por Daniel Lopes Porque o narrador de Todos os cachorros são azuis (7 Letras, 2008) é um louco literalmente de hospício, todo o romance de Rodrigo de Souza Leão tem uma composição, bem…, maluca. Os capítulos não existem para deter a atenção sobre esse ou aquele outro aspecto da estória, sob esse ou aquele ponto […]
por Daniel Lopes
Porque o narrador de Todos os cachorros são azuis (7 Letras, 2008) é um louco literalmente de hospício, todo o romance de Rodrigo de Souza Leão tem uma composição, bem…, maluca. Os capítulos não existem para deter a atenção sobre esse ou aquele outro aspecto da estória, sob esse ou aquele ponto de vista. Até mesmo os parágrafos são um cesto de pensamentos diversos e vozes variadas, a em primeira e várias em terceira pessoa.
Trata-se de um livro bem curto, 69 páginas de texto propriamente, divididas em quatro capítulos. Escrito com cuidado, não há dúvida. Seu tema principal, o da loucura, está longe de ser esgotado (estou pensando apenas na literatura brasileira). Seu narrador nos leva à reflexão e também nos diverte. E nos deixa deliciosamente confusos. Em nenhum momento o texto faz pouco da inteligência de quem está lendo, e nem tenta enfiar palurdices eruditas goela abaixo. Para um romance de estréia, isso já é mais do que se deve exigir.
É assim que Rodrigo, carioca nascido em 1965, começa a trilhar o campo da prosa – em 2001 já havia publicado Há flores da pele (Editora Trema), de poemas. Jornalista por formação, o autor é ator ativo nessa tal de internet – tem blog, é um dos editores da Zunái e colaborador da Germina Literatura.
O narrador, a quem daqui em diante nos referiremos como o Louco, é anônimo. Aos 36 anos, se encontra num hospício, onde foi parar levado pelos próprios pais, que no entanto lhe querem bem e estão sempre fazendo visitas. O Louco também não lhes dirige nenhuma mágoa. Como explica, a atitude do pai e da mãe não poderia ter sido diferente, após, gota d’água, resolver quebrar todos os vidros da casa, para livrá-la “dos maus espíritos”. Culpa do chip:
Quebrei, porque sou feito de cacos e quando os cacos me convidam, desordeno tudo. Tudo estava muito calmo. Menos eu. Engoli um chip. Bebi um chope na rua e botaram um chip dentro do chope. Engoli o chip que faz com que eu faça tudo isso, até o que não quero.
Claro, nós entendemos.
Por ser um sujeito que leu muita literatura (cuidado, vocês aí!), no hospício – com tanta gente a ponto de parecer “o Maracanã em dia de jogo do Flamengo -, nosso Louco nunca está só: convive com Rimbaud e Baudelaire – “vejo Rimbaud desde os 23 anos. Baudelaire apareceu mais tarde.” E, caso você não saiba, Batman, Demolidor e Clark Kent também estão internados.
Incrustados próximos a uma favela, não são raras as noites em que os internos são obrigados a dormir, ou não dormir, ao som de funk. Coisa de maluco, você dirá – você, não eu! Há flores no local, por todo lado, e assim o Louco compara a beleza do hospício com aquela de um cemitério. A analogia, o lúgubre que evoca, não é gratuita. Não raras vezes os habitantes do local são confinados: “Entrou uma barata no cubículo”, relata o Louco, e continua:
Tive que matá-la com a mão. Não havia outro instrumento ao meu alcance. Os cubículos são feitos pra pessoa que está dentro não ferir ninguém, mas também não se ferir. Pra não me ferir não havia nada no cubículo. No começo da internação às vezes ficamos amarrados. Cada um tem um tratamento que varia de acordo com a sua periculosidade.
Cético quanto aos efeitos dos inúmeros remédios que é obrigado a engolir – não que ele engula todos, pois aprendeu um método eficaz de burlar as enfermeiras, deixando o comprimido bem escondido sob a língua para depois cuspir –, raciocina que talvez a doença saia mais em conta que a cura. Até porque, chegada esta, ele deixaria de “ver” Baudelaire e Rimbaud, e “o que é a vida sem amigos?”
Conto embaçado de várias noites de inferno, sabemos, pelo andar de Todos os cachorros…, que houve um crime no sanatório. Sem maiores detalhes. E sabemos que o Louco é um dos acusados de ser o autor. Sempre sem detalhes. Afinal, os “agentes B” concluem que ele é inocente (apesar de Rimbaud pensar o contrário) e lhe deixam em paz. Mais que isso: o Louco parece estar reabilitado, ou pelo menos não mais tão debilitado mentalmente, e é posto em liberdade. De volta à casa dos pais, funda, com outros loucos, uma igreja cujas preces se dão numa língua estranha, mas que angariam muitas doações. Vão todos presos, acusados de causar a desordem pública. Nem é preciso dizer que esse percurso é todo narrado de forma atabalhoada e em um punhadinho de páginas.
Por fim, eu não poderia deixar passar sem um gostinho daquele que é um dos pontos fortes do romance. Há ao longo de todo ele algumas frases luminosas, que saltam à vista pelo inusitado e pelo inesperado e pela astúcia e pelo desconcertante e pelo humor lacônico e melancólico e desesperançado e chega de adjetivos. Um breve apanhado:
“Não sei qual dos dois pesadelos é o pior: acordado ou dormindo”; “Acho que louco não tem tempo de pensar em sexo. Alguns são vistos parados e se bolinando. Mas isso ocorre mais nas ruas”; “Se havia um lugar como o hospício, era sinal de que Deus não existia” (referência nada indireta a Hospício é Deus, de Maura Lopes Cançado); “A última vez que fora amado, ela disse que não me amava. Tinha se apaixonado pela loucura que há em mim”; “O que é a solidão? É viver sem obsessões”; “No mundo de fora, procuro no obituário todo dia meu nome. Já decidi: não quero ir ao meu enterro”; “Não agüento fazer papel de vítima. Meu papel é o higiênico”; “Nunca comi merda. Não sou dado a rituais macabros de existência. Sou um louco light, versão diet”.
Que venha logo o segundo romance de Rodrigo de Souza Leão.
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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