Cultura de risco, gambiarra e jeitinho no Brasil (III)

por Paulo Roberto Silva (10/09/2017)

O maior impulso empreendedor da História do Brasil alimentou algumas gerações de ufanismo e fortaleceu o Estado.

As primeiras indústrias de São Paulo, considerado o motor da industrialização brasileira, remontam ao final do século XIX. Ao mesmo período remontam as primeiras indústrias do Rio Grande do Sul, entre elas a Gerdau, uma das maiores siderúrgicas do mundo. O Rio de Janeiro também remonta ao mesmo período. Nos três casos, os principais empreendedores eram imigrantes. Logo, correlacionar a proto industrialização brasileira à imigração é tentador. Mas é limitado.

A imigração não explica o surgimento dos polos industriais de Sorocaba, que era considerada a “Manchester Brasileira”, ou de cidades mineiras como Juiz de Fora, São João del Rey, Itaúna, e outros. Também não explica os empreendedores brasileiros que fizeram parte do processo. Os imigrantes tiveram participação majoritária e relevante no início da industrialização brasileira, mas é complicado atribuir a eles a causa do processo. Há algo mais.

Celso Furtado apresentou uma hipótese interessante: a exportação de café teria gerado excedente de capital e um mercado consumidor relevante para a indústria. É uma tese forte, mas os dados econômicos compilados posteriormente não ajudam: o Brasil tinha PIB per capita e taxa de poupança abaixo de vários vizinhos, como o Chile e o Peru, que não se industrializaram de forma tão intensa.

Descontada a imigração e a formação de capital, o que nos resta? Certamente não é a educação, já que na virada do século mais de 50% da população era analfabeta. O único elemento que poderia direcionar o capital gerado pelo café e estimular imigrantes e não imigrantes a empreender são as instituições. Mas na República Velha só houve uma política que gerou mudança institucional capaz de estimular o empreendedorismo. Por acaso, ela é também a política econômica mais execrada da História: o Encilhamento.

O Encilhamento, ou Como quebrar o país tendo boas ideias

O Encilhamento criou um padrão que se repetiu nos anos posteriores: tudo o que dá certo é por acidente, tudo o que é pensado e planejado resulta em desastre. As únicas exceções foram a criação do BNDES, a regulamentação financeira de 1964 e o Plano Real. Duas dessas tiveram por trás a pessoa de Roberto Campos, que não queria controlar coisa alguma. A terceira reuniu uma equipe excepcional de economistas, e ainda assim tiveram que errar feio no Cruzado para acertar no Real.

O conjunto de medidas que ficou conhecido como Encilhamento tinha dois objetivos: flexibilizar a oferta de moeda, travada pela legislação do Império, e estimular a industrialização brasileira por meio do crédito. Para isso, permitiu que diversos bancos emitissem moeda, desde que fosse para financiar a indústria. O resultado foi uma imensa especulação financeira, gerando inflação e a criação de diversas indústrias de fachada. Também foi a criação de diversas empresas de verdade, viabilizadas pelas facilidades das medidas.

Diante da crise, houve um longo e descontínuo processo de reversão dos impactos, que se arrastou de 1891 a 1900. Mas o foco foi no combate à inflação e no salvamento dos bancos alavancados. De certa forma, as regras para abertura de empresas permaneceram, e novos créditos foram oferecidos à Indústria nascente. Ao final do processo de estabilização, o valor da moeda se viu bem abaixo dos patamares da época do Império, e o processo de protoindustrialização estava a pleno vapor.

A ascensão da pequena burguesia

O processo de industrialização brasileira foi liderado essencialmente por pequenos comerciantes ou líderes regionais. O grande capital, no Brasil, estava envolvido no agronegócio ou em grandes concessões – caso da Companhia Docas de Santos, da família Guinle, ou da Light, de Percival Farquhar. O grosso da indústria nacional foi projeto de gente sem pedigree.

Entre eles, destacaram-se os imigrantes. Por um lado, eles detinham conhecimento técnico e alguma poupança para investir. Por outro, desgarrados de sua terra natal, apresentavam uma maior disposição a tomar risco. Mas o fato de os imigrantes serem maioria dos novos industriais não significava que estavam trazendo uma nova visão de mundo, sobreposta àquela civilização brasileira que em Canudos mostrou sua cara à elite positivista.

Não, os imigrantes, antes de se tornarem empreendedores, tornaram-se brasileiros. E não o brasileiro elitista. Primeiro ele se tornou uma espécie de Joesley, com seu português ruim que choca os ouvidos. Depois tornou-se empreendedor. Só após o sucesso ele aderiu ao capitalismo de compadrio que move a economia brasileira desde o Império.

Garibaldi é, de certa forma, o símbolo do imigrante que se torna imagem do Brasil que resiste ao processo civilizatório imposto de cima a baixo. Mas sua revolução farroupilha realizou, na política, o mesmo ciclo de ascensão e adaptação que os industriais fizeram na economia. Primeiro Garibaldi tornou-se farroupilha. Depois os farroupilhas enfrentaram o governo central, mais de uma vez. Por fim, em Getúlio Vargas, a elite gaúcha adere ela própria ao inimigo que enfrentou, levando o projeto positivista a um novo patamar.

Vargas e industriais paulistas. A eles se uniram os tenentes que sacudiram o país na década de 1920. Eles também eram da pequena burguesia urbana. Também viveram seu processo de ascensão. E, ao confrontar o modelo político da República Velha, reinterpretaram o projeto positivista de civilizar o país. Já não se tratava de negar o Brasil, mas de ressignificá-lo.

O Brasil Grande de Vargas: a face cultural

O primeiro grande legado do período Vargas é uma revolução cultural. Assim como o projeto dos Bragança, Vargas procurou civilizar o país. Mas, diferentemente de seus antecessores, ao invés de tentar suplantar o Brasil, ele procurou assimila-lo. Para isso contribuiu o trabalho de Gustavo Capanema à frente do Ministério da Educação e Cultura. Era preciso construir uma nova visão de nossa história.

No âmbito da cultura, Vargas encontrou sua narrativa de legitimação no modernismo paulista. A partir do movimento de 1922, incorporou-se a proposta de se produzir uma narrativa do Brasil profundo. Isso se traduziu no regionalismo literário, que deu voz às histórias brasileiras de longe da corte: Jorge Amado e a Bahia do cacau, José Lins do Rêgo e a região canavieira, Érico Veríssimo e a saga gaúcha, Graciliano Ramos e o sertão nordestino.

Esse mesmo esforço se traduz na organização do Carnaval em escolas de samba, no cinema de Carmen Miranda, no samba de Caymmi e Assis Valente, no baião de Luís Gonzaga. O cinema e o Rádio se tornaram os grandes difusores da cultura nacional. O Brasil vê-se a si mesmo na cultura.

Mas, ao mesmo tempo em que o varguismo revela o Brasil profundo, ele organiza e disciplina essa narrativa a partir do Estado. Com isso, estabelece uma relação estável de dependência entre os produtores culturais e o Estado, tornado mecenas. Mesmo a indústria cultural que sobrevive sem as verbas governamentais dependerá do Estado para sobreviver: rádio e TV se tornam concessões públicas, escritores sobrevivem como funcionários públicos, editoras vendem livros para as escolas públicas. Do MEC de Capanema à Lei Rouanet, a elite cultural deve sua sobrevivência ao poder.

O Brasil Grande de Vargas: a face econômica

A indústria nacional, por sua vez, não precisou ser cooptada para o dirigismo estatal. Ela entregou sua liberdade voluntariamente. Sob a liderança de Roberto Simonsen e da recém criada FIESP, ela conclamou que o Estado a protegesse e a incentivasse. Filha de uma política liberal fracassada, a indústria perdeu a alma com uma política de planejamento estatal.

Não só clamou, por meio da Carta de Teresópolis, aprovada na I Conferência Nacional das Classes Produtoras em 1945. A indústria formou toda uma geração de economistas que iria ser absorvida pela burocracia do estado e conduziria a formulação da política econômica de viés desenvolvimentista.

A elite industrial paulista foi a grande promotora do desenvolvimentismo estatizante. O nome que batizou o processo não podia ser mais irônico e sincero: “substituição de importações”. O país da erudição vazia não desenvolveria ciência e tecnologia, mas praticaria a chamada “engenharia reversa”. Diferentemente dos orientais, filhos dos mandarins, plantadores de arroz que valorizavam a educação, o nosso “progresso técnico” (como o chamava Celso Furtado) manifestaria o nosso desprezo pelo conhecimento. Assim nascia aquele jeito de empreender que Jorge Paulo Lemann tanto valorizava.

Contudo, a mesma elite trataria de construir escolas. Nisso ela era fiel ao projeto de formação de uma nova elite, “científica” ao menos na aparência, que promoveria o progresso do Brasil. A partir da derrota da Revolução de 1932, São Paulo construiria a instituição base de seu próprio projeto positivista e civilizatório: a USP. A proposta fica bastante clara no manifesto fundador da Escola de Sociologia e Política, uma versão privada do que seria a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP:

Falta em nosso aparelhamento de estudos superiores, além de organizações universitárias sólidas, um certo centro de cultura político-social apto a inspirar interesse pelo bem coletivo, a estabelecer a ligação do homem com o meio, a incentivar pesquisas sobre as condições de existência e os problemas vitais de nossas populações, a formar personalidades capazes de colaborar eficaz e conscientemente na direção da vida social.

A Universidade de São Paulo nasceria com um viés fortemente cientificista, produzindo gerações de intelectuais que supostamente ofereceriam um caminho seguro e lógico para o país. Fernando Henrique Cardoso lembra que os professores de Sociologia usavam jalecos como se fossem cientistas de laboratório. A proposta era entender e planejar o Brasil.

Do Rio de Janeiro, orientações semelhantes eram adotadas pelo Clube Militar e a Escola Superior de Guerra, pelo Itamaraty e pela Universidade do Brasil. No campo econômico, a Fundação Getúlio Vargas buscava concentrar o debate sob a liderança de Eugênio Gudin. E a recém criada ONU entraria em cena com a criação da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal).

Quando olhamos em retrospecto e vemos os conflitos existentes entre todos esses grupos, tendemos a acreditar que entre eles havia uma divergência profunda de projeto. Mas no fundo era uma divergência de forma. No conteúdo, tratava-se de disciplinar e organizar o desenvolvimento econômico e social brasileiro. Até então o processo havia sido caótico, mas a partir daquele momento era hora de planejar. Do menos estatista (Eugênio Gudin) ao mais intervencionista (Celso Furtado), estavam todos buscando por ordem e progresso.

Curioso que até aquele momento o progresso aconteceu desafiando a ordem. A indústria nasceu de uma política econômica estúpida, cresceu movida por empreendedores de fora do sistema, e fora avançando de gambiarra em gambiarra, substituindo importações por aquilo que dava para fazer por aqui, explorando oportunidades abertas por crises cambiais sucessivas. A crise nos fizera maiores. Mas a crença de todos era que menos crise e mais controle seria melhor para o país.

A utopia do controle máximo: os militares

Como diz o Nassim Taleb, quando buscamos eliminar as crises acabamos criando crises maiores. Essa é a lógica do Cisne Negro. E foi o que o Brasil fez: de Vargas até 1964 foram crises sucedendo crises, várias delas causadas pela tentativa de consertar a crise anterior.

Ao fim do governo Juscelino, a economia parou de crescer. A pressão social subiu ao máximo. E, como consequência, o clamor por um regime de ordem cresceu igualmente. Às vésperas do golpe militar, o maior consenso na classe política brasileira era o de levar a democracia às favas. Alguns queriam implantar um regime soviético, outros uma nova versão da ditadura Vargas sob comando de João Goulart. Outros ainda queriam uma intervenção militar rápida. E outros, os que venceram, propunham reorganizar o Brasil à força sob comando militar.

O regime militar levou o sonho de dirigismo e controle da sociedade brasileira ao máximo. Por outro lado, criou um dos maiores Cisnes Negros de nossa História: a crise da dívida, que arruinou o regime e criou problemas fiscais que nos assombram até hoje.

[CONTINUA]

Paulo Roberto Silva

Jornalista e empreendedor. Mestre em Integração da América Latina pela USP.

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