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O Brasil é um país pagão

por Bruna Frascolla (24/09/2019)

Que significa ser católico no Brasil? E evangélico?

Altar religioso misturando elementos do catolicismo, da umbanda e do candomblé.

1. Jesus na verdade é Oxalá, e vice-versa

Na década de 50, Thales de Azevedo manifestava seu ceticismo quanto à tese de que a Bahia, com suas centenas de igrejas, é um estado muito católico. “É preciso ter assistido alguma vez à festa de Nossa Senhora das Candeias, seguida ou mesmo combinada no mesmo dia com a festa de Iemanjá, ‘mãe-d’água’, ou acompanhar a famosa festa do Senhor do Bonfim, confundido no espírito de muitos dos seus devotos com Oxalá, o principal Orixá, ou deidade, do panteon oeste-africano, para se sentir quão ilusória é a ideia de que a totalidade da população da Bahia é realmente católica.”[1] Hoje, seis décadas depois, ninguém se atreveria a apontar a festa do Senhor do Bonfim como prova do estrito catolicismo baiano. À época em que Thales de Azevedo escrevia essas linhas, Otávio Mangabeira contratava Carybé para dar representação artística o candomblé e celebrá-lo como riqueza da cultura baiana. Com o carlismo e o petismo, o candomblé se manteria em alta. A poderosa propaganda carlista, que promovia uma espécie de nacionalismo estadual, seguiria a toada de Otávio Mangabeira. A propaganda petista tirou a ênfase da baianidade, mas passou ao racialismo, que faz do candomblé a religião negra de um estado negro. De lá para cá, os orixás deixaram de ser marginais e clandestinos, alvos de perseguição policial, para se tornarem ícone da herança africana na Bahia. Assim, é sabido e consabido que muitos daqueles que seguem a imagem de Cristo enxergam ali Oxalá, e que não é um perfeito católico aquele que participa dos festejos do Bonfim.

De negação do candomblé, porém, passou-se à negação do catolicismo. E uma é tão frágil quanto a outra. Mês passado, um passante em Salvador poderia observar uma procissão em ritmo de afoxé em que se ouviam gritos de “Atotô, Obaluaê!”. É uma saudação ao orixá das doenças, e significa algo como “Estou ouvindo, ó Rei do Mundo!”[2]. Caso perguntasse ao guarda do que se tratava, o passante ouviria como resposta: “É uma procissão para São Lázaro.” E o passante poderia se recordar, ainda, do povo de santo que estava no Centro Histórico vendendo bênçãos. Ficam com uma cestinha cheia de pipoca com uma estatueta de São Lázaro ao centro. Em troca de algumas moedas, a mulher em trajes de baiana, ou o rapaz de gorro africano, jogaria pipoca na cabeça do pagante (este de braços descruzados) enquanto o abençoava. A renda das bênçãos é revertida para festa.

A estatueta de São Lázaro, em meio às pipocas, representa um homem branco coberto de chagas. É o leproso curado por Jesus Cristo. Obaluaê anda coberto por palhas da cabeça aos tornozelos por ser todo empesteado de bexigas. Há quem diga que o sincretismo se deve à mera necessidade dos negros de ocultar sua fé e disfarçá-la de catolicismo. Mas, anos após o fomento estatal de propaganda favorável ao candomblé, com plena liberdade para abdicar de estatuetas São Lázaro, lá segue o santinho em meio à pipoca. Andando pelo centro e espiando as cestas, só pude encontrar uma em que houvesse um boneco representando o orixá coberto por palha, e ainda assim acompanhado pela estatueta de São Lázaro. Estatueta indispensável, portanto. Tão indispensável quanto a pipoca.

A própria pipoca vem do milho, que nasce na América e não na África. Também é nativa da América a mandioca, com a qual se faz a farinha que vai no ebó após ser frita no dendê africano. Os orixás vieram da África, mas aqui mudaram seus gostos: passaram a comer coisas da América e a se comprazer com ritos vindos da Europa, tais como procissões, velas acesas, estatuetas, santinhos impressos, oferendas em encruzilhadas[3]… Oxalá não é menos Jesus do que Jesus é Oxalá. Nenhum deles passou incólume pelo Brasil.

2. E Santo Antônio, quem é?

A história de deuses disfarçados para sobreviver ao catolicismo tem precedente na Europa. Foi lá que as antigas religiões politeístas foram esmagadas de cima a baixo pela religião adotada pelo governo, desde a conversão do Imperador Constantino até os tempos modernos. As religiões que um dia foram tão refinadas, que a elite consagrava às musas o Museu para conservar a memória da humanidade, tornaram-se coisa de meros camponeses – paganus, em latim, daí paganismo.

Não existia um paganismo, senão vários. Várias eram as tribos que Roma amalgamava, e várias eram as religiões pagãs que se fundiam. Andando pela Grécia, os romanos olharam para Afrodite e ali reconheceram Vênus; para Zeus, e lá viram Júpiter; em Ares, Marte, e assim por diante. Não que todo deus tivesse um perfeito equivalente. Naqueles tempos anteriores a sutilezas teológicas, crer nos próprios deuses não excluía crer nos alheios. Pelo contrário: os deuses de todos os povos eram reais, e tanto eram que os antigos tinham interesse em descobrir os deuses dos inimigos antes das batalhas para suborná-los com oferendas.

A religião antiga não sumiu por decreto, e se manteve viva entre a raia miúda dos camponeses. Com eles, dissimulou-se e misturou-se com práticas cristãs. O rito agrário de pular a fogueira no solstício de verão (que na Europa é em junho) passou a ser feito em homenagem a São João. É como o caruru de Santa Bárbara[4]: rito pagão, santo católico. Os portugueses que aqui chegaram tinham Santo Antônio como santo guerreiro, que inclusive recebia soldo do exército. Mas a figura histórica do santo, um monge visionário de Lisboa, tinha tanto a ver com guerras quanto a mártir Bárbara tinha com caruru, ou o apóstolo com pular fogueiras em área agrária. É mais factível que ali onde está Antônio esteja Carióceco, o deus lusitano da guerra que, em tempos primevos, se comprazia com sacrifícios humanos.

A história de Roma mostra que nem todo sincretismo é forçado, e nem tudo se resume a relação de poder. Vencida em armas, Roma deixou-se conquistar pela Grécia em cultura: antropofagizou-a, e cresceu em espírito. Começou a confundir os deuses da derrotada com os seus próprios. Marte é Ares, e Ares é Marte. Nessa mistura entraram os deuses dos lusitanos: Carióceco é Marte, e Marte é Carióceco, de modo que este passou a ser conhecido, sem imposição vertical, como Marte Carióceco.

Carióceco virou Marte, que virou Antônio, que nesse ínterim deixou de se comprazer com sacrifícios humanos e passou a ganhar soldo. Cruzou o Atlântico e, por estas bandas, viria a ser conhecido como Ogum.

3. Que significa ser católico no Brasil?

Thales de Azevedo, católico preocupado, insistia que o católico brasileiro não era bem um católico. Entre nós existe a noção de católico não-praticante para designar a imensa maioria que não se submete a rigores, nem se interessa por novas do Vaticano. Portugal e Brasil têm uma tradição diferente da Europa central, pois a Igreja era submissa ao Rei, e padres e bispos eram funcionários públicos sujeitos à discrição secular. Isso enfraqueceu de tal maneira a autoridade central do Vaticano, que um catolicismo estrito não pôde se estabelecer no Império Português. Transigência com o paganismo na Europa e na América, portanto.

Esse povo afastado dos tentáculos do Vaticano desenvolveu uma concepção sui generis do que seja o catolicismo. Fiquemos com a descrição de Thales de Azevedo do catolicismo brasileiro: “De um modo geral e sem descer a detalhes e exceções, a vida religiosa dos católicos brasileiros reduz-se ao culto dos santos, padroeiras das cidades ou freguesias, ou protetores das suas lavouras, de suas profissões e de suas pessoas, – um culto em grande parte doméstico e que não se conforma muito estritamente com o calendário oficial da Igreja nem com as prescrições litúrgicas; esse culto traduz-se muito em novenas e orações recitadas e cantadas, em procissões e em romarias aos santuários em que se veneram as imagens mais populares ou têm sede algumas devoções favoritas do povo; manifestam-se também por meio de promessas propiciatórias, com oferendas materiais ou ‘Sacrifícios’ aos santos para que atendam às súplicas dos devotos.” Essas práticas são prato cheio para manifestações cifradas de paganismo de todas as origens. Ainda por cima, ser católico à brasileira não impede ninguém de ser espírita ou crer em orixás.

Que significa, então, ser de católico no Brasil? Formulemos assim: ser católico implica ter alguma espécie de contrato com um santo católico (que pode muito bem ser algum deus lusitano ou grego-romano escamoteado). São contratos que envolvem fazer ritos e obter favores em retorno. Se o santo for tido pela mesma pessoa que um orixá, então é claro que não há nenhum impedimento entre adorar orixás e ser católico. Além disso, como os santos e orixás têm suas especialidades, nada impede que se firmem contratos com mais de uma divindade: Santo Antônio para providenciar marido, Omolu para providenciar saúde. Este, a seu turno, também atende em igrejas sob o nome de São Lázaro.

4. Que significa ser evangélico no Brasil?

Algo a que pouco se atenta é que o neopentecostalismo foi inventado no Brasil. Apenas para diferenciar-se do catolicismo, diz-se protestante. Mas, longe de envolver literalismo bíblico ou a obediência ao princípio da sola scriptura, uma igreja neopentecostal é melhor compreendida como a tenda de um feiticeiro que tem pacto com uma entidade benigna chamada Jesus. Assim, o crente pula de denominação esdrúxula em denominação esdrúxula, conforme creia que o pastor seja mais ou menos eficaz em conseguir benesses com Jesus. As benesses são mormente estas: saúde, riqueza e lar harmonioso. Ficam excluídos os feitiços para prejudicar outrem ou para atrair amantes tórridos.

Esta feitiçaria com fair play provavelmente explica o pavor dos crentes com o candomblé. Os orixás são horrendos porque são capazes de fazer o mal; e os macumbeiros, porque são seus sócios na maldade. Longe de implicar a descrença no candomblé, o protestantismo à brasileira comporta a crença no poder dos orixás tanto quanto o próprio candomblé. Até mesmo o sal, irrelevante para um cristão puro, tem poderes mágicos de purgar coisas ruins, como se viu na mandinga dos crentes contra a Pedra de Xangô.[5]

Pela mesma via da intolerância ao candomblé, explica-se a tolerância ao catolicismo. Os santos católicos são conhecidos por atenderem a pedidos por benesses, tal como a entidade Jesus. Além disso, Jesus atende também em igrejas católicas. Quando houve o massacre numa igreja católica de Campinas, uma das testemunhas era um crente que estava lá orando. Políticos católicos[6] vão a igrejas evangélicas rezar; mas, se fossem de candomblé ou umbanda, dificilmente seriam bem recebidos. Para os crentes, portanto, o que importa é o fair play das entidades e seus sócios. E talvez seja só por isso que não aceitem que Oxalá e Jesus são uma mesma pessoa, já que o primeiro é cultuado só pelos sem fair play.

5. O paganismo de todos

Há uma só cisão religiosa entre os brasileiros comuns: a de se é correto os deuses fazerem  maldades a pedido dos seus sócios humanos. Esta é uma consideração moral, e não factual. Quanto aos fatos, todos estão de acordo quanto a este mundo ser uma espécie de salve-se quem puder, em que os homens têm que correr atrás de entidades sobrenaturais que intercedam por si.

Por fim, cabe ressaltar que este texto é desleixado com a herança indígena por mero desconhecimento da autora. Mas aí está um interessante campo de pesquisa. Outrossim, o foco na Bahia negra deu-se apenas por ela ser muito bem documentada, mas Sándor Lénárd dá conta de sincretismo[7] entre paganismo alemão e negro no vale catarinense, onde mal se falava português. E vale dizer que é claro que existem no Brasil católicos que levam o Vaticano a sério, protestantes que sabem quem é Lutero, e até ateus. São brasileiros atípicos.

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NOTAS

[1] O catolicismo no Brasil: Um campo para a pesquisa social.
[2] Cf. Verger, “Orixás da Bahia”, in Carybé, Iconografia dos Deuses Africanos no Candomblé da Bahia.
[3] As encruzilhadas foram determinadas como pontos de cultivos de deuses para os plebeus pelo Rei Sérvio, de Roma. (Cf. Fustel de Coulanges, A cidade antiga, livro 4, cap. 7) O culto a Exu em encruzilhadas é inovação brasileira. Na  Nigéria do séc. XX, encontram-se pênis erigidos para Exu nas estradas. O culto africano aos orixás varia conforme as cidades, havendo orixás patronos de umas e detestados por outras. Para a geografia dos cultos aos deuses africanos, leia-se o opúsculo “Mitos e Ritos Africanos da Bahia”, de Waldeloir Rego, publicado na Iconografia dos Deuses Africanos de Carybé.
[4] https://pt.wikipedia.org/wiki/Festa_de_Santa_B%C3%A1rbara
[5] https://www.metro1.com.br/noticias/cidade/66445,pedra-de-xango-e-atacada-com-sal
[6] Bolsonaro e Witzel, pelo menos.
[7] Cf. O vale do fim do mundo, p. 97: “Religiões alemãs e africanas se misturam: os encantamentos curam erisipela e não há nada melhor que as runas contra dores de cabeça.”

Bruna Frascolla

Doutora em Filosofia pela UFBA e pesquisadora colaboradora da Unicamp.