O futuro que pode estar acontecendo

por Lúcio Carvalho (14/09/2018)

Harari prefere fazer as vezes do condutor da inevitável catástrofe.

“21 lições para o século 21”, de Yuval Noah Harari (Companhia das Letras, 2018, 432 páginas)

O mais recente livro de Yuval Harari tem tudo para mais dia menos dia ser daqueles livros com os quais todos irão fatalmente tropeçar em qualquer grande livraria, ou se irá bater os olhos nele nas gôndolas dos aeroportos, ou ainda saltará na sua tela, qualquer que seja ela, em recomendações algorítmicas do seu fornecedor preferido. Talvez se devesse imaginar que isso tudo se tratasse do efeito de uma grande campanha de marketing viral, a começar pelo sugestivo título do livro, e completada pelas seguidas aparições midiáticas do autor, mas o mais certo talvez fosse considerar que Yuval novamente acertou a mão (que o digam seus editores) ao escrever um livro que as pessoas desejam ler e mais ainda porque suas “lições” agora dizem respeito ao tempo presente e seus fantasmas e fantasias mais atuais.

Um leitor inocente indagaria com o livro em mãos (ou em mente): mas isso é bom ou mau? Depende, seria talvez o mais apropriado a responder-se. Dependendo, sim. Dependendo, não. Ou, sendo o mais tolerante o possível, ambas as situações e respostas ao mesmo tempo.

Num país de alegado e documentado desinteresse pela leitura, não deixa de ser interessante que um livro de divulgação científica esteja disputando a atenção dos leitores contra uma variadíssima gama de subliteratura e isto por certo pesa a seu favor. Por outro lado, por sua própria presença na posição de mais vendido, seria possível alegar-se que então se trata de mais um livro fácil, um caça-níqueis, e isto talvez pesasse contra o autor e seu novo título.

Seja como for, ambas são apreciações superficiais e, desde que são colocados à venda, o que se espera é que livros vendam bem, portanto pelo menos aparentemente não há nem um crime em vista. Além do mais, essa é uma discussão que não chega ao limiar da relevância do livro em si mesmo, que é o que deveria importar, mas apenas demonstra a intensa desconfiança que tem cercado a publicação de qualquer livro de interesse histórico.

Algumas décadas de jornalismo histórico sobressaindo-se aos livros de e sobre história (e assim sucessivamente em outros campos do conhecimento) haveria de resultar num custo destes: neste caso, uma paranoia exorbitante. Para leitores que se acostumaram a identificar por livros de história apenas aqueles fartamente ilustrados e redigidos numa linguagem coloquial extremada, para não dizer banal, é importante dizer que o livro de Harari pode e deverá ter ainda muitas leituras críticas, inclusive desta espécie taxativa. Ocorre que na maioria das vezes estas são críticas irrelevantes, enquanto que seu livro é apenas acessível e um tanto quanto repetitivo no que confere aos seus argumentos e temáticas, mas isto parece não desapontar suas legiões de leitores mundo afora.

A noção de “irrelevância”, aliás, é das mais abordadas ao longo das lições por ele propostas e rapidamente se pode perceber que se encontra no fundo de muitas de suas preocupações com o tempo presente e também com o porvir. Ao passo em que fundamenta sua crítica ao tripé narrativo preponderante no séc. XX (o fascismo, o comunismo e o liberalismo), segundo ele em vias de ruir em prol de um mundo cada vez dominado e orquestrado por algoritmos, Harari localiza na expansão da tecnologia a nova grande ruptura no modo de viver de toda a humanidade a causar não apenas uma grande onda de desemprego em massa, mas a irrelevância de pessoas e até mesmo de nações inteiras diante da emergência tecnológica e seus grandes artífices, configurados principalmente graças ao desenvolvimento das inteligências artificiais. Com um assunto assombroso como esse e trabalhando sempre numa margem de que isso tudo venha a ocorrer em algumas décadas, Harari já ganhou a atenção de meio mundo a despeito de seus exageros, sejam deliberados ou não.

Não se trata, segundo suas lições, da obsolescência de ocupações e modos de viver que estariam por acontecer, mas do que está acontecendo já e cujos sinais se fazem sentir por toda a parte. Para Harari, o tempo presente é carregado por nuvens a impedir sua percepção com a clareza que anos de estudo em Oxford, na Universidade Hebraica de Jerusalém e longos períodos dedicados à meditação Vipassana permitiram-lhe entender de forma diferenciada. Talvez por essa razão é que a clareza, ou sua busca, de fato, parece ser o tom preferencial da maioria de suas argumentações. Apesar de localizar em torno do ano de 2050 o derradeiro colapso da humanidade, Harari o faz através de uma narrativa envolvente que em muitas vezes parece-se mais a um conto de fadas sombrio no qual o grande mal espreita o mundo globalizado enquanto os incautos creem poder dormir sob uma segurança apenas aparente.

Seria de esperar que suas 21 lições, ainda que tenham sido coligidas e baseadas nas ideias de muitos artigos, entrevistas e apresentações, trouxessem, para além de um diagnóstico circular, saídas viáveis para pelo menos boa parte da humanidade. Ao contrário daqueles que costumam postular na ascensão tecnológica a redenção da humanidade e a solução racionalizante para as mazelas tanto do corpo físico quanto social do humano, Harari prefere fazer as vezes do condutor da inevitável catástrofe, valendo-se para tanto de uma combinação de ceticismo e humanismo.

É em determinada altura de sua lição para a educação do século 21 que ele, no entanto, registra aquele que parece ser o grande conselho no que se refere ao futuro em todo o livro: “O mais importante de tudo será a habilidade para lidar com mudanças, aprender coisas novas e preservar seu equilíbrio mental em situações que não lhe são familiares. Para poder acompanhar o mundo de 2050 você vai precisar não só inventar novas ideias e produtos – acima de tudo, vai precisar reinventar a você mesmo várias e várias vezes.” Bem, para um país como o Brasil, tido como a “nação Rivotril” e que amarga o incômodo ranking de líder mundial em transtorno de ansiedade e quinto lugar em casos de depressão, segundo dados da OMS, trata-se de um conselho desanimador, ou então (preferivelmente) pueril.

Não que seja próprio do ser humano acalentar esperanças inúteis, mas esta parece ser mais uma revivificação da ideia marxista da decomposição da solidez, retomada tantas e tantas vezes sob diferentes formas durante o séc. XX a ponto de ainda conseguir parecer inédita ou, mais que isso, converter-se em aconselhamento de sobrevivência no mundo pós-capitalista. Este parece ser o ônus com o qual têm de arcar todos aqueles que se aventuram a predizer o futuro: esbarrar na muralha de antigos conceitos e da imprecisão histórica. Também parece um pouco a sina de que Philippe Ariès comenta no seu O tempo da história, da dificuldade em conceber-se claramente o contemporâneo, já que ele traz consigo o sentimento natural de uma época.

De qualquer forma, a partir da publicação da sua ambiciosa trilogia histórica, Harari tornou-se um debatedor importante ao longo da última década, ainda que muitas vezes reverbere como apenas mais uma dissonância sutil do tempo presente e seus insights fugazes enquanto o tempo engole a todos indiscriminadamente. Suas preocupações, recheadas de exemplos obtidos da história comparada, têm lastro e muitos interessados num mundo com excessiva pressa para ler e comparar e ávido por lições de quem advoga para si um misto de qualidades ímpares, tais como o ceticismo, a isenção e o distanciamento misantrópico. Condenando rapidamente aquele que talvez ainda seja o bem mais caro à civilização, o livre-arbítrio, a um papel subalterno no ordenamento dos fatos políticos e subjetivos, Harari realiza em suas lições muitos alertas importantes, mas corre o grande risco de ele mesmo acabar por denegar a espécie humana sua capacidade de discernir por conta própria.

Em sua narrativa, em lugar da consciência há cada vez mais a onisciente inteligência artificial do Google e de outras gigantes do Vale do Silício. No lugar da espontaneidade das relações humanas, a aventura seletiva das redes sociais e a desintegração das comunidades. No lugar do conhecimento e da diversidade humana, apenas algoritmos e Big Data. No lugar das idiossincrasias regionais e culturais, uma teia cultural reordenando o mundo em estruturas anômicas e situadas para além da compreensão humana.

Num mundo e tempos tão complexos como os narrados em sua não tão breve história da humanidade, é chegado o tempo em que Harari se tornou imprescindível para entendê-los e isso só pode ser muito bom para ele mesmo e seus leitores. Ocorre que mesmo em posse de livros sem dúvida bem elaborados e escritos, ainda assim é impossível garantir que o seu maior temor, o da irrelevância, não possa igualmente vir a atingi-lo numa outra narratologia superveniente, e isso não seria exatamente uma boa notícia. Bem mais prudente seria afirmar que, por enquanto, seus livros colaboram em acautelar-se com o presente e com o futuro. Trata-se de mais uma ambiguidade, mas dada a gravidade e a irrevogabilidade dos processos históricos, não cabe ser inocente nem com livros, nem muito menos com alertas apavorantes sobre o futuro.

Lúcio Carvalho

Editor da revista digital Inclusive. Lançou em 2015 os livros Inclusão em pauta e A aposta (contos).

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