O bolsonarismo e o petismo estão numa brincadeira louca com a democracia.
De quatro em quatro anos, Galvão Bueno repete, em cadeia nacional, que o Brasil é o país do futebol. Nestes mesmos anos pares, em meados de outubro, descobrimos que o ludopédio, afinal, não é o esporte favorito do povo brasileiro. Gostamos, mesmo – certamente a maioria de nós – de praticar o perigoso esporte da roleta-russa, disparando à urna um gatilho, na fé de que não atingirá os nossos miolos.
Fé de que não seremos atingidos pelo pior é a única explicação racional para ignorarmos todos os sinais – aqueles, fortes, que Eymael diz antever – do que se descortina diante dos nossos olhos. A principal e explícita preocupação de parte dos nossos candidatos é justamente a de quebrar a normalidade institucional da República. Nesse sentido é que têm se pronunciado, com muita veemência, os candidatos Jair Bolsonaro e seu vice-presidente, general Antônio Hamilton Mourão; e Fernando Haddad, substituto de Lula. A propaganda política em rádio, televisão e internet, bem como suas participações em debates, sabatinas e entrevistas, não têm deixado quaisquer dúvidas sobre essa postura.
Alarmantes, por exemplo, são as declarações costumeiras do general Mourão. Em diversas ocasiões (a última, numa sabatina do canal Globo News), afirmou que existe a possibilidade, sim, de aplicar um golpe de Estado em percebendo que o país caiu em anarquia ou anomia, ou a pedido do presidente – isto é, um autogolpe. Noutra, durante uma palestra a empresários em Curitiba, afirmou que o Brasil precisa de uma nova constituição – mas, que essa novíssima magna carta não deveria ser feita por constituintes eleitos, mas por um conselho de notáveis. Defendeu, portanto, uma constituição outorgada, ao estilo do que os militares fizeram em 1969, ou do que o ditador Getúlio Vargas fez em 1937. Preocupa sobremaneira as declarações do candidato a vice-presidente de Jair Bolsonaro, ainda mais considerando o frágil estado de saúde do presidenciável. Não à toa, já que desde que sofreu um bárbaro atentado, o deputado do Partido Social-Liberal tem estado sob grave risco de vida, permanecendo na Unidade de Terapia Intensiva de um hospital de São Paulo.
Se a perspectiva de termos o general Mourão como presidente, diante de suas ameaças veladas de golpe real, é aterradora, também preocupa uma eventual presidência de Bolsonaro. O presidenciável declarou que pretende aumentar o número de ministros do Supremo Tribunal Federal para vinte e um, dez a mais do que o atual. Seu objetivo é pouco inocente. Afinal, pretende aparelhar a Suprema Corte, para nela obter maiorias que interpretem, ao seu bel-prazer, a constituição. Expediente semelhante utilizou Hugo Chávez e a própria ditadura militar brasileira, de que se ufana. Seu programa de governo, também, clama por uma nova lei maior, moldada em conformidade com seu pensamento político.
É óbvio que essa bagunça, de ignorar a ordem constitucional vigente, não encontra lastro meramente no autoritarismo da chapa PSL-PRTB. Não. É fortemente legitimada, por exemplo, na cretina resposta da então presidente Dilma Rousseff aos protestos de junho de 2013, que tomaram conta do país. Com o objetivo de acentuar o processo de extirpação dos membros que sustentam a democracia no Estado brasileiro, tão recentemente conquistada, sacou do coldre uma ilegítima proposta de assembleia constituinte exclusiva para a reforma política. Não vingou e foi solenemente ignorada, mas deu grande suporte à ideia de moldar as Constituições Federais conforme a concepção dos projetos de ditadores que estejam ocupando, ao seu turno, o Palácio do Planalto.
Outro precedente gravíssimo, na toada de ignorar o ordenamento jurídico do país e suas instituições, foi gerado pelo Partido dos Trabalhadores à altura do impeachment da presidente Dilma. Criou-se e alimentou-se a ficção de que sofremos um golpe de Estado. Os mais lunáticos entre os fiéis da seita do beato Luiz Inácio, diga-se de passagem, apregoam por aí que estamos sob um regime de exceção, uma ditadura cruel cujo objetivo é retirar os direitos dos cidadãos, como fossemos uma Coreia do Norte. A prova cabal seria a prisão de Lula – por corrupção, lembre-se sempre – que seria política, mesmo, em duplo-grau de jurisdição, sendo alimentada à farta por provas de crimes. Prisão de um inocente cuja culpa, aliás, é atestada.
O Exército e seu alto comando, diariamente, lança notas cheias de ameaças veladas. O general Eduardo Villas-Bôas passa o dia a conter os arroubos de colegas linha-dura, que têm saudade de mamar nas tetas do poder. As Forças Armadas, uma instituição de profissionais que optaram, através de concurso público e profissão de vida, a abdicar da participação política, resolve agir em contrário ao seu papel. Papel este, diga-se de passagem, que é calar a boca e obedecer, como um cão, ao poder civil, que é absolutamente soberano. Função institucional de militar é obedecer à sociedade, e jamais por ela ser obedecido.
Encontramo-nos sob gravíssimo risco de ruptura institucional. A soldadesca, faminta por poder e privilégios – e possivelmente mamatas, já que o regime militar representou corrupção quase sem precedentes no país – está descontrolada a níveis de década de 60. Ignorando a toada, o Partido dos Trabalhadores perturba os cães raivosos, estimulando-os a seguir adiante em carreira de golpismo.
Como os fiéis lulistas estariam provocando os militares? Ora, prometendo levar-nos à absoluta anomia. Anomia essa, aliás, que é a desculpa perfeita para mais um golpe militar. Fazem-no ao ignorar todo o ordenamento jurídico do país, como uma espécie de credo, fiando-se tão somente nos salves de Lula, mandados diretamente de sua cela de prisão, em Curitiba. Qual é a plataforma de governo de Fernando Haddad? Sem mistério, é anistiar o seu Marcola do Agreste, livrando-o da prisão e colocando-o, como uma espécie de primeiro-ministro, novamente no comando do país.
As ameaças à Justiça e ao Ministério Público são a escala musical do programa de governo. O fantasma da constituinte exclusiva e de uma reforma política que privilegie uma concepção corporativista de país, à Chávez, ressurgem no programa de Haddad. Embora, no fundo, bem saibamos que Lula só pretende voltar à boa aliança com MDB e Centrão, distribuindo propinas e engordando sua aposentadoria, não nos esqueçamos da forte guinada golpista que o petismo deu, precedendo o fim do governo Dilma.
O petismo, sinceramente, sequer se importa com a possibilidade do retorno da ditadura. Intrinsecamente, deseja-o com toda a força. Querem assistir suas lideranças sendo canonizadas e imoladas num pau-de-arara, para expiar o pecado da corrupção e melhor cheirar a santidade. Dane-se o povo brasileiro. O que vale é salvar a narrativa petista do golpe, nem que para isso precisa ocorrer um, de verdade.
Verdadeiramente imbecilizados, nós preferimos continuar apostando em girar o tambor do revólver. Não importa se, no girar do tambor, encontraremos uma câmara com uma bala pronta a ser disparada. Queremos apostar na adrenalina, seguindo adiante no apoio a Bolsonaro ou Haddad, que dão os mais claros sinais de levar a democracia brasileira ao seu limite.
Há tempo de largar a pistola de lado. Existe uma miríade de candidatos do centro democrático por aí, como Geraldo Alckmin, Marina Silva, Henrique Meirelles, João Amoedo ou Álvaro Dias, que não representam risco às instituições brasileiras e à ordem constitucional vigente. Existem candidatos como Ciro Gomes que, mesmo sendo um risco total para a economia do país, em minha visão, ainda não representam um projeto completo de ditadura. (E, não, não existe Guilherme Boulos. Não é uma candidatura, mas uma farsa ridícula). Temos candidaturas para todos os gostos, os de esquerda, os de centro, os de direita, e os sãos.
Por que seguimos nessa brincadeira escrota, repugnante e louca com a democracia?
Lucas Baqueiro
Bacharel em Humanidades pela UFBA. Editor de política e atualidades da Amálgama.
[email protected]