Disse Ulysses Guimarães a respeito da pobreza: "é só cidadão quem ganha justo e suficiente salário".
Ser brasileiro é uma constante luta contra a sempre presente tentação da indiferença. Vivemos tamanha constância de desgraças a ponto de tornar-se inevitável a dessensibilização diante da pobreza. Sobretudo quando os que sofrem o grosso da insalubridade que é nascer nesse país não estão no nosso circuito imediato.
Não me engano. Queixas de minha parte seriam, em muito, reclamar de barriga cheia. Mesmo com a pandemia, meu nível de vida não decaiu. No máximo, o dinheiro que antes sobrava mais, hoje sobra menos, mas ainda posso seguir tocando meus projetos da maneira que dê para adequar. Não fui obrigado, contudo, a trocar itens da minha alimentação, ou modificar meus meios de transporte, e no meu ciclo não há essencialmente ninguém que fuja muito dessa realidade.
Se me mantivesse nessa pequena bolha controlada, provavelmente pensaria que tudo segue bem e em paz neste que é o país do futuro. Contudo, caro leitor, ambos sabemos que este não é o caso. Muito frequentemente, a título de exemplo, vou àquelas cafeterias para encontrar amigos ou para sentar-me sozinho escrevendo, lendo ou ponderando. Uma vez sequer não houve, em cada uma destas oportunidades em que estive sentado tomando o meu café, em que eu não tivesse sido abordado por alguém que me pedisse dinheiro, comida ou fraldas ‒ estas últimas, aliás, caríssimas. Por mais que tentemos ignorar a pobreza, a realidade sempre nos esbofeteia na cara.
Não estou falando isso de modo a reclamar que meus locais favoritos estão sendo invadidos por “indesejáveis”, como a parcela mais indecente da classe média não pensaria duas vezes em chamar. Longe disso. O que me impressiona em cada um destes momentos é que o desespero diante da fome é tamanho, mas tamanho, que o indivíduo ‒ não raramente alguém para quem era impensável antes da crise! ‒ vai a um lugar onde sabe ser julgado e observado com pena ou desprezo, e de onde muito provavelmente será enxotado, para implorar aos outros o mínimo que necessita para sobreviver.
Para mim estes episódios revelaram algo inédito. A pobreza e a miséria sempre existiram no Brasil, e nunca deixaram de existir. Houve, contudo, uma época em que não mais víamos crianças aos montes nos semáforos, nem pedintes em qualquer lugar da cidade. Houve uma época em que a fome havia sido essencialmente erradicada do país, enquanto hoje afrontosos 50% da população passam por insegurança alimentar e 10% passam fome. Nesta massa de famintos inclui-se a maior parte dos quase 15 milhões de desempregados, além de outros milhões de desalentados, como classificaria o IBGE.
Por qualquer métrica, a vida do brasileiro médio não melhorou em nada. Os produtos alimentícios ficam cada vez mais caros, enquanto o agronegócio fatura milhões com a exportação de grãos e os silos e armazéns dos estoques públicos ficam cada vez mais vazios. A gasolina chega a absurdos R$ 7,00 por litro em alguns locais do país, o que contribui para o aumento generalizado dos preços. O dólar atinge mais de 5 reais. O brasileiro médio tem muita chance de estar desempregado ou ganhando menos, de ter perdido parentes e amigos para a pandemia, de não ter certeza se terá comida na mesa amanhã. É enorme a sua chance de não conseguir pagar suas contas, principalmente a de energia, que chega a preços recorde em meio à privatização da Eletrobrás. Este foi o caso de um amigo querido meu, pai e avô de família, dedicado trabalhador, que por pouco e apenas com o auxílio de amigos conseguiu não ter sua eletricidade cortada. Isto, para mim, simboliza o que é o brasileiro: alguém que precisa contar mais com a solidariedade comunitária do que com o governo.
Não baseio essa afirmação apenas em visitas a cafeterias: a experiência de estagiar em minha formação médica na área em que me interesso (no caso, a psiquiatria) me deu a oportunidade de ver de perto e ficar escandalizado com, a realidade da desigualdade social e do seu peso sobre a saúde mental das pessoas. Diversas vezes olhei para casos e pensei: “o quanto disso pode ser definido apenas como os males da pobreza?”. Um caso em específico mudou completamente minha visão de mundo. Tratava-se de uma jovem garota, dois anos mais jovem do que eu, viciada em cocaína, puérpera, com uma criança de 10 meses. Era epiléptica e tinha um déficit cognitivo leve, ambos causados por um acidente que sofreu aos dois anos, quando caiu da palafita onde morava de cabeça em uma pedra, tendo de passar por cirurgia neurológica. Em questão educacional, apesar de ter chegado à sexta série, era analfabeta: seus professores apenas a passavam de ano, até o ponto em que a gestão simplesmente considerou seu temperamento irritável e dificuldade de aprendizagem como “excessiva” para a escola e recomendou que ela deixasse os estudos. Sua família não tinha fonte de renda além do Bolsa Família, pois não podiam trabalhar em razão de ter de cuidar dela, haja vista que a região em que moravam era dominada pelo tráfico, que por sua vez tinha prazer em tirar vantagem da vulnerabilidade da jovem. De quantas formas o sistema falhou com esta jovem?
O saudoso doutor Ulysses Guimarães, a respeito da pobreza, disse em seu discurso de promulgação da Constituinte: “é só cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa”. Quem, por essa medida é, hoje, cidadão no Brasil?
Num contexto como esse, conforme o tempo passa, acabamos por nos acostumar com a miséria: se a dor não é nossa, nos tornamos insensíveis a ela. Este é o país, afinal, que prefere construir muros para não enxergar os pobres do que fazer uma mudança sistêmica real que aja contra a pobreza. É um país em que a classe dominante fica cada vez mais rica às custas do povo que volta a passar fome, do meio-ambiente, dos povos indígenas e comunidades tradicionais. Enquanto um multimilionário conhecido meu, e que é enquanto pessoa uma verdadeira representação fidedigna da elite corrupta e hipócrita deste país, gasta em Dom Pérignon o equivalente ao gasto mensal de 3 famílias de classe baixa em estimativas conservadoras, o sujeito que antes pertencia à classe média perdeu a mínima segurança alimentar. Estamos em um país onde a vida não melhora em nada, e ainda assim, os responsáveis não assumem nenhuma responsabilidade pelos seus atos. Aliás, mais do que os responsáveis, há um principal responsável por isso tudo, e para quem a culpa é dos governadores, dos prefeitos, da China, dos ministros do Supremo, do Congresso, de qualquer instituição que mantenha nossa frágil democracia. “Tudo só vai melhorar se eu tiver total poder”, é o que tenta dizer o Excelentíssimo Corno-Chefe da República nas ameaças de golpe que faz dia sim, dia também.
A única esperança que tenho como brasileiro, e com grandes chances de ser uma esperança tão vazia quanto as propostas da Bolsa de Cocô que ocupa hoje a Suprema Magistratura da Nação, é que não devemos nos conformar com a pobreza e ignorar a dor alheia. Nestes 199 anos de Brasil, o sete de setembro foi uma efeméride a marcar um dos períodos mais sombrios de sua história. Talvez juntos consigamos sobreviver até que tempos melhores venham. Se não vierem, pereceremos todos juntos também.
Lucas Pessoa
Acadêmico de Medicina da Universidade Federal do Amazonas.
[email protected]