Boicotes são atitudes moralmente aceitáveis em uma sociedade livre? Para Stuart Mill, não. Para Hayek, sim.
O Queermuseu mobilizou as redes sociais na semana passada, e nos colocou diante de um debate extremamente complexo e difícil de ser esquematizado desde expressões como “liberdade de expressão”, “fora censura”, ou “fim da civilização ocidental”.
Na hipótese, o que está em jogo para além dos slogans das redes sociais?
De início, duas palavras merecem ser enfocadas: segurança e previsibilidade. A existência de ordens sociais, e ordenamentos jurídicos por corolário, exsurge da necessidade de conseguirmos programar nossas vidas, e elaboramos planos em razão de regras compartilhadas. A defesa da liberdade não significa individualismo atomista ou egoísmo moral, como defendem certos grupos conservadores.
Justamente pelo fato de que se encontram inescapavelmente interligados, os seres humanos criam convenções que tornam possível sua coordenação em busca de toda sorte de propósito. O que nos une como sociedade, ou comunidade política, não são nossas finalidades, mas sim as regras que nos possibilitam fazer com que nossos propósitos se materializem. Não espanta a dificuldade que certos conservadores e socialistas tenham de compreender algo tão singelo. Consoante a cantilena dos referidos grupos, deveríamos compartilhar certas finalidades comuns, a exemplo de utopias como justiça social, ou de dimensões religiosas de mundo, e não apenas as convenções que tornam essas finalidades possíveis.
Sabemos que, em regra, o sol se põe por volta das 18 horas no inverno em nosso país. Assim como sabemos que a prática de homicídio, em regra, resultará em pena de prisão. O conhecimento das regularidades tanto das leis da natureza quanto das convenções sociais serve para que consigamos conduzir nossas vidas por parâmetros de segurança e de previsibilidade.
Não é à toa que as sociedades mais prósperas, conhecidas também por sociedades de confiança, são aquelas em que os indivíduos possuem certeza de que as regras que seguem hoje não serão alteradas amanhã. Dado que a coerção é uma questão de grau, abrandá-la a um mínimo possível é o grande propósito do defensor da liberdade individual. Desse modo, os indivíduos apenas são livres na medida em que sabem que não serão estuprados na esquina, ou que não serão esquartejados no ponto de ônibus. O império da lei é a garantia de nossa liberdade, uma vez que perfectibiliza a produção de regularidades indispensáveis à busca dos mais diferentes propósitos em oposição às arbitrariedades do governo, e também de nossos semelhantes.
As regras de convivência social, desse modo, são meios para que os indivíduos persigam seus desígnios com liberdade e segurança, a exemplo de uma união homossexual, ou da opção pelas estruturas das famílias tradicionais. Nem todos precisam comungar da mesma preferência sexual; todavia, é importante que todos respeitem o interdito ao homicídio, a fim de que possam, inclusive, ter liberdade e segurança para expressar suas preferências sexuais. É essencial distinguir as condutas que dizem respeito apenas a nossa esfera privada daquelas que atingem a esfera privada de outrem.
Feita essa introdução, necessário informar que museus em todo mundo anunciam com antecedência as obras que compõem seu acervo, a ponto de se ter conhecimento quanto ao que esperar de suas exposições definitivas, e também possuir ideias claras sobre as experiências que nossos filhos poderão ter ao se depararem com suas coleções.
O elemento previsibilidade é a razão por que as exposições temporárias normalmente possuem classificações indicativas nos países civilizados. Pode ocorrer, e é comum que ocorra, uma instalação temporária de nus que simulem, ou até mesmo pratiquem, sexo diante da plateia. A proteção às crianças exige que essas exposições temporárias adotem classificações indicativas, a fim de que os genitores se programem com antecedência, e que não sejam surpreendidos por experimentos artísticos que retratem sexo com cabras com a mesma naturalidade com que retratam um pôr do sol.
No entanto, se o acervo definitivo do museu contiver obras com características obscenas, é responsabilidade dos pais decidirem por inserir suas crianças nestes ambientes, sem que tenham motivo para alegar “ataque às crianças”, uma vez que foram expostos previamente ao conteúdo daquele acervo.
O Ministro Dias Toffoli, na ADI 2.404, assinala a responsabilidade dos genitores pelo controle de conteúdo as suas crianças, e enuncia que a marca das sociedades livres é a indissociabilidade do conceito de liberdade e de responsabilidade: “é inequívoca, portanto, a percepção de que o modelo de classificação indicativa é o instrumento de defesa que a Constituição ofereceu aos pais e aos responsáveis contra programações de conteúdo inadequado, garantindo-lhes o acesso às informações necessárias à proteção das crianças e dos adolescentes, mas sem deixar de lado a preocupação com a garantia da liberdade de expressão, pois não surge com o caráter de imposição”.
O governo, nesse contexto, atua como entidade pedagógica nas classificações indicativas, a fim de auxiliar os pais na difícil tarefa de equacionar os dilemas morais decorrentes das programações infantis. Como reforça Toffoli: “ao analisar conteúdos que serão veiculados na televisão e no rádio, o Estado só pode indicar, informar, recomendar, e não proibir, vincular ou censurar”. Portanto, as classificações indicativas são instrumentos importantes ao assumirmos a premissa de que o Código Civil possui razoabilidade em apontar as crianças e adolescentes como absolutamente incapazes para o exercício de seus direitos, e para os atos da vida civil.
A defesa do caráter absoluto da liberdade de expressão, em desacordo à incapacidade absoluta dos menores de 16 (dezesseis) anos, sinaliza os perigos de uma conduta não pautada pelas regularidades dos códigos legais que, por sua vez, se atrelam à tradição moral que nos prescreve o dever de cuidado para com nossas crianças. Caso as tradições de nossa sociedade não visualizassem a importância de proteção à infância, não faria qualquer sentido um código legal que assumisse essas premissas como base de sua lógica.
Desse modo, não existem liberdades absolutas, uma vez que é impossível que uma ação não atinja a esfera privada de outrem na complexa Grande Sociedade, e essa é a razão por que ponderar princípios como proteção às crianças e liberdade de expressão é dos problemas mais difíceis e complexos de ser equacionado. E, assim, as classificações indicativas são excelentes estratégias de proteção à infância, ou coordenação, sem a destruição da não menos importante liberdade de expressão.
Defendo, inclusive, a proteção jurídica ao discurso de ódio desde que não extrapole o âmbito do discurso, também via classificação indicativa, uma vez que a concorrência de ideias, e o combate entre elas, tem o potencial de fomentar o florescimento dos bons valores humanos. Em razão disso, pensar elementos de adequação da liberdade de expressão não é pensar em sua restrição, mas sim em sua articulação com outros valores igualmente importantes para a sociedade.
Não pretendo aqui adentrar no pantanoso terreno sobre definições de arte e não arte, uma vez que não possuo competência técnica para tanto, mesmo que nutra o pensamento de que seja possível formular critérios estéticos objetivos para além da opinião recorrente de que juízos estéticos são puramente aleatórios. Pessoalmente gosto de Adriana Varejão, e discordo do dever do artista em se curvar a esta ou àquela ideologia quando de sua produção.
É pública e notória a existência de abuso animal no país, e de homofobia em relação a comportamentos não conformistas. Também é flagrante a subjugação dos negros pela perversidade do racismo. Além disso, o pouco caso com a proteção das crianças na desagregação familiar ambiente parece-me fato incontroverso.
Eu levaria meu filho à exposição Queermuseu após ser esclarecida quanto à classificação indicativa, e explicaria a ele o contexto da produção artística, e também o contexto do país em que ele vive. Não me parece produtivo apartar as crianças da realidade, por mais abjeta que essa realidade nos pareça. Crianças podem muito bem construir sua imaginação moral sem ignorar o mundo real que as circunda.
A complexidade humana não se reduz a pacotes ideológicos. E retratar a condição humana, exatamente como ela é, parece-me tarefa de todo artista que se preze. A despeito disso, não me considero a paladina da palavra final sobre tais assuntos, de maneira que nutro profundo respeito pelos pais que não desejam a presença de seus filhos neste perfil de ambiente. Deve existir liberdade para que ambos os grupos possam exercer seus propósitos na Grande Sociedade, e a classificação indicativa é uma ótima estratégia a coordenar o impasse.
Nesse contexto, ao não especificar a classificação indicativa da exposição, a instituição promotora desproveu os genitores de informações importantes para a proteção de suas crianças, e infringiu códigos legais e morais de uma sociedade livre. A exposição destinava-se, também, a crianças, e passeios escolares estavam programados nas instalações, de modo que o elemento surpresa característico de uma exposição temporária impedia que os genitores agissem com segurança e previsibilidade. Não surpreende, portanto, o boicote expressivo que vitimou o Queermuseu.
Importante não perder de vista que os museus do país contêm inúmeras obras que retratam sexo explícito e nus de toda sorte, inclusive com o retrato de crianças. Todavia, não é comum que a sociedade civil os questione com tamanho vigor. Isso porque o conhecimento prévio de seus acervos em exposições não temporárias possibilita que os pais se programem para dar conhecimento das obras aos filhos, caso assim julguem conveniente. Meu palpite é que o elemento surpresa da exposição temporária, associado ao ingresso de crianças na mostra, foram os reais motivos do alvoroço público. E, a partir disso, ingressaremos em outro tema importante.
Boicotes são atitudes moralmente aceitáveis em uma sociedade livre?
John Stuart Mill entende que não. Para o autor, devemos trabalhar incessantemente rumo à educação moral dos indivíduos, também com o apoio do governo, a fim de um clima de tolerância às expressões odiosas se instaure. Para Mill, a educação de nossas sensibilidades depende do enfrentamento das ideias que odiamos, tanto no sentido de amadurecer os pensamentos que nos fazem florescer, quanto em abandonar as ideias que nos fazem apenas odiar e destruir. Hayek criticou o posicionamento de Mill de maneira veemente.
De início, o ataque de Hayek a Mill implode certo espantalho conservador sobre o tema liberalismo. Para Hayek, coerções morais são expressões aceitáveis dentro do amplo tema liberdade de expressão.
Nos Estados Unidos, há poucas semanas, ocorreu um protesto nazista em Charlottesville. O boicote da sociedade civil aos manifestantes foi expressivo. Indivíduos foram inclusive demitidos de empregos por participarem da referida manifestação. No Brasil, boicotes são fomentados pela esquerda de maneira aguda, a exemplo do ataque às propagandas que expõem mulheres seminuas.
Não obstante, o problema do recente boicote do MBL ao Queermuseu é o fato do MBL sustentar como bandeira a liberdade de expressão, o que poderia atrair a acusação de hipocrisia de seu protesto, algo difícil de ser imputado aos coletivos de esquerda, uma vez que quase sempre se opõem à liberdade de expressão, porquanto seu ideal maior é a justiça social do coletivo, seja lá o que isso signifique, e não a livre expressão.
Para Stuart Mill, o MBL está equivocado em boicotar o Queermuseu, e possui atuação hipócrita ao sustentar a bandeira da liberdade de expressão enquanto silencia uma expressão artística. Do mesmo modo, Stuart Mill condenaria o boicote aos nazistas de Charlottesville.
Hayek não concorda com seu grande influenciador nesse tópico. Consoante o austríaco, mesmo que atos sejam praticados no âmbito de uma esfera privada, a exemplo da exposição Queermuseu, isso não significa que devam ser aceitos pela opinião pública. Respeitar a esfera privada de um indivíduo não significa aprová-la, ou mesmo deixar de emitir desaprovação pública. Na hipótese, é perfeitamente possível desaprovar um comportamento, ou boicotá-lo, sem que isso signifique oposição violenta àquele comportamento.
Stuart Mill redigiu a obra Sobre a liberdade na severa atmosfera intelectual da era vitoriana, em que homossexuais eram alvos das perversas castrações químicas estatais por seu comportamento não agressivo. Para Hayek, esse contexto tenebroso fomentou uma defesa muito apaixonada contra os boicotes por Mill. Hayek defende que boicotes, ou coerções morais, não são coerções como as censuras estatais, e que a pressão no sentido da aprovação, ou desaprovação públicas, muitas vezes é exercida para assegurar o cumprimento das normas morais e convenções sociais.
Hayek explica que a coerção é sempre uma questão de grau, e que a coerção que o Estado deve impedir, e ao mesmo tempo usar como ameaça para o bem da liberdade, é tão-somente a coerção no seu grau mais intenso que, quando aplicada, impede um indivíduo dotado de capacidades normais de perseguir um objetivo importante para ele. Na semana passada, também no Brasil, um magistrado proibiu uma peça teatral que comparava Jesus Cristo a um transexual. Eis aí, em essência, a coerção excessiva que Hayek se dedicou a combater. Impedir um espetáculo artístico via censura frustra o planejamento individual, enquanto que a fixação de um critério de classificação indicativa não causa semelhante problema de coordenação e informação.
Para Hayek, as pressões morais exercidas contra indivíduos não conformistas possuem papel importante, e até mesmo indispensáveis, no sentido de facilitar a vida em sociedade, papel este até maior do que as próprias disposições legais. Hayek adverte que as normas e convenções morais, a exemplo da família tradicional, serão observadas apenas pela grande maioria, e não universalmente. A despeito disso, essas convenções morais oferecem orientação útil e reduzem as incertezas, já que, conforme destacamos, o propósito do ordenamento moral, como sistema de incentivos, é dotar os agentes de segurança e de previsibilidade em suas condutas. Por exemplo, não haveria problema no combate moral, ou boicote, contra os indivíduos que decidissem caminhar nus pelas ruas, mesmo que estes não respondessem pelas sanções de um código legal.
Nas palavras de Hayek “essas convenções e normas de inter-relacionamento social e conduta individual não constituem uma séria restrição à liberdade individual, mas não asseguram um mínimo de uniformidade que facilita, mais do que limita, os esforços individuais”.
O problema do MBL, em minha percepção, reside em nominar de fascistas os boicotes promovidos pela esquerda, ao mesmo tempo em que enquadra seus boicotes no grande slogan liberdade de expressão. Para ser coerente, o MBL deve enxergar que os boicotes promovidos pela esquerda são tão legítimos quanto os promovidos pela direita na hipótese se existirem conflitos morais sobre valores importantes. Para um liberal como Hayek, ambas as expressões se encontram inseridas no âmbito da liberdade de expressão. O ataque ao MBL, portanto, é no sentido de exigir que o movimento seja coerente com os valores que dissemina.
Liberdade de expressão contempla a existência de boicote? Boicotes valem apenas para certos grupos, ou valem para todos? Será que o MBL efetivamente lutava mesmo pela existência de informações e classificações indicativas, ou somente se apegava a slogans preguiçosos como “arte degenerada contra nossas crianças”?
Caso o MBL adote Hayek como norte teórico, é importante que trate os boicotes de esquerda com a mesma lupa moral com que analisa os boicotes promovidos pela direita, a depender da importância dos valores em discussão. Agora, caso opte pelas teorias de Mill, é importante que perceba a necessidade de se opor a todo e qualquer perfil de boicote.
Não sei se o MBL está de fato preocupado com a boa teoria liberal e com compromissos de coerência. Meu receio é que se transforme em mais um movimento caracterizado pela bela máxima de H. L. Menken: “para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada”.
Massas furiosas e desgovernadas adoram soluções erradas. Como explicou Hayek em O caminho da servidão, é quase que uma “lei da natureza” o fato de os homens aderirem mais facilmente a um programa negativo – como ódio aos judeus – do que a um plano propositivo. “A antítese ‘nós’ e ‘eles’, a luta comum contra os que se acham fora do grupo, parece um ingrediente essencial a qualquer ideologia capaz de unir solidamente um grupo visando à ação comum. Por essa razão, é sempre utilizada por aqueles que procuram não só o apoio a um programa político, mas também a fidelidade irrestrita de grandes massas”.
Será que o MBL enxerga que a direita também pode se movimentar desde ressentimentos maniqueístas contra degenerados, comunistas e pervertidos, do mesmo modo imaturo com que a esquerda se opõe a neoliberais, fascistas e conservadores?
Não sei se o compromisso do MBL é apenas acariciar massas cativas que desaguam votos neste ou naquele partido, ou se possui propósitos sinceros com a busca por instituições genuinamente liberais desde a defesa do indivíduo como fim em si mesmo. Só o tempo dirá de que conteúdo é feito o MBL.
Renata Ramos
Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina.
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