A nova direita vai (pela primeira vez) à galeria de arte

por Rodrigo de Lemos (12/09/2017)

O abismo se aprofunda entre a sociedade liberal e aquela versão do cristianismo impaciente quanto ao contrapeso secular.

Como toda coisa infantil, um dia, a nova direita adolesceu. E adolesceu no meio de uma galeria de arte contemporânea. Como ela foi parar lá, ela que não entendia nada do assunto, até porque não foi achada nenhuma menção ao tema no livro do Trivium da Irmã Miriam Joseph? Ninguém sabe; ninguém viu. Mas o fato é que o adolescer revoltado da nova direita deixou para trás uma exposição (meia-boca) fechada precocemente, talvez algum subdiretor de um banco internacional desempregado, aparentemente agências depredadas, um punhado de artistas com cicatrizes de luta antifascista valorizando o portfolio e (carregado em triunfo por jovens religiosos) um artigo no jornal globalista The New York Times sobre como a galerinha de Porto Alegre sabe zoar azinimiga.

Afora isso, o sentimento de que algo aconteceu é inelutável. Algo como o 7×1 contra a Alemanha, como a gravação do Bessias de Dilma, como o Charlie Hebdo (até o momento, sem mortos!): a line has been crossed. A partir do episódio Santander, as apostas são redobradas. Há um cheiro indisfarçável de podridão que invadia as ruas e que chegou à sala do trono da Dinamarca. Estamos todos fingindo que não sentimos, mas sabemos todos que ele está lá e que alguém terá, em algum momento, de fazer alguma coisa.

Quem sentia como um fardo o domínio da esquerda brasileira (uma esquerda de pendor autoritário, inebriada pela própria estupidez) aspirava a que qualquer coisa, uma pedra jogada por alguém de algum lugar, quebrasse o teto de vidro da FFLCH e da Folha e do PT – teto o qual, de todo jeito, só pedia mesmo para ser quebrado. Há dez anos, podia-se ter a esperança de que, pelas frestas, circularia um ar melhor, de que haveria alguma coisa como um verdadeiro debate de ideias entre conservadores e progressistas, aquela coisa sobre a qual a gente lê na imprensa internacional como sobre croissants no café-da-manhã e passeios na rua tranquilos depois das dez da noite. Acontece que o que quebrou o teto de vidro da esquerda foi uma bombinha de gás nauseabundo. A direita passou anos observando a esquerda linchando os inimigos não para evitar a estratégia e incrementar a racionalidade do debate, mas para fazer igual.

Mimetizou inclusive aquela técnica de censura por pressão que instala, com as redes sociais, uma nova era de sufocamento do indivíduo. Quem precisa agora de algum Departamento da Verdade ou de uma Divisão de Informações no Brasil ou na Romênia para suprimir do espaço público uma mensagem inconveniente? Basta alguma maioria tirânica devidamente espumosa organizar-se pelas redes sociais para fazer com que algo que lhe desagrada desapareça imediatamente, como num mundo encantado. Claro que não há problema algum em que o público que gosta de arte queer seja privado de uma exposição de arte queer (quem se importa? Eles estão do outro lado mesmo…). Sobretudo, eu, que não gosto de arte queer, para refutar a arte queer, não preciso me relacionar com a arte queer, tentar entender a arte queer, mostrar no que ela é ruim, no que ela me ofende, quem sabe até o que nela nem é tão imprestável. Isso é a racionalidade do passado. Não, eu não empreendo uma crítica, mas um boicote à existência mesma da arte queer, porque ela tem de ser destruída. Eu e o meu grupo vamos nos sentir bem melhor assim. E dane-se quem não pense como eu.

Bruno Tolentino contava, indignado, que a esquerda (tipo Irmãos Campos, Marilena Chauí), quando discordava de alguém, não escrevia um ensaio contra as suas ideias; organizava um manifesto de intelectuais para pegar o sujeito na saída e acabar com a sua existência social. Não se pode dizer que a nova direita não tenha aprendido a lição.

Diante desse poder avassalador e anônimo que emana das redes sociais e que a nova direita soube manipular, os liberais perderam as bússolas. Compreendiam o mundo como a luta eterna entre Mazda e Ahriman, entre Estado e sociedade civil. Qualquer forma de opressão coletiva que não obedeça a esse esquema é indetectável: se não houve coerção estatal para retirar as obras… Encontrariam elementos para a análise da nova situação nos próprios grandes autores do liberalismo (Benjamin Constant, Alexis de Tocqueville, Benedetto Croce, Leszek Kolakowski, Marcel Gauchet, José Guilherme Merquior). Mas o liberalismo brasileiro, até agora, tem sido mais frequentemente do que deveria um liberal-populismo, um anti-estatismo vulgar, multiplicado em memes e em piadinhas anti-PT. Pouco a ver com aquela ideologia que preside ao ideal do indivíduo autônomo contra o fundo da autoridade coletiva – quer ela esteja dentro, quer esteja fora do Estado: na família, na etnia, na religião.

Aliás, a religião. Nessa confusão do Santander, alguns liberais estão descobrindo sua verdadeira vocação: são em realidade conservadores religiosos, impacientes do jugo do burocrata em favor do jugo do sacerdote (suave é meu jugo…). Falam em nome de princípios e de uma coletividade que nada tem a ver com as liberdades modernas. Fico feliz por eles; é sempre bom alguém tornar-se o que já é. Entretanto, não há como não se perguntar até que ponto essas liberdades modernas são compatíveis com o cristianismo integrista. O Islã já deu a sua resposta. Quanto ao cristianismo, como esse regime de verdade universal, e mais, regime de verdade universal visceralmente expansionista, pode se adequar à cité de hoje, liberal no sentido de que não há consenso sobre primeiros princípios? Mais ainda, como esse regime de verdade universal expansionista pode conviver com gente que não apenas não reza pela mesma cartilha, mas para quem os seus princípios e os símbolos que os acompanham são vazios, quando não nocivos?

Como com o Islã, as fricções estão surgindo, e o abismo se aprofundando entre a sociedade liberal e aquela versão do cristianismo impaciente quanto ao contrapeso secular. Entende-se que seja assim com essa religião para a qual certos atos pecaminosos socialmente inofensivos são graves como homicídio e que, portanto, milita com afinco para que esses mesmos atos inofensivos não sejam jamais sancionados legalmente, mesmo para gente que não pertence à sua comunidade de crença. De resto, o que o episódio do Santander suscita é uma discussão sobre os recursos do cristianismo para estabelecer essa convivência com quem nega os seus primeiros princípios a ponto de zombar deles. Será essa convivência mais ou menos civilizada algo de externo ao cristianismo, fruto da intervenção do Estado? Em todo caso, a alegação de blasfêmia como motivo suficiente para exigir o fechamento de uma exposição deveria no mínimo por um “cristão liberal” em uma posição desconfortável, tão mais quando ele sabe e só pode saber que, para uma parte importante da sociedade, a blasfêmia é e será sempre o crime sem vítima por excelência.

Uma última palavra: não posso deixar de distinguir na arte blasfemadora exposta no Santander (não é o caso da arte blasfemadora per se? Não lembro de contraexemplos…) uma profunda puerilidade, uma estupidez embaraçosa. Mas é mesmo necessário um poder, estatal ou não, que proteja a sociedade da puerilidade e da estupidez na base da intimidação? A esquerda tentou essa cruzada fanática contra a puerilidade e a estupidez que são o machismo, o racismo e a homofobia, e o resultado foi no mínimo ambíguo. Precisamos mesmo de trigger warnings e de safe spaces conservadores?

Rodrigo de Lemos

Doutor em literatura pela UFRGS e professor na UFCSPA. Escreve no site do Estadão e em outros veículos.

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