A peleja de Deus e o diabo nos Trópicos

por Paulo Roberto Silva (23/09/2017)

Magia e modernidade secular na cultura brasileira.

O Brasil é um país estranho em termos de espiritualidade. Por essas bandas ateu faz promessa a Santo Antônio, padre quebra zica e terreiro de Umbanda vira igreja evangélica. Apela-se a uma Constituição promulgada em nome de Deus para invocar o Estado Laico. Nossa Senhora é tema de escola de samba no Carnaval. E religiosos defendem os poderes curativos de uma pílula contra o câncer produzida por um professor da USP.

É importante mergulhar nas raízes históricas dessa curiosa espiritualidade tropical, se quisermos entender o poder de uma bancada da Bíblia neste país. A elite cultural, protegida em algum boteco pé sujo no Baixo Augusta, não consegue entender o espírito mágico que reina nas periferias. Assim como antropólogos europeus viam os povos indígenas como exóticos, e como algo exótico que nossa elite vê o próprio país.

Religião de salvação em um mundo mágico

A base da pirâmide vive em um mundo mágico, no qual sua sobrevivência depende de vencer as forças demoníacas da natureza e da sociedade. Vivendo entre a vida e a morte sob a ameaça da fome, do desemprego e do crime, o pobre aciona a ajuda dos céus para vencer seus inimigos particulares.

É uma forma muito peculiar de religião de salvação, porque integra elementos de magia e animismo aos clamores a forças superiores, sejam elas quais forem: Deus, Nossa Senhora, o Espírito Santo, Padre Cícero, os orixás ou os espíritos. É um messianismo mágico, que busca apoio na luta contra as forças mágicas hostis em um Salvador. A qualquer momento um filho pode ser perdido para o tráfico, uma injustiça pode lhe tirar o emprego, uma força econômica inexplicável como as pedaladas pode trazer-lhe o desastre.

De certa forma, a vida do pobre é uma luta diária contra os demônios. Isso explica a importância da religião para essa camada da sociedade: para ele o mal está presente, e age em seu cotidiano como um perigoso sabotador. Entregar-se pode significar perder a vida, pra valer. Por isso o pobre resiste ao mal. Representativo desta luta cotidiana é uma canção devocional popular cantada em romarias desde sempre:

Se as águas do mar da vida
Quiserem te afogar
Segura nas mãos de Deus e vai
Se as tristezas desta vida
Quiserem te sufocar
Segura nas mãos de Deus e vai
Segura nas mãos de Deus
Segura nas mãos de Deus
Pois ela te sustentará
Não temas, segue adiante
E não olhes para trás
Segura nas mãos de Deus e vai

Religião [ou a falta dela] de legitimação

A elite cultural não segura nas mãos de Deus. Ela trata Deus com reverência distante. Para a elite, a religião é uma experiência intelectual e moral. Não se luta contra o diabo, serve-se ou ignora-se. Busca-se na espiritualidade uma experiência estética, uma catarse que livre das preocupações cotidianas.

Por isso, o mercado de espiritualidade oferece produtos diferenciados para esse tipo de pessoa. Ao invés de magia e exorcismo, busca-se um rito intelectualmente inteligível e esteticamente agradável. É isso que une o praticante de ioga, o daime e o católico tradicionalista: tanto o culto budista quanto o rito tridentino da missa oferecem uma liturgia carregada de teatralidade. É uma experiência puramente intelectual e estética.

Para a elite cultural, a sua vida não está em jogo. Por isso, ao invés da derrota dos males cotidianos, o que ela busca é a confirmação de suas certezas. A elite cultural não está em guerra pela sobrevivência. Sua causa é outra: provar-se certa e civilizar esse país caótico e disfuncional. Por isso, a religião de elite é essencialmente livre de conflitos morais internos. Pelo contrário, todo embate moral envolve submeter o outro à sua própria visão de mundo.

A não ser que o vazio espiritual cobre seu preço sob a forma de transtornos de depressão e ansiedade. Nessa hora o filho da elite vê-se com a vida em perigo, e aí ele se vê instado a enfrentar os seus demônios. Mesmo assim, neste momento o mais comum é se voltar às religiões de salvação dos mais pobres.

Neste universo de certezas e satisfações intelectuais, não ter religião é uma forma de legitimação. O agnosticismo de nossa elite não reflete a rebeldia contra a religião institucionalizada, mas sim a indiferença a uma luta desnecessária. Não há demônios nem forças hostis a se enfrentar. Há apenas um atraso a se vencer – e a religião faz parte dele.

Mas a inexistência de uma luta contra o demônio não significa que ele não exista.

O pobre peca pela carne, a elite pelo espírito

S. Lewis, em seu Cristianismo puro e simples, diferencia os pecados entre os causados pelo nosso lado animal e os causados pelo demônio. Os pecados animais dizem respeito aos nossos instintos, como a luxúria e a ira. Já os demoníacos seriam relacionados ao nosso intelecto, como a soberba e a mentira. Quem come sem controle é animalesco, quem leva a própria marmita a um jantar por causa daquela dieta é demoníaco.

Existe pecado do lado de baixo do Equador, e ele é o Império dos instintos. Isso explica como é possível combinar a disciplina exigida pelo combate diuturno ao demônio com o baile funk, a roda de samba e o Carnaval. Porque a luta contra o demônio não envolve um embate moral, mas a própria sobrevivência. É a pessoa mesma, nesta vida, que está em risco, não apenas sua alma imortal. A pessoa está inserida em um eterno Brasil Urgente, sem o Datena de apresentador. Por essa razão, convive-se com certo grau de “espírito de Datena” em seu cotidiano.

Falta ao pecado popular o senso estético e teatral que se exige da elite cultural. Porque matar o próprio pai ou comer a professora pura e simplesmente ofende ao senso estético das classes médias – a não ser que esteja em um roteiro de Tarantino. Neste meio, é a alma toda do sujeito que se submete à escravidão de uma narrativa, exigindo dela um comportamento estereotipado. Social Justice Warriors, golpistas e golpeados, conspiração comunista gnóstica, empoderados etc. O demônio governa as inteligências.

De certa forma, essa diferença de se relacionar com Deus (clamor salvífico x indiferença) e com o diabo (instintos x escravidão intelectual) reflete uma clivagem civilizacional. Como discutimos na série sobre Cultura de Riscos, Gambiarra e Jeitinho, nossa história é marcada por um Brasil oficial dos intelectuais de estado tentando sufocar o Brasil mameluco. Este conflito se manifesta de forma peculiar na nossa relação com a religião.

A herança jesuíta: o sincretismo

O Cristianismo trazido para essas bandas não foi nem o calvinista dos Estados Unidos nem o tipicamente medieval da América Espanhola, mas o jesuíta. A forma como o jesuíta vive a fé cristã é ascética como o protestante, e devocional como o catolicismo medieval. Ao mesmo tempo, o jesuíta apresentava um menor rigor moral que os calvinistas, é uma visão de mundo mais científica e moderna que os evangelizadores da América espanhola.

Em todos os lugares em que os jesuítas comandaram as missões, eles promoveram um profícuo diálogo cultural com a civilização visitada. Na China isso resultou na Querela dos Ritos que matou o catolicismo chinês no nascedouro. No Japão deu origem aos kiristãos, cristãos clandestinos que disfarçavam sua fé sob símbolos budistas, retratados em O silêncio de Shusako Endo. Mas foi no Brasil que o método jesuíta marcou mais fundo a cultura nacional.

A religiosidade popular brasileira é herdeira da pregação jesuíta, que buscou na religião animista dos tupiniquins elementos de contato com a fé católica. Benzimentos, simpatias, promessas e todos os elementos mágicos que abundam no neopentecostalismo e no catolicismo carismático remontam ao amálgama produzido por Anchieta e Manoel da Nóbrega em nossas origens. A estratégia jesuíta era basicamente substituir nos aldeamentos o pajé pelo padre, oferecendo os mesmos serviços que aquele, mas com uma roupagem científica e católica. Terapêuticas médicas eram disfarçadas de benzimentos e simpatias, e os sacramentos e sacramentais foram impregnados dos elementos mágicos da religiosidade Tupi.

Facilitou o processo o nascimento da devotio moderna no catolicismo europeu da Contra Reforma. Para se opor à ascese dura da Reforma Protestante, os jesuítas intensificaram os aspectos sentimentais e sensoriais da devoção católica. Enquanto os calvinistas tiravam as imagens de santos das paredes das igrejas e reduziam a liturgia a uma pregação, os jesuítas faziam exposições do Santíssimo Sacramento, espalhavam imagens de Nossa Senhora e mandavam ver nas bençãos. No Brasil, essa abordagem encontrou terreno fértil no animismo indígena, e rapidamente se amalgamou.

A herança iorubá

A escravidão negra trouxe novos elementos à devoção popular, especialmente da mitologia iorubá. Enquanto nos Estados Unidos a herança iorubá foi recomposta pós escravidão por imigrantes nigerianos, e se resumiu a elementos tribais na cultura pop negra e na política, no Brasil ela teve papel preponderante na cultura popular.

Ao encontrar a devoção sincrética construída pelos jesuítas, os iorubá escravizados viram um caminho fácil para traduzir sua mitologia em termos católicos ocidentais. Os orixás foram ressignificados como os santos católicos, e a devoção popular incorporou elementos rituais iorubá. Os ritos afro-brasileiros se espalharam pelas irmandades católicas, associações de leigos que cuidavam das igrejas, e também ganharam forma organizacional própria, como no candomblé. Práticas como lavar a escadaria da igreja de Nosso Senhor do Bonfim, misturando elementos católicos e africanos, se tornaram comuns.

O clero iluminista e o padroado

A expulsão dos jesuítas do Brasil reduziu drasticamente a oferta de padres pelo país. As igrejas ficaram sob comando das irmandades, e nos centros urbanos o governo português inseriu um clero formado em Portugal. No século XVIII, a formação do clero tinha viés iluminista e racionalista, o que o levava a desprezar a religiosidade popular. O padre era um filho da elite, geralmente ligado à maçonaria – apesar de na Europa católicos e maçons viverem às turras.

Essa realidade se prolongou durante o Império, que tornou o clero funcionário público e colocou as igrejas sob gestão do Estado, transferindo para o Imperador o controle da instituição colonial do Padroado. Por meio dela o rei de Portugal, e, depois, o Imperador, era o superior da Igreja na colônia. A ele deviam obediência bispos e padres diocesanos, exceto os jesuítas, que reportaram diretamente a Roma.

Durante o Império, doações e esmolas eram desviadas das igrejas para o bolso de membros ricos da sociedade que eram nomeados pelo governo como beneméritos das paróquias. A devoção popular, contudo, avançava à revelia do desdém do clero: afinal, os padres eram poucos e as áreas paroquiais imensas.

A ofensiva do ultramontanismo

O catolicismo tradicional no Brasil teve seu ponto de partida na segunda metade do século XIX, sob influência francesa, e como resistência à ingerência do Estado por meio da instituição do Padroado. Os ultramontanos brasileiros queriam realinhar a Igreja no Brasil a Roma e ao Papa, e colocar as igrejas paroquiais sob controle dos bispos. Para isso, se inspiraram no chamado “movimento ultramontano” francês, que buscava inspiração em Roma ou “além das montanhas”, no caso os Alpes que separam a França da Itália.

A ofensiva ultramontana demarcou de forma definitiva um distanciamento do clero católico com a devoção popular que só seria recomposta no movimento carismático. Ela definiu a formação dos padres por quase um século, fomentando uma visão formalista da fé e condenando todo sincretismo. De certa forma, esse distanciamento criou espaço para o avanço do espiritismo na população brasileira, que ocupou o vazio deixado pelo fim das irmandades.

Mas essa ruptura não foi radical. Os ultramontanos trouxeram novas devoções, na moda da Europa do século XIX, que ganharam apelo popular, como o Sagrado Coração de Jesus e Santa Terezinha. As associações de Apostolado da Oração, Legião de Maria e São Vicente de Paulo (vicentinos), entre outras, se espalharam pelas paróquias e reorganizaram o povo católico. E, em especial, foi durante a ofensiva ultramontana que se disseminou Brasil adentro a devoção a Nossa Senhora Aparecida, que até então era restrita ao estado de São Paulo.

Contribuiu para isso a intensa migração européia, especialmente da Itália e da Espanha. Retirados de um outro contexto e criados em outra forma de catolicismo popular, os imigrantes apresentavam demandas religiosas alinhadas às propostas do ultramontanismo. O imigrante pobre ajudou a Igreja a popularizar sua nova forma de devoção e oração.

Ainda assim, o clero manteria por um longo período uma aversão à forma brasileira da religiosidade popular. Figuras como padre Cícero e frei Damião seriam pontos fora da curva. Oficialmente, a Igreja Católica latino-americana só reconheceria o valor das devoções populares no Documento de Aparecida da Comissão Episcopal para a América Latina e o Caribe (CELAM), em 2005, e o faria sob a influência de um jesuíta: Jorge Mario Bergoglio.

A expansão do Espiritismo

A romanização da Igreja Católica deixou o seu rebanho livre para aderir a uma nova forma de devoção: o Espiritismo, especialmente na linha de Alan Kardec. Enquanto na Europa os espíritas eram restritos à elite intelectual (Chesterton chegou a frequentar grupos espíritas na Inglaterra durante um tempo de sua vida), no Brasil ele se tornou uma religião peculiarmente popular. De certa forma, sua teologia baseada na possibilidade de se conversar com as almas dos mortos dialogou com o mesmo espírito mágico do brasileiro em que os jesuítas se basearam.

A influência do espiritismo no Brasil tornou-se maior do que o número daqueles que se declaram espíritas. Pesquisa realizada pela CNBB no final dos anos 1990 mostrava que a maioria dos católicos acreditava em reencarnação. Vários católicos não praticantes incorporaram práticas espíritas em seu dia a dia. E o Brasil é a pátria da maior personalidade de massas do espiritismo, Chico Xavier, que inclusive foi eleito O Maior Brasileiro de Todos os Tempos pelo voto popular em um programa do SBT.

O espiritismo também se amalgamou aos ritos afro-brasileiros de forma própria, dando origem à Umbanda. O umbandismo se tornou, lado a lado com o candomblé, a expressão religiosa afro-brasileira por excelência.

A elite busca o caminho do povo

A partir dos anos 1950, dois movimentos paralelos, na Igreja Católica e na cultura pop, promoveriam uma tentativa de aproximação com a religiosidade popular. Por um lado, o clero católico busca romper o distanciamento com povo por meio de ações sociais. Por outro, influenciados pela contracultura hippie, intelectuais, artistas e militantes transformariam a Bahia em sua Índia e o candomblé em seu Hare Krishna.

O movimento dos intelectuais de esquerda rumo à Bahia e à Amazônia produziria peças musicais interessantes. Tornaria a Umbanda e o candomblé, junto do Santo Daime, uma espécie de “meu rito exótico favorito” dos intelectuais. Mas não popularizaria nada. Pelo contrário, daria aos ritos afro-brasileiros e a vertentes do espiritismo aquele verniz de esteticidade sem compromisso que nossa intelectualidade gosta.

O esforço católico é anterior, e remonta à influência da Ação Católica. Aliás, a versão brasileira do ultramontanismo tinha em si um viés social. O fim do Padroado coincidiu com o papado de Leão XIII, e uma das primeiras encíclicas papais a chegarem ao Brasil sem censura do Imperador foi a Rerum Novarum, que defendia o envolvimento dos católicos nas lutas sociais. Na Europa a Rerum Novarum influenciaria a formação de partidos “Democratas Cristãos” e de sindicatos católicos, especialmente na Alemanha. No Brasil deu início a uma articulação política lenta, cujo ápice se daria nos anos 1930, com a criação da Liga Eleitoral Católica, sob a influência do cardeal Sebastião Leme, do Rio de Janeiro.

O Centro Dom Vital reunia a intelectualidade católica e debatia os autores que inspiravam a Ação Católica e a ação dos leigos católicos, como Jacques Maritain e outros de inspiração neotomista. Jackson de Figueiredo, Gustavo Corção e Alceu Amoroso Lima foram os líderes do debate filosófico que se dava neste ambiente. Com a fundação da Ação Católica do Brasil, pelo cardeal Leme, seus primeiros líderes sairiam do Centro Dom Vital.

Dom Helder Câmara, à época bispo auxiliar do Rio de Janeiro, se inspirou neste movimento e começou a promover uma maior articulação política e social da Igreja. Nos anos 1960, esse movimento desencadearia a fundação da CNBB e uma crescente influência do marxismo no meio católico. A Ação Católica formaria quadros para a Ação Popular, partido da esquerda católica com forte presença estudantil. Padres dominicanos de São Paulo estabeleceriam relações com a ALN de Marighela. E tudo isso iria parar na Teologia da Libertação.

A reação dentro da Igreja não demorou. A Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP) sairia em defesa de um catolicismo mais tradicional, mais próximo da proposta ultramontana. Gustavo Corção romperia com Alceu Amoroso Lima e questionaria duramente as novas tendências da Igreja. Mas a linha de organização das Comunidades Eclesiais de Base (CEB) e o marxismo católico chegariam para ficar.

Ainda assim, objetivo de aproximar a Igreja do povo fracassaria. Os apóstolos da libertação levariam política a um povo que queria ajuda espiritual para enfrentar as forças diabólicas que o mantém na miséria. Foram às periferias procurando o proletariado revolucionário, e encontraram Riobaldo, o nosso Fausto, tão brilhantemente traduzido por Guimarães Rosa. Levaram Marx a quem estava buscando algo entre Santo Expedito e Chico Xavier. Conseguiram até ajudar a criar o PT. Mas não resolveria as demandas espirituais desse grupo.

Dom Helder Câmara é conhecido como o bispo dos pobres. Mas seria outro o bispo a conseguir ganhar a alma dessa gente.

Bispo Macedo contra a pomba-gira

Os primeiros cristãos evangélicos chegaram ao país com os imigrantes alemães e em missões de norte-americanos. Formados em uma ética do trabalho e ascética intramundana rígida, eles acharam o Brasil um caso perdido: nossa elite indolente e vazia, e nosso povo enfiado até os pés na bruxaria. Resolveram fundar escolas como parte de uma estratégia de formação de uma nova elite, meritocrática, ascética e capitalista.

As Igrejas Reformadas cresceram lentamente no Brasil, inseridas principalmente em comunidades de imigrantes – caso da Igreja Presbiteriana de Formosa, forte entre descendentes de japoneses. Nas periferias as denominações mais aceitas eram as pentecostais, como a Congregação Cristã do Brasil e a Assembleia de Deus, mas elas ainda eram marginais.

Até que dois cunhados, Edir Macedo e R. R. Soares iniciaram sua própria denominação em um coreto no Méier. O nome, Igreja Universal do Reino de Deus, não dizia nada de mais a princípio. Mas em alguns anos ela sairia daquele coreto e se tornaria não só uma das maiores denominações evangélicas do país como promoveria uma revolução no cenário religioso do país, influenciando iniciativas semelhantes.

A grande sacada de Edir Macedo foi combinar a teologia de cura e libertação dos pentecostais norte-americanos com o universo mágico das periferias. Os exorcismos, o transe e o estilo de discurso já eram práticas das igrejas evangélicas que praticavam o chamado “Avivamento”. Macedo deu nome aos demônios: pombas-giras, Exus, orixás, pretos velhos. Todos nomes tirados do espiritismo e dos ritos afro-brasileiros.

Os teólogos da libertação iam até o pobre e diziam que esses seres não existiam, só existia o capitalismo como o grande mal. Edir Macedo não: eles existem, são demônios, e estão te prejudicando por meio de feitiços. As CEBs racionalizavam e politizavam as forças mágicas da natureza. A Igreja Universal e seus similares compravam briga com elas, e quebravam o feitiço. Do ponto de vista do pobre da periferia, em seu mundo cercado por demônios, os padres marxistas podiam até ser legais, mas Edir Macedo e seus pares são feiticeiros poderosos, capazes de quebrar qualquer macumba que tenham feito contra eles.

O impacto de Edir Macedo na conformação do imaginário popular é equivalente ao dos jesuítas Anchieta e Manoel da Nóbrega e ao de Chico Xavier. Sua influência é tal que até a Igreja Católica se mexeu.

Missas de cura e libertação

A Renovação Carismática Católica foi trazida ao Brasil por dois jesuítas (novamente eles): Haroldo Joseph Rahm e Eduardo Dougherty. Durante os anos 1960 e 1970, eles foram organizando grupos de oração pelo Brasil, até que em 1974 foi realizado o primeiro Congresso Nacional da Renovação Carismática Católica. No final dos anos 1970, o padre Jonas Abib fundaria em Cachoeiro Paulista a Comunidade Canção Nova, cuja espiritualidade é baseada na Renovação Carismática.

Contudo, foi nos anos 1990 que o movimento carismático se tornaria hegemônico no catolicismo brasileiro. Coincidentemente, foi o período de maior expansão das igrejas neopentecostais. Quando os católicos se viram ameaçados pela expansão do pentecostalismo, encontraram sua própria versão do fenômeno já organizada na Canção Nova e na Associação do Senhor Jesus, fundada por Eduardo Dougherty para promover a evangelização pela TV.

A Renovação Carismática trouxe a luta contra os demônios para dentro da Igreja Católica. Mas ao invés dos exorcismos tão caros aos neopentecostais, o foco está na “cura e libertação”, ou seja, na invocação do Espírito Santo e de Nossa Senhora para “quebrar a zica”. Os carismáticos recuperaram práticas devocionais populares há muito tempo perdidas no catolicismo oficial, como terços e bênçãos, e os ressignificaram dentro da espiritualidade pentecostal. Os católicos brasileiros estão de volta ao mundo mágico em que os jesuítas o haviam inserido.

Implicações práticas

Toda vez que os intelectuais brasileiros confrontam o fenômeno religioso das nossas periferias, o estranhamento é equivalente ao de um antropólogo em Marte. Não se conformam que um sujeito no mínimo ambíguo como Edir Macedo tenha tanta influência, a ponto de seu sobrinho Marcelo Crivella se tornar prefeito do Rio de Janeiro. Ou mesmo como alguém tão desafinado como o padre Marcelo Rossi seja um dos cantores mais vendidos. Ao olhar estético e formalista da nossa elite, isso soa muito de mal gosto.

Antônio Flávio Pierucci, em seu capítulo introdutório de Sociologia da religião e mudança social, lembrava que toda sociologia da religião praticada no Brasil havia sido uma sociologia do declínio do catolicismo, ou então uma sociologia do exótico. À época deste artigo, em uma conversa pessoal, ele me disse que sentia falta de uma sociologia sobre o catolicismo brasileiro como um fenômeno em si. Recebi isso como uma provocação para fazer algo, mas minha trajetória acadêmica acabou seguindo outros rumos. Ou seja, ainda existe essa lacuna a ser preenchida.

Isso acontece porque há um abismo epistemológico entre a elite intelectual e o povão. Os pobres estão imersos em uma luta pela própria sobrevivência, e o discurso de mudança social da esquerda não dialoga com isso. O conservadorismo do tradicionalismo católico tampouco fala a esses sentimentos. O risco de ver tudo “ir para o saco” é imediato. Por isso, as missas de cura e libertação e os ritos de exorcismo falam fundo às suas necessidades: o mal está presente agora, e precisa ser combatido já.

Ou nossos intelectuais compreendem os conflitos existenciais mais profundos da alma do brasileiro, ou continuará sendo surpreendido.

Paulo Roberto Silva

Jornalista e empreendedor. Mestre em Integração da América Latina pela USP.

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