Chegamos a viver períodos maiores de instabilidade da democracia no passado. A diferença é o baixo nível intelectual de quem ameaça.
O Brasil nunca foi um país afeito à democracia. Dos 131 anos de república, um terço deste período transcorreu entre ditaduras e autocracias. Outros tantos anos se passaram entre ameaças de retorno à autocracia, ao estado de exceção e ao arbítrio de alguém investido na presidência da República para executar as leis, e não para ditar suas vontades como um garoto mimado.
Se queremos fazer uma leitura séria sobre a palhaçada promovida pelo marginal que habita no Palácio da Alvorada, faz-se mister entender que não há nada inédito. Não é a primeira vez. Também, e sobretudo porquanto continuarmos ansiosos à espera do próximo salvador da pátria, não será a última. Chegamos a viver períodos até mais longos de desconforto nacional, de instabilidade da democracia, de ameaças de brutamontes desqualificados, de incerteza diante do amanhã. A grande diferença é o baixo nível intelectual de quem representa a ameaça: refiro-me mais especificamente ao animal ignorante e chucro, corrupto, canalha, ressentido do mundo pela sua capacidade de raciocínio semelhante à de uma ameba, descarado sugador do erário público, futre, vil, ordinário, soez e vagabundo que se identifica enquanto pode ‒ porque há de ser identificado pelo número da cela ‒ pelo nome de Jair Messias Bolsonaro.
Façamos uma pequena recapitulação das aulas de história antes de tratarmos da abantesma portadora de faixa presidencial. Bolsonaro não foi antecedido, fazendo uma leitura mais rigorosa sobre os quase quarenta antecessores, por grandes homens. Nenhum, contudo, era uma nulidade completa, nem mesmo os ditadores, aqueles de quem quero falar.
A lista de ditadores é gigantesca. É encabeçada pelos marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, que reinstalaram a doença da autocracia, alijada do país desde a queda de D. Pedro I, em 1831. Encontrou seu ápice durante a presidência ilegítima de outros biltres que eram camaradas em armas e na tara salaz e indecente do autoritarismo: os marechais e bandidos Castelo Branco, Costa e Silva, e os generais e vagabundos Médici, Geisel e Figueiredo. Os civis, ansiosos por provar que poderiam ser tão covardes e cínicos como os militares, também não fizeram feio: Artur Bernardes, conhecido pelo epíteto de “tarado de Viçosa” pela sua sanha em prender e exilar, forneceu apenas uma amostra grátis do que seria a ditadura fascista ‒ assumidamente fascista, aliás! ‒ de Getúlio Vargas, honra e glória de todo autoritário descarado que se assume como tal. Cada um deles, mesmo com o rastro de sangue que deixaram conspurcando a história do Brasil, tinha ao menos uma qualidade que os marcou na história.
O marechal Deodoro era um herói de guerra, apesar de corrupto. De Floriano Peixoto dizia-se ser honesto com o erário público e dispensar luxos, indo de bonde até o palácio do governo todos os dias como se fosse um cidadão comum, apesar de sua visível psicopatia e sede de sangue. Bernardes era um político hábil que soube galgar os degraus do poder. Vargas impactou o Brasil de tal forma que hoje, 67 anos depois, o país jamais conseguiu superá-lo, dividindo-se a política partidária, as leis e as discussões entre o varguismo e o antivarguismo, ainda que inconscientemente. Castelo Branco era um raro caso de intelectual com aspirações literárias dentro do Exército, instituição conhecida por congregar a escória da nação na sua oficialidade, sempre em estado de indigência mental e petição de miséria moral. Costa e Silva ao menos tinha algum projeto de desenvolvimento econômico para o país, ainda que fosse uma bela porcaria, coisa que também pode-se dizer para bem e mal de Emílio Garrastazu Médici. Ernesto Geisel soube desacelerar a marcha do recrudescimento da ditadura militar. João Figueiredo, o segundo presidente mais burro da história ‒ de quem se acreditava não poder ser superado em grosseria, estultice, hipocrisia e oligofrenia absoluta até 2018 ‒ ao menos soube sair pela porta dos fundos do Planalto e da história. Pode-se dizer ao menos uma coisa boa de cada um, ainda que em meio aos horrores.
O mesmo vale dos presidentes com pendores para a autocracia e candidatos perenes à ditadura. Jânio Quadros, por exemplo, tinha tamanho estofo intelectual que amealhou uma fortuna com um dicionário que, certamente, estava nas prateleiras da casa das avós, o “Dicionário Jânio”. Seu sucessor no cargo e na sanha, João Goulart, ao menos seguiu com um projeto de política externa independente, focada em construir uma esfera de influência brasileira. Dos demais outros que tinham as mesmas aspirações pode-se apontar uma coisa decente, ou um projeto concreto, ou alguma coisa que ao menos não rebaixasse o Brasil à estatura de país-anão no concerto das nações.
Esta digressão serve ao propósito de deixar muito claro: Bolsonaro não serve sequer para ser ditador. No rol desses indivíduos desprezíveis enquanto pessoas que atentaram contra a democracia, Bolsonaro sequer se enquadraria como uma nota de rodapé. Não há o que se possa dizer de bom a respeito dele, ou de seu governo, ou de suas ações enquanto pessoa, enquanto político e enquanto presidente da República.
Como militar já era uma nulidade. Foi um péssimo aluno na Academia Militar das Agulhas Negras, restando-lhe servir na pouco prestigiosa artilharia. Formou-se em educação física em uma outra escola militar para ter mínimas chances de progredir na carreira, uma vez que sequer tinha competência para as demais exigências da carreira castrense. Entre seus pares já era conhecido como pilantra de baixo-nível, aproveitador e dado a pequenos crimes, como apropriação indébita, contrabando e descaminho, para além de sua fama de corno ‒ tornada pública em um comunicado que circulou entre os moradores da Vila Militar do Rio de Janeiro, quando ali habitava. Medíocre, já tinha pendor para o escândalo, quando planejou atentados terroristas com outros colegas. Saiu do Exército, aliás, pela porta dos fundos: candidatou-se a vereador e elegeu-se como forma de fugir de mais um dos vários processos de expulsão que sofreu, processo último, aliás, que teria sepultado a sua vergonhosa carreira militar.
Enquanto deputado federal notabilizou-se como um aldrabão de menor expressão e importância no Congresso. Era apenas um idiota que tentava polemizar enquanto enriquecia ilicitamente. Quando, por exemplo, falou à Folha de São Paulo que usou o dinheiro do auxílio-moradia ‒ que não é para ser usado livremente, mas para pagar aluguel, e que só deve em tese ser disponibilizado àqueles parlamentares que não possuem imóvel em Brasília ‒ Bolsonaro não mentiu: com aquele dinheiro pagava o apartamento que comprou no Edifício Rio Madeira, no Setor Sudoeste de Brasília, e que não era a sua moradia, mas uma garçonnière onde recebia prostitutas e amantes, conforme informação dos moradores do lugar. Apenas se notabilizou no roubo de pequena monta, quase como um vereadorzinho de cidade pequena, e na tentativa de empregar toda a família na política: ser deputado federal foi uma forma que encontrou para enriquecer indevidamente, já que não podia mais roubar o Exército Brasileiro.
Enquanto Presidente da República, qual foi a sua realização notável? A economia, já destruída pela gestão econômica horrorosa de Dilma Rousseff ‒ que não é mais a pior presidente da Nova República, e chega até a inspirar saudades ‒ foi completamente liquidada pela incompetência do novo ministro da Economia, o equino sem rédeas que atende pelo nome de Paulo Guedes. A infraestrutura, que diz ser o ponto forte do governo ‒ isso é, quando aqueles que tentam dizê-lo conseguem remover o saco escrotal do Presidente da República de suas bocas ‒ está pior do que nunca, restando ao indigno ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, inaugurar quaisquer dois quilômetros de estradas construídas previamente por Michel Temer. A saúde é uma piada: não é sequer preciso mencionar que Jair Bolsonaro decidiu de forma sádica matar seiscentas mil pessoas com a COVID-19, enquanto babava e urrava imitando uma pessoa morrendo sufocada para a plateia de miquinhos amestrados e imbecis do cercadinho da Alvorada. Nas relações internacionais, o Brasil foi reduzido a pó: se algum dia tivemos pretensões a uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU, hoje sequer somos considerados potências regionais, sendo humilhados inclusive por países que eram considerados nossos quintais e satélites, parte total da nossa esfera de influência em um passado pouco distante, como o Uruguai e Angola.
Um estrangeiro desavisado que resolva passear pelo Google Maps nas ruas brasileiras em mais de uma cidade, antes de perguntar diretamente ao tradutor, fatalmente vai se questionar: “que potência econômica é essa empresa chamada “Vende-se”, rivalizada apenas pela “Aluga-se”, que está em placas de prédios comerciais e residenciais de todo o Brasil?”. Essas são as únicas placas, afinal, que se multiplicam por aí, além das seguradas pelos novos moradores de rua que pedem dinheiro ou um trabalho, acompanhadas com um “pelo amor de Deus!” em cada uma delas. Moradores de rua, aliás, que não raramente, antes de 2019, moravam em boas casas, em bons bairros, tinham bons salários, e não estão nesta condição pelo alcoolismo ou drogadição, mas pela miséria repentina. É gente com estudo, com diploma de nível superior, não raramente com pós-graduação, e que hoje encontra-se na mais completa pobreza, junto com suas famílias.
Por isso, é inevitável perguntar: o que tem na cabeça um idiota que vai às ruas em pleno sete de setembro pedir para que este berdamerda inescrupuloso passe a mandar no Brasil com plenos poderes, dissolva o Congresso e prenda ou fuzile os ministros do Supremo Tribunal Federal? O que ele ganha com isso? Sua vida não vai melhorar, ainda que se trate de alguém rico: vai quebrar do mesmo jeito, vai conhecer a sarjeta e a rua da amargura igual a tantos outros, sobretudo se a economia do país continuar indo como vai. Nem mesmo a satisfação de gozar da cara de quem, no delírio mais profundo, acha que é comunista, vai durar muito tempo. Mesmo em se tratando de um idiota ‒ porque todos os que foram às ruas defender Bolsonaro, bem como todos os que defendem desde janeiro deste ano, são idiotas, burros, cretinos, imorais, gentinha de quinta categoria, sem nenhuma exceção ‒ não é possível sob qualquer aspecto enxergar um benefício para a vida desta pessoa. Como cantava o celebrado Zeca Afonso, fadista português e ícone da Revolução dos Cravos, “os eunucos devoram-se a si mesmos enquanto lambuzam de saliva os maiorais e quando mais são feitos em fatias, não matam os tiranos: pedem mais”.
Quem tem se dado bem é uma meia-dúzia de safados que, antes também nulidades em suas vidas profissionais, passaram a ganhar dinheiro com a defesa do bolsonarismo. Todo mundo conhece o exemplo de alguém que aproveitou para surfar na onda e se elegeu para uma vereança, ou que passou a escrever sendo sustentado por um grupo de idiotas para falar bobagens depois de falhar miseravelmente em uma boa colocação acadêmica, ou mesmo que conseguiu uma assessoriazinha. Estes são raros entre a massa de muares que foi à Paulista ou à Esplanada dos Ministérios. O grosso da composição, mesmo, é de gente frustrada com a própria incapacidade de alcançar relevância na vida.
É o óbvio para qualquer pessoa capaz de desenhar um círculo com um copo e um lápis, com uma capacidade cognitiva ao menos razoável, que saiba articular mais do que três palavras, de que estamos em uma escalada rumo a um golpe de Estado. Também é óbvio que Arthur Lira, sócio de Jair Bolsonaro no banditismo e no assassínio do povo brasileiro, não moverá uma palha, porque tem se beneficiado financeiramente de tal forma que é incapaz de perceber quão menos lucrativo é apostar na ditadura. É preciso que seu nome seja lembrado como comparsa deste crime.
O bolsonarismo alega que é liberdade de expressão defender o assassinato de ministros do Supremo Tribunal Federal e o fechamento do Congresso Nacional. Imbecis que ocasionalmente se travestem de liberais e sujam ainda mais o nome do liberalismo no Brasil, que já nada em uma nata de esterco, chegam a assinar manifestos em defesa dessa suposta liberdade de expressão. Mas, que liberdade de expressão é esta? Quanto tempo demoraria até um articulista ser intimado na Polícia Federal por afirmar que o grande erro de Adélio Bispo foi não ter rodado a faca suficientemente, e que é um herói? Que liberdade de expressão é essa que, admitindo chamados abertos ao assassinato de Alexandre de Moraes ou Luís Roberto Barroso ‒ pelo crime de cumprirem seu papel em defesa da Constituição e das leis ‒ esperneia quando pedem pela remoção de Jair Bolsonaro a bala?
Não sabemos o que vai acontecer. A incerteza do amanhã é terrível. Pode ser que amanhã ou depois, junto àqueles que Márcio Moreira Alves apodou com muita justiça de “valhacouto de torturadores” ‒ o indigno Exército Brasileiro, instituição que desde 1889 só tem servido para dar golpes de Estado e enfiar as riquezas do país no bolso de seus oficiais através das gordas pensões e dos pequenos furtos na intendência ‒ acordemos com a democracia definitivamente demolida e esperando a repressão inclemente. Só existem duas possibilidades: ou vamos às ruas, agora e imediatamente, sem pensar nas diferenças políticas que temos com a esquerda, a direita, o centro, sem lembrar quem queremos presidente no ano que vem, ou, amanhã, ver-nos-emos tendo de escolher entre o exílio, a cadeia, a covardia, ou o dever sagrado de matar os tiranos em defesa da liberdade. A primeira opção é muito melhor, ainda mais quando entendemos que, logo, poderá ser tarde demais para fazê-lo.
Lucas Baqueiro
Bacharel em Humanidades pela UFBA. Editor de política e atualidades da Amálgama.
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