A questão política é uma constante na obra de Manoel Herzog, que no entanto não é panfletária, mas sim de alto nível artístico.
Se em CBA – Companhia Brasileira de Alquimia é a música clássica que conduz a narrativa, em A jaca do cemitério é mais doce, de Manoel Herzog, são as letras de samba e MPB que dão tom da obra. Ambos se passam na cidade de Cubatão e o protagonista do primeiro, Germano Quaresma, o Poeta, aparece também no segundo, como amigo e colega de trabalho de Santiago Hernández, o anti-herói da história, “um tosco operador de sistema industrial na Companhia Brasileira de Alquimia”.
“Saibam todos vocês, o amor que eu tinha por ela acabou. Acabou friamente, pois cinicamente ela me enganou”, um dos versos citados no enredo e que foram imortalizados pela voz de Roberto Ribeiro na música “Triste desventura”, nos remete ao apaixonado Santiago, que nutre por Natércia, desde os tempos da escola, um amor platônico. Na idade adulta, consegue conquistá-la dançando em uma gafieira. Vão morar juntos, mas as desconfianças desse Dom Casmurro sambista indicam que as coisas não vão terminar nada bem para o casal. Entrando em cena um tal de Vivaldo, melhor do samba no pé do que Santiago, as más línguas prontamente começam a alertá-lo quanto a uma possível traição, o que o leva a algumas atitudes condenáveis.
A galeria de personagens é composta por diaristas, como a Marcleide, que irrita o patrão esquerdista por sua posição política (“Pobre de direita. Outro dia deblaterava contra programas sociais do governo. Perguntada a razão de tanto ódio, sendo pobre, saiu-se com a resposta que era pobre mas não se encostava, antes trabalhava duro, e que não se conformava de sustentar o que considerava uma cambada de vagabundos que só sabia fazer filhos.”); trabalhadores da fábrica, cuja insalubridade rende um dinheirinho considerável no fim do mês (“A CBA pagava bem pela vida de seus funcionários.”); ex-policial, expulso por envolvimento com criminosos, caso do rival do Santiago (“Logo os meganhas o imobilizaram, contudo; Vivaldo tinha sido um deles, expulso por envolvimento com traficantes e acusações de chacina de indigentes.”); pedreiros e ajudantes, como Beneval e Esquisito; o porteiro do condomínio do protagonista, que o apelidou de Bidgis, por ser parecido com um dos integrantes do trio inglês; e por aí vai.
A condução da trama é feita, não me furto em dizer, com mãos de mestre. Logo nas primeiras trinta páginas começamos a perceber o estado emocional do protagonista e o que isso reflete nas pessoas ao seu redor. O narrador nos dá pistas do que está acontecendo, porém elas vão se modificando à medida que o leitor avança e as primeiras impressões se esvaem. Digo apenas que uma composteira caseira mantida por Santiago e um manequim roubado de uma loja terão papel relevante na trama.
A questão política é outra constante em toda a obra de Herzog, pois seus personagens vivenciam uma luta contra quem é reacionário e opressor, conforme o escritor afirmou em entrevistas. Porém, sua obra não tem nada de panfletária, pois sua preocupação acaba sendo, pelo menos na minha leitura, obter o máximo de efeito com a linguagem, alcançando uma formatação artística de alto nível, sem entregar o ouro, fazendo o leitor procurar as referências, tanto eruditas como pop, e decifrar as elipses. Importante ressaltar também a ironia e o humor, que em A jaca do cemitério é mais doce atinge a questão do politicamente correto dentro do “mundo proletário”, como no caso do uso dos apelidos: “o apelido tem por finalidade aniquilar um concorrente. Por exemplo, o Ponto-e-Vírgula, instrumentista manco devido a uma poliomielite na infância; este nunca Santiago quis humilhar, intuição, era como antevisse seu destino”.
Quanto ao título do romance, cuja explicação é demonstrada no decorrer do enredo, me fixo na fruta que, confesso, me fez lembrar do Chacrinha. A jaca não fez parte da minha infância, só a via na TV, sendo jogada para o público pelo apresentador, cujo bordão famoso, “vai para o trono ou não vai?”, se perguntado para o crítico sobre a obra de Manoel Herzog, seria certamente respondido com uma afirmação: “Vai!”
Cassionei Petry
Professor e escritor. Seu novo livro é Cacos e outros pedaços.