Cordialidade e diálogo são características de Antonio Carlos Secchin.

“Desdizer”, de Antonio Carlos Secchin (Topbooks, 2017, 212 páginas)

Ítalo Calvino alertara para os perigos da leitura da Odisseia. No périplo do leitor, além de escolhos há diversas odisseias na Odisseia. No coração do texto homérico, é o próprio herói que, choroso por ouvir Demódoco cantar suas aventuras, revela-nos suas desditas. No entanto, como herói polítropo (de várias formas, multifacetado, versátil, astucioso), não deveríamos desconfiar desse relato? Talvez essa mudança de voz – da voz do narrador épico para a de Odisseu – justifique a censura de Platão: se o herói astucioso mente até mesmo para a Atena, sua mentora, a deusa que o transformara em mendigo, por que não mentiria em sua narrativa?

Se o desenho da Odisseia é fractal, com partes reproduzindo o todo, é curioso também que sua esposa, Penélope, apresente essas mesmas características. O leitor deve se lembrar da famosa proposta de escolher um pretendente, ao terminar de tecer a mortalha do marido. O que era tecido pela manhã, no entanto, era descosido à noite. Somos enganados pelo enredo homérico da mesma forma como Penélope ludibria os pretendentes.

Em outro momento, após a chacina destes, o reconhecimento entre o casal se dá no nível intelectual: o posicionamento e o feitio da alcova. Tal prova do reconhecimento, não somente confirma a fidelidade da esposa, como também é um elemento de identificação amorosa: Odisseu e Penélope são semelhantes – até nas artimanhas!

Autores com a mesma astúcia e versatilidade são Ariosto, Rabelais, Cervantes, Heine, Machado de Assis…

Dessa estirpe politrópica é a poesia de Antonio Carlos Secchin, a confirmar-se agora com Desdizer, segunda reunião de obra poética, depois de Todos os ventos, de 2002.

Como primeira parte do livro, Desdizer engloba seus poemas inéditos. Ela é composta por um prólogo, “Na antessala”, que recepciona o leitor, “dez sonetos desconcertados” e um epílogo não menos curioso – “Poema-saída”.

Como acontecera com a primeira reunião, Desdizer não apresenta uma configuração cronológica; antes a poesia inédita e mais recente, e os livros anteriores seguem a ordem inversa: Todos os ventos (1997-2002), Aforismos (1991-1999), Diga-se de passagem (1983-1988), Elementos (1974-1983), Dispersos (1974-1982) e Ária de Estação (1969-1973). Propositalmente, esse arranjo justifica-se ao título e à poética de Secchin.

O poeta estreara com uma poesia altamente concentrada e sofisticada. É uma “poésie pure“, por vezes hermética – hermética no estilo, não na expressão, sempre límpida.

Com Ária de Estação, o poeta, como “operário do precário”, aproxima-se do “operário de sonhos” de Quasimodo.

É a noite.
E tudo escava tudo
na língua ambígua que desliza
para o esquivo jogo.
Amargo corpo,
que de mim a mim se furta,
não recuso teu percurso
no hálito das pedras
que me existem em ti
– estéril dordo entre águas
estancadas.
O nada, o perto, o pouco,
não posso dividir
do que se espera o que me habita,
ao fazer fluir a via antiga
de um menino que mediu o lado impuro.
Operário do precário,
me limito nesse corpo amanhecido,
asa e gozo onde a morte mora.
Minha vida, mapeada e descumprida,
está pronta para o preço dessa hora.

No entanto, em Dispersos já encontramos uma face diversa, a satirizar a metapoesia, bastante praticada à época, como nos sonetos “Linguagens”, onde o poeta joga com o cultismo barroco, e “Soneto das Luzes”, onde ele brinca com árcades e parnasianos.

Outra face encontramos em Elementos. Com poemas de evocação fenomenológica, as partes Ar, Fogo, Terra e Água, fecham-se numa unidade impressionante. Em Diga-se de Passagem, notamos o retorno do diálogo com outros poetas, como no terrível “Sete anos de pastor”. E em Aforismos, máximas desentranhadas de sua ensaística, encontramos verdadeiras joias, como no seguinte paradoxo:

Negar o grandioso é insuficiente para impedir seu enviesado retorno através da monumentalização do mínimo.

Mas é em Todos os ventos que surgem aspectos do cotidiano, como nos poemas “Noturno” e “Paisagem”, e uma autobiografia, como em “Confessionário”, em “Reunião” e “Autoria”, poema este em que o poeta se faz à medida que faz o poema. Convém ainda destacar nele os admiráveis “Dez sonetos da circunstância”, em que notamos a memória, fonte de toda a poesia:

De chumbo eram somente dez soldados,
plantados entre a Pérsia e o sono fundo,
e com certeza o espaço dessa mesa
era maior que o diâmetro do mundo.

Aconchego de montanhas matutinas
com degraus desenhados pelo vento;
mas na lisa planície da alegria
corre o rio feroz do esquecimento.

Meninos e manhãs, densas lembranças
que o tempo contamina até o osso,
fazendo da memória um balde cego

vazando no negrume do meu poço.
Pouco a pouco vão sendo derrubados
as manhãs, os meninos e os soldados.

No entanto, mantém-se ainda nesse livro o diálogo com outros poetas, como no belo soneto “Cisne”, dedicado a Cruz e Sousa, cujos últimos versos são:

Negro cisne sangrando em frente a um poço.
Do alto, um deus cruel cospe em teu rosto.

Todos esses são exemplos de “Antes” que será desdito ou reafirmado neste Desdizer. O poeta versátil, astucioso, multifacetado mistura a forma do “rimance”, poema de uso narrativo, com o conteúdo, ao mesmo tempo, cotidiano ou crônico e alegórico, com em “A gaveta”, ou na emocionante “Carta aos pais”, poema de homenagem por suas bodas de diamante.

O diálogo com os poetas reaparece com “Vinícius revisitado” e “O galo gago”, este com um aceno a Cabral.

Mas neste livro destaca-se sobretudo o humor, como no delicioso:

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Com algo de humor negro, o poeta satiriza a artificialidade das relações humanas modernas. Não se trata de uma sátira gratuita; cordialidade e diálogo são características de Antonio Carlos Secchin. Boa parte dos poemas recebem dedicatória, embora para este projeto os nomes de escritores e amigos tenham ficado em seção especial. Além disso, o poeta já criticara, no poema “Colóquio”, o comportamento de muito poetas que viram as costas aos leitores, fechando-se em agremiações ou “igrejinhas”, como diria Dalton Trevisan.

E assim como o Vampiro de Curitiba, nos sonetos de “Boa vizinhança…”, Secchin tem como matéria o cotidiano e a expressão popular.

SONETO DE BOA VIZINHANHANÇA II

Se quiser, vai lá em casa pra assistir o jogo.
A Claudete eu não pego de jeito nenhum.
Esse rapaz, não boto minha mão no fogo.
A coisa rola solta lá no 101.
Perdi dois quilos com a dieta do elefante.
Ah, se o Mengão ganhar, aí é que eu me acabo.
O flagra aconteceu na esquina da Constante.
Farofa? Sim, mas não dispenso orelha e rabo.
Tacaram pedra na Brasília da Janete,
me disseram que foi vingança do Batista.
Sabia que Suely vendeu a quitinete
e a Marinês fugiu com a filha do dentista?
Eu não invejo o morador da cobertura,
o sol da tarde deve ser uma tortura.

Embora carregue elementos contingentes que possam vir a perder significação com o passar do tempo, é esse fundo moral (a busca pelo Verdadeiro, o Justo e o Belo) que garante à sátira sua universalidade. Em tempos de politização, a sátira tem servido aos agitadores como panfletagem e proselitismo político. Contudo, circunscrita ao relativismo moral, eis a fatuidade e irrelevância da sátira política, ensimesmada, ornamental e dogmática. E ao contrário disso, plena da vida, a grande sátira que lemos neste Desdizer encontra no coração da precariedade humana a verdade do ser.

Falamos acima da geometria fractal cujas partes grosso modo reproduzem o todo. Neste livro em geral, e neste soneto em particular, tecnicamente, convém notar que os oito primeiros versos, cada qual concentrado e recortado em sua medida precisa, algo aliás recorrente no estilo secchiniano, representa um enunciado de episódios os mais diversos. O leitor tem a impressão de conversas de bar ou de elevador.

E diferente da altivez parnasiana do Beneditino bilaquiniano, é exatamente no “turbilhão da rua”, como Drummond, que Secchin, poeta versátil de diversas formas, colhe a flor de sua poesia.

Wagner Schadeck

Nasceu em Curitiba, onde vive. É tradutor, ensaísta, editor e poeta. Colabora com a Revista Brasileira (ABL), com a Revista Poesia Sempre (BN) e com os periódicos Cândido e Rascunho. Em 2015, organizou a reedição de A peregrinação de Childe Harold, de Lord Byron, pela Editora Anticítera.

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