ver sem o que fazer nos momentos solitários no hotel na cidadezinha de colonização alemã, fuma ou bebe uísque ou se masturba, às vezes com motivações beirando o bizarro e das menos libidinosas. Por boa parte da estadia, inclusive, coloca a arrumadeira, Gabriela, como fixação de seu desejo, ainda que envolvido até o pescoço, como mandaria a moral e os bons costumes, com Cecília – e sem ter a mesma abnegação que ela nesse envolvimento – e mantenha Constantina na manga, abusando de sua frágil psique.

Com tal configuração, Entropia é uma obra para ser compreendida aos poucos, colando cada peça no instante que o autor, com maestria, mapeia ao leitor (que não deve ser de primeira viagem, com risco de largar o volume por não se adequar a tais maneirismos). É metáfora das próprias composições de Stein, o qual tem papel fundamental na vida de Roberto/Bernardo, ainda que isso fique jogado às entrelinhas. Como a fórmula usada na epígrafe, e que lembra muito bem uma partitura a ser executada ao piano, Marques utiliza de elementos variados para chegar a uma só conclusão: o desgaste de qualquer material e do que produz é a demonstração de que a ordem nasceu para ser caos.

Andrei Ribas

Autor, mais recentemente, de Animais loucos, suspeitos ou lascivos e Cada amanhecer me dá um soco. Vive em Santa Rosa-RS.

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