por Daniel Lopes – No prêmio Jabuti deste ano, minha torcida na categoria Romance foi para Uma parede no escuro, de Altair Martins. O vencedor foi Moacyr Scliar, Altarir não ficou nem entre os três. Na categoria Crítica Literária, acendi uma vela para Graciliano Ramos: Um escritor personagem, de Maria Izabel Brunacci, que também não […]
por Daniel Lopes – No prêmio Jabuti deste ano, minha torcida na categoria Romance foi para Uma parede no escuro, de Altair Martins. O vencedor foi Moacyr Scliar, Altarir não ficou nem entre os três. Na categoria Crítica Literária, acendi uma vela para Graciliano Ramos: Um escritor personagem, de Maria Izabel Brunacci, que também não subiu ao pódio, no topo do qual ficou Monteiro Lobato: Livro a livro. (Isso não prova a superioridade de prêmios sobre o julgamento individual do leitor, claro, mas de qualquer forma, nos próximos anos os concorrentes fazem melhor em dispensar minha torcida.)
O grande mérito de Maria Izabel é mostrar de que forma Graciliano fez com que sua literatura dialogasse intensamente com as propostas intelectuais de sua época, e de como, assim, ela acabou se elevando (e muito, em alguns momentos) da média da produção nacional.
A autora não chegaria a tanto, mas cá para mim Graciliano Ramos foi o escritor do século 20. Sua obra marca pontos não apenas se comparada à dos intelectuais conservadores reunidos nas revistas Terra de Sol e Festa – que tinham por objetivo solapar o legado modernista nas letras – como também quando posta ao lado das obras de “companheiros” como Jorge Amado, José Lins do Rego e Raquel de Queirós. Antes de mais nada, ele superou seus colegas de campo político ao não se render ao radicalismo que via o povo mas não via os indivíduos ou ao moralismo latente na denúncia do “senso de imoralidade” burguês.
Depois, pegue a questão da voz dos personagens e do narrador. No clássico de Raquel, O quinze, há uma constante indecisão da autora entre reproduzir o falar dos retirantes ou levar o texto adiante segundo os padrões da língua culta, e isso acaba tornando as tentativas de aproximação entre narrador e personagens um tanto forçadas. (Interessante notar como a questão da fidelidade à fala na literatura recentemente rendeu comentários antagônicos entre Luiz Biajoni e Alex Castro.) Menino de engenho, a obra-prima de José Lins, “tem antes a pretensão de representar o pobre (pela visão do narrador) do que ceder espaço na narrativa para a figuração do seu ponto de vista de classe”, escreve Maria Izabel.
Como Graciliano se resolve diante dessa difícil equação entre as vozes do narrador e dos personagens? Primeiro, é preciso notar algo sobre a estrutura de seus romances, que ajuda a entender as decisões do autor em relação à voz de seus personagens e narradores.
Vidas secas e Angústia, pelo menos, são livros de vanguarda. Deste último – na minha opinião, e até onde pude conferir, o melhor escrito na primeira metade do século passado – destaca-se não apenas o tal fluxo de consciência como também uma “radical fragmentação do tempo”, o que o coloca, segundo Afranio Coutinho, ao lado “das mais audaciosas experiências do romance da decadência”. Os pontos capitais de Vidas secas são listados por Maria Izabel: composição em quadros, narrativa com quê de técnica poética, etc. etc.
Pois bem. Não foi apenas por pedantismo que Graciliano pulou na dianteira nesse campo. Tais estruturas mostraram-se fundamentais para a execução do tipo de diálogo que ele queria ver entre narrador e personagens. Ele tinha um plano… político, desculpem a palavra. Mas aqui também não temos um mero aproveitador, um mero doutrinador, não temos aqui alguém interessado em subir no conceito dos partidões e partidinhos. Assim, Vidas secas é um “romance da seca”, mas não é apenas isso, como de alguns livros de Jorge Amado podemos dizer serem “romance do latifúndio” ou “romance da indigência infantil” e ponto. Maria Izabel:
(…) Nele, a seca como tragédia que se abate sobre o sertanejo é uma condição natural, cujas consequências se repetem porque se repetem indefinidamente as condições sociais. Ou porque se repete, geração após geração, uma tradição de mando que perpetua essas condições sociais: a condição colonial, que se reproduz e persiste no interior do projeto modernizador. Então não se trata apenas da seca, mas de uma narrativa da colonização, que o processo de modernização não logrou superar.
E aqui está o ponto. Mostrar a realidade sofrível da gente comum, para Graciliano, era algo muito difícil de se fazer com efetividade se o escritor, por mais sincero e bem intencionado que fosse, usasse apenas os mecanismos convencionais na hora de trabalhar a relação narrador-personagem. Ele enxergou no calor da hora algo que a crítica demoraria ainda certo tempo para enxergar: que em muitas das novelas e romances da Geração de 30 a representação do sofrimento do camponês, do citadino, saía bastante prejudicada em decorrência da incapacidade dos autores em não se manterem, através de seus narradores, degraus acima do homem comum com quem desejavam entrar em comunhão.
Dada a sinuca, nada menos que genialidade seria preciso para diminuir o abismo entre autor/narrador e personagens, sem anular estes últimos. E aqui está Antonio Candido sobre Vidas secas: “Graciliano Ramos usou um discurso especial, que não é monólogo interior e não é também intromissão narrativa por meio de um discurso indireto simples. Ele trabalhou como uma espécie de procurador do personagem, que está legalmente presente, mas ao mesmo tempo ausente. O narrador não quer identificar-se ao personagem, por isso há na sua voz uma certa objetividade de relator. Mas quer fazer as vezes do personagem, de modo que, sem perder a própria identidade, sugere a dele. Resulta uma realidade honesta, sem subterfúgios nem ilusionismo, mas que funciona como realidade possível.”
Esse não querer identificar-se com o personagem e ao mesmo tempo querer fazer-lhe as vezes faz com que, no romance, narrador e personagens relutem um em entrar no espaço do outro, mas ao mesmo tempo influenciem-se mutuamente a tal ponto que em muitas frases sequer sabemos qual voz fala. (Exemplos de Maria Izabel, no capítulo de Fabiano em Vidas secas: “Se pudesse economizar durante alguns meses, levantaria a cabeça. Forjara planos. Tolice, quem é do chão não se trepa. (…) Mas receava ser expulso da fazenda. E rendia-se. Aceitava o cobre e ouvia conselhos. Era bom pensar no futuro, criar juízo.”)
É a “realidade possível” de Candido. É a literatura possível, e necessária, de Graciliano. Tal procedimento foi tão mais eficaz do que o a inofensiva literatura-de-denúncia-para-inglês-ver em fazer chegar ao leitor a vida da gente simples, que a crítica mais convencional não deixou e não deixa de estranhar – não sem algum preconceito, Álvaro Lins (na introdução de uma edição do ano 2000 do romance) achou improvável um povo rude como o que aparece em Vidas secas ter sentimentos tão fortes e complexos como faz parecer Graciliano.
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Lado à eficaz denúncia social, topamos sempre nas páginas da ficção de Graciliano com seu quase contagioso pessimismo e a questão da “língua nacional”. A ambivalência decorrente das diferenças entra a língua do colonizador e a língua do colonizado, observa Maria Izabel, é o que faz da literatura um espaço de tensão emancipadora. Ao mesmo tempo em que submete-se ao código linguístico do colonizador, o escritor abre espaço em suas obras para a parte da cultura nacional que não se encaixa ou sofre oposição da modernização avassaladora. Tal como vários autores modernos, Graciliano percorreu com bastante proveito esse caminho. Mas uma vez mais se destaca.
Concordando com o crítico Hermenegildo Bastos – para quem Jorge Amado é “portador de uma imaginação romântica que colore a realidade” e José Lins do Rego um documentarista sem potencial para agradar o leitor em busca de textos mais imaginativos –, Maria Izabel prossegue afirmando que “a ficção de Graciliano Ramos se coloca em diálogo com o romance de 30, ao recusar a estetização da linguagem oral como solução literária para a tensão de classe que gera – e é gerada por – contradições na sociedade (…).” Pode-se não concordar inteiramente com a análise das obras de Jorge e Lins do Rego, mas me parece difícil negar que ninguém melhor do que Graciliano viu a armadilha do fetiche da linguagem oral.
Ao mesmo tempo que rejeitava o apaziguamento dos conflitos em nome do “interesse nacional”, como proposto por José de Alencar e ainda em moda no começo do século 20, no campo da linguagem Graciliano não deu muita importância às pirotecnias dos revoltosos de 1922. Autores como Mário de Andrade defenderam uma revolução verde-amarela – pelo menos entre os intelectuais capazes de ler seus textos. Mas Maria Izabel nota que a “gramatiquinha brasileira” por eles defendida “era também uma proposta burguesa; trocar a ‘língua de Camões’ por ela equivaleria a trocar a língua de uma elite lusitana pela de uma elite brasileira.”
Mais uma vez notamos o gênio de Graciliano, a não se perder diante de modismos, sempre pronto a ler suas entrelinhas e enxergando além deles. Sua proposta para uma “língua brasileira” tem sempre espaço para a gramática do português padrão, ao mesmo tempo que “busca sua autenticidade na absorção da riqueza do português lexical acumulada pela fala popular.” Alguns de seus livros estão permeados do falar típico nordestino, mas isso nem sempre era produto de um processo natural. Certa vez, em carta para uma parente, comunicou que “o S. Bernardo está pronto, mas foi escrito quase todo em português, como você viu. Agora está sendo traduzido para brasileiro (…)”. E o resultado é espantoso: não parece a você que já leu S. Bernardo que o livro foi escrito diretamente em “brasileiro”?
Então, temos aqui um fato interessante: enquanto a turma de Mario de Andrade escrevia “naturalmente” sua gramatiquinha brasileira muito longe de qualquer coisa… brasileira, Graciliano apenas por tabela chegava em seus livros em língua “brasileira”, logrando um sucesso na representação do falar e do sentir popular perto da qual grande parte da literatura nacional não suporta comparação.
Mas temos o pessimismo. Se Graciliano Ramos era contrário ao apaziguamento social, também não via como as massas poderiam se organizar e superar sua mísera condição. Entre a classificação do autor como um pessimista irremediável (como pensa Antonio Candido) e a que o coloca como, particularmente em Vidas secas, um porta-voz da crença na mudança das condições dos desfavorecidos (e mesmo na revolução), devido a uma suposta tomada de consciência do personagem Fabiano, Maria Izabel se posiciona no centro. Ela vê certa tomada de consciência por parte deste personagem, mas a coloca como resultado direto dos incentivos da esposa, sinha Vitória; ou seja, é nela que residiria a esperança.
É preciso reconhecer que, em Graciliano, a balança pesa mesmo para o pessimismo. Maria Izabel cita uma das passagens de Vidas secas em que Fabiano encontra-se com o “soldado amarelo” – “Havia muitos bichinhos assim ruins, havia um horror de bichinhos assim fracos e ruins” – e conclui que, através dela, Fabiano “extrapola a situação imediata do ‘mau agouro’ das arribações, para projetar-se como dedução da própria história do projeto de modernização do Brasil e como previsão de sua falência.”
Bem, isso é cair no extremo oposto ao que se encontra Álvaro Lins. Tal como entendo essa passagem (e outras), a dedução existe, mas é do escritor. É como se ele estivesse dizendo: Fabiano bem que podia encarar esse mísero soldado apenas como uma engrenagem de um sistema opressor maior, mas, na condição em que se encontra, é incapaz de chegar a essa conclusão política. Em resumo, a frase citada por Maria Izabel é mais uma daquelas em que a voz do narrador-escritor e a do personagem se misturam a ponto de prejudicar a identificação – mas eu aposto que, neste exemplo, seja Graciliano se expressando, e não a transcrição de um pensamento de Fabiano.
A principal fonte do pessimismo do autor alagoano deve ter sido o fato de ter ampla “consciência do atraso” – termo de Antonio Candido que designa o drama do escritor diante de uma realidade em que a vasta maioria da população sequer tem acesso ao tipo de bem cultural que ele está produzindo – ou qualquer outro. Enquanto nutria certo otimismo em relação ao poder da literatura – uma “arma de dois gumes” – para esclarecer aqueles que podiam ter-lhe acesso, ele criou em seus próprios livros, através de narradores-personagens que são também escritores (ou em vias de sê-lo), uma atmosfera carregada, nas palavras de Maria Izabel, de “reflexões, comentários e alusões, em que o narrador duvida do poder da literatura de representar o mundo e da eficácia do discurso como representação do irrepresentável, que é a complexidade da vida social.”
Graciliano me parece como alguém que sempre esteve rachado entre raros impulsos de otimismo e um pessimismo quase que de princípio. Parece que foi essa batalha interior que fez com que ele se concentrasse em maneiras bem particulares de estruturar seus romances e de dialogar com seus personagens, o que demandou todo o tempo que poderia ter gasto tentando emular modernismos. Certo é que o resultado de seus esforços foi uma literatura revolucionária, nada menos. Ainda mais porque, ao lado da bem sucedida denúncia social, Graciliano nunca esqueceu o humor. Lendo S. Bernardo a gente não sabe se chora diante da nossa condição ou se ri diante da narração. Na dúvida, a gente ri e chora. Lembra por isso aquela outra obra imperdível, Os Bruzundangas, de Lima Barreto, que se você não leu ainda, por favor comece hoje (PDF).
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Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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