A melhor maneira de acabar com esse arranjo formidável chamado "liberdade de expressão" é tratá-lo como um princípio universal.
1.
Liberdade de expressão não é um princípio, mas um arranjo (lembro de Olavo de Carvalho falando a respeito). Um arranjo inicialmente formidável, ao permitir legalmente que eu e você possamos falar certas coisas que podem desagradar uns.
No entanto, esse arranjo que consagramos em lei não pode ser um princípio universal. Vejamos. É aceitável uma manifestação antissemita? É aceitável uma manifestação racista? É aceitável uma manifestação que celebre o estupro da mãe de cada um que falou em “liberdade de expressão” para tratar da exposição “Queermuseu” do Santander? Se a resposta é sim, qualquer tipo de liberdade de expressão é aceitável, então teremos – na prática – o inverso do conceito. Pois, se a liberdade de expressão foi consagrada juridicamente para que cada um pudesse expressar aquilo que pensa sem sofrer retaliações físicas por isto, ao não ter qualquer limite, nenhuma restrição, ela provocará a mesma violência que inicialmente tentou evitar.
Liberdade de expressão irrestrita significa ofensa contínua, acirramento de rivalidades, e reações equivalentes ao seu grau de violência. Não espere que um judeu reaja bem ao ver a celebração da matança dos seus irmãos, não espere que um negro reaja bem ao ver a celebração do racismo etc. A melhor maneira de acabar com esse arranjo formidável chamado “liberdade de expressão” é tratá-lo como um princípio universal, pois – como ele não é Deus – necessariamente resultará em contradições práticas insuportáveis.
Então, o que limita a liberdade de expressão? Este limite tampouco é universal, mas envolve cultura (por sua vez, sagrado e perversão do sagrado), costumes, consenso, bom senso etc. Logo, um limite instável e movediço. De todo modo, quando a liberdade de expressão ameaça a paz social, quando ela se torna uma ameaça à boa convivência, o Estado tem o dever de sancioná-la ao ser procurado. Ainda assim, há sempre uma discussão em torno do que leva a esta instabilidade social. Por exemplo, não pode existir harmonia entre liberdade religiosa e a pauta da cultura liberal. O sujeito pode argumentar que a simples enunciação “pedofilia é pecado” gera violência contra pedófilos e abusa da liberdade de expressão. Como tudo na modernidade política, será a vontade pública que acabará decidindo. Os limites da liberdade sempre estão em disputa.
Como se pode ver, não há mundo ideal, pois se trata apenas de um arranjo com seus limites práticos. Ao mesmo tempo em que a modernidade política democratiza o poder e compartilha os bens, também acirra rivalidades, ao deixá-los ao alcance de todos e em meio a disputas com vários graus de legitimidade. Sobre mediação interna e democracia, ver meu “Girard apocalíptico”.
2.
Logo, podemos perceber que discutir a liberdade de expressão em si, desligada de seus fundamentos históricos e de suas disputas correntes, é papo de formalista sem imaginação histórica.
Do que se trata, realmente, a polêmica após o fechamento da exposição queer pelo Santander (exposição de “Domingo em Família”, inclusive para crianças)? Sabemos que se fosse uma manifestação artística antissemita, a conversa seria sobre ódio e não sobre liberdade de expressão. Sabemos que se o “nosso Calígula” tivesse feito uma manifestação artística celebrando a violência contra mulheres, a discussão seria sobre machismo e “sororidade” ou revolução sexual e licenciosidade, e não sobre liberdade de expressão. Então, trata-se apenas de uma coisa: de normalizar o ultraje ao culto e ao sagrado, de normalizar a pedofilia e a zoofilia, como se estas coisas não fossem ofensivas, asquerosas, antissociais, nem representassem um tipo de violência terminativa e irracional. Em um ensaio recente, expliquei porque a cultura liberal ataca as proibições e os tabus, e porque isto é fundamental no seu processo de má imitação.
Vamos para um caso prático sobre a disputa em torno dos limites da liberdade. Na Província de Quebec, no Canadá, se você é contra a ideologia de gênero, pode perder a guarda dos seus filhos, mas se você diz que “cristãos são a pior parte da sociedade canadense”, vira primeiro-ministro. Por lá, na prática, você enunciar que determinada prática é pecado ultrapassa o limite da liberdade de expressão, mas ultrajar um culto, não.
Isto não significa que o cristão precisa entrar neste jogo de reciprocidade, pois estaria depositando suas esperanças neste mundo, no tempo e não no eterno. No entanto, ele tem o dever de saber do que se trata e de anunciar a Verdade sem medo da Cruz. Por isto, deve usar dos mecanismos possíveis para se defender. Ninguém precisa quebrar a exposição do “Calígula”, nem vandalizar agências do Santander, mas entrar com um processo (que visa mais uma proteção futura do que propriamente esse caso) e exercer pressão sobre patrocínios é educativo.
Elton Flaubert
Doutor em História pela UnB.