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Anitta e os espelhos negros

por Norival Silva Júnior (20/09/2018)

A sabedoria, muitas vezes, reside nas afirmações mais simples, emitidas por quem menos se espera.

“Quando olhamos para as telas na era da Web 2.0, olhamos para nós mesmos. Tudo não passa de um grande círculo interminável. Gostamos do espelho e o espelho gosta de nós.”
Jonathan Franzen

 

Dizer que o período de campanha eleitoral no Brasil é uma experiência surreal – e por vezes apavorante – pode até ofender os poucos iludidos com as virtudes das regras democráticas, mas à maioria soa apenas como um batido e pretensioso clichê. Contudo, ao bizarro e temerário, a eleição presidencial desse ano apresenta um fator novo, em nada relacionado à (falta de) qualidade dos candidatos a alvo preferido do ressentimento nacional. O que surge de diferente, especialmente no ambiente da Internet, é uma desconfortável sensação de constante patrulhamento.

Acompanhando as manifestações políticas que brotam de todos os lados, fui interpelado, mais de uma vez, e por diferentes torcidas organizadas, a tornar público meu apoio. Logo eu, cuja opinião política vale algo próximo ou igual ao nada. A intimidação (importa chamar as coisas pelo que elas são) segue variações dentro da estrutura “o momento é crítico e exige uma posição” ou “declare seu apoio em favor do ungido X ou se responsabilize pelo caos do anticristo Y”. Bom, aparentemente o perigo é tão grande que preciso abrir mão de minha discrição, minha indiferença e mesmo da preguiça.

Nem celebridades e jogadores de futebol estão imunes à cobrança. No mais recente e comentado caso, a cantora Anitta, instada a se manifestar contra o candidato que uma das patrulhas do pensamento julga representar a personificação de todo tipo de opressão, teve que vir a público dizer o óbvio: “Não quero ser obrigada a fazer campanha política quando não foi esse o trabalho que escolhi.” A sabedoria, muitas vezes, reside nas afirmações mais simples, emitidas por quem menos se espera.

O social invade o virtual

Esse comportamento com tintas de totalitarismo se origina, mais do que no nível de tensão que o clima de polarização política provoca, da amplificação de um efeito provocado pela exponencial humanização das redes virtuais. Toda tecnologia que o homem desenvolve acaba sendo, cedo ou tarde, empregada para satisfazer a sede de confusão e caos que reside em sua alma. Não seria diferente nesse caso.

Nesse processo de socialização da Internet, a exposição de tudo e de todos se tornou algo tão trivial e impensado que até mesmo o voto, prudentemente guardado em segredo até pouco tempo, tornou-se objeto do que parece a concretização da profecia de Biz Stone, um dos fundadores do Twitter: “O futuro será social.”

Na atual fase dessa festa de exposição, não basta mais vender virtude e felicidade. É preciso socializar cada sentimento e opinião em nossa vida e exigir dos demais o mesmo comprometimento com as mesmas virtudes e com os mesmos propósitos.

Até um entusiasta da tecnologia precisa reconhecer: isso não vai terminar bem.

Espelhos Negros: perigos da tecnologia

A ideia de que o homem acaba por fazer mau uso de todo novo aparato tecnológico que desenvolve é antiga. Aliás, apenas em nosso mundo contido por frágeis regras de convívio democrático é que a tecnologia acaba sendo “desvirtuada”. Até bem pouco tempo atrás era a necessidade de sobrepujar inimigos, efetivar segurança ou simplesmente garantir um animal morto à mesa para saciar a fome, que estimulava a adoção de novos conhecimentos e novas ferramentas tecnológicas. O uso benéfico à coletividade viria depois, como um ganho colateral. Foi assim, inclusive, com a própria Internet.

O uso malicioso da tecnologia pela humanidade, por sinal, é tema de farta produção ficcional, especialmente a partir da Revolução Industrial, num contexto em que as máquinas ameaçavam substituir os homens nas Indústrias, nos lares e nas famílias. De o Homem da Areia (E.T.A. Hoffmann, 1816) a Show de Truman (Peter Weir, 1998), passando por Admirável Mundo Novo (1932) e 2001: Odisseia no Espaço (Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke, 1968), os riscos e perigos que o avanço tecnológico desenfreado representava a liberdades, segurança e privacidade, cativaram grandes públicos e obtiveram êxito em despertar questionamentos éticos que se perpetuam até o presente.

Mais recentemente, compilando episódios ambientados em situações particularmente preocupantes na sociedade da “Hiperconexão”, ou “Sociedade Informacional”, como prefere Manuel Castells, a série Black Mirror (Diversos, 2011-) aborda nossa relação com tecnologia de forma dura, um tanto quanto paranoica, mas inegavelmente certeira. O que todos os episódios têm em comum é a ideia de que se a tecnologia pode nos causar algum dano, é porque reflete algo que por vezes tentamos esconder: a maldade potencial que habita em cada um de nós. Não à toa o título da série, que alude às telas negras de nossos dispositivos de TV, celular ou computadores, pode ser melhor traduzida como “Espelho Negro”. As inovações tecnológicas operam como um mero reflexo de seus criadores.

No caso da Internet, mais precisamente das redes sociais, a tecnologia nos possibilita comunicação irrestrita, descentralização e colaboração como nunca; mas há quem prefira utilizá-la para intimidação e patrulhamento ideológico.

A tirania das redes sociais

A Rede, que ao se popularizar tinha como principal objetivo troca de informações científicas, num segundo momento passou a exercer o papel de balcão de negócios e, atualmente, é muito mais que isso. É o palco da vida em si. Há muito pouco fora do ambiente digital. Se por um lado a praticidade e a facilidade de se comunicar é festejada, de outro lado liberdades e, especialmente, a privacidade, correm sérios riscos.

Quem faz uso regular de sites e aplicativos deve ter notado um grande número de atualizações de políticas de privacidade e de termos de uso. Os que acompanham o noticiário jurídico sabem que isso se deve à edição de leis de proteção de dados pessoais na Europa e, mais recentemente, no Brasil. Aliás, a pouca atenção dada ao tema apenas confirma o descaso com que ignoramos a sensibilidade da questão privacidade na era digital.

Na contramão dos pregadores digitais que falam em “inteligência em rede”, “Criação colaborativa” e “desenvolvimento global e democrático”, o escritor norte-americano Andrew Keen tem manifestado crescente temor com a fragilidade de nossa ampla exposição na era das redes sociais. Em seu livro #Vertigem Digital: Por que as redes sociais estão nos dividindo, diminuindo e desorientando (2012), Keen traça um panorama preocupante sobre a disponibilidade de dados pessoais que cada um dos usuários expõe na Internet, identificando que, ao passo em que “todos podemos assistir a todos os outros o tempo todo”, a verdade é que “a invasão de privacidade foi democratizada”.

Nesse cenário desolador de absoluta e irrestrita exposição, compartilhar o prato do almoço, o trajeto ao trabalho, a corrida matinal, as fotos da viagem, o dissabor no trânsito e toda sorte de alegria ou frustração é um imperativo comportamental. Para Keen, a mídia social se tornou “o palco central e cada vez mais transparente da existência humana”. Os momentos de reflexão solitária e a privacidade, tão caras a tantos, tornaram-se aspirações cada vez mais inatingíveis.

Ao acusar, talvez com algum excesso, a “tirania das redes sociais”, #Vertigem Digital constrói uma história do direito à privacidade, de Jeremy Bentham, o utilitarista pai do “pan-óptico”, à análise do filme A Rede Social (David Fincher, 2010). Do filme que narra a história do Facebook, a plataforma de Mark Zuckerberg, o autor extrai da personagem Sean Parker (interpretado por Justin Timberlake), uma frase de crucial relevância para compreensão da arquitetura do nosso presente: “nós vivemos em aldeias, depois vivemos em cidades, e agora vamos viver na Internet!”

Orwell revisitado

É quase irresistível citar George Orwell e sua obra 1984 (1949) em qualquer texto que evoque a questão da sociedade em constante vigilância, e Andrew Keen sucumbe à essa tentação. Contudo, a abordagem é no sentido de apontar um erro na visão distópica de Orwell. Não obstante tenha sido competente em profetizar uma sociedade sujeita a uma inescapável vigilância e opressivo controle social, “em 1984 era crime se expressar”; hoje, como a patrulha sobre Anitta demonstra, tornou-se “deselegante, talvez até socialmente inaceitável, não se expressar na rede.”

Eis o improvável erro de Orwell. Nesse 1984 revisitado que é o período eleitoral de 2018, os que como eu preferem a discrição, ou temem revelar suas preferências eleitorais, estão sujeitos à opressão desse coletivo de “grandes-irmãos” não revestidos de autoridade, que não admitem qualquer tipo de moderação, nenhum comportamento reticente. Estes novos aspirantes a “polícia do pensamento” não reconhecem a legitimidade de manter um segredo ou uma opinião reservada e decretaram a perda do sigilo do nosso voto. Afinal, para eles não há mais segredo absoluto no ambiente Digital.

Ao menos hoje, devemos reconhecer a razão de Keen em sua denúncia. A privacidade e o direito sagrado de ser deixado em paz estão sob grave ameaça da Tirania das Redes Sociais.

Como um impotente herói de distopia, concluo quixotescamente, endereçando aos que cobram uma tomada pública de posição política, aos que exigem uma escolha ideológica, aos que impõem pensamento com ameaças veladas, um encarecido pedido: em nome da privacidade, da liberdade de consciência e da dignidade humana, e da memória de Orwell, deixem Anitta em paz!

Norival Silva Júnior

Advogado especialista em Direito Digital.

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