por Daniel Lopes – O que nós temos aqui é uma clássica obra de reabilitação. Os autores são os irlandeses Michael Lillis e Ronan Fanning, e a personagem histórica a ser reabilitada é Elisa Lynch (1834-1886). Também irlandesa, bela e culta, conheceu em Paris o paraguaio Solano López, futuro presidente. Com ele, veio para a […]
por Daniel Lopes – O que nós temos aqui é uma clássica obra de reabilitação. Os autores são os irlandeses Michael Lillis e Ronan Fanning, e a personagem histórica a ser reabilitada é Elisa Lynch (1834-1886). Também irlandesa, bela e culta, conheceu em Paris o paraguaio Solano López, futuro presidente. Com ele, veio para a América do Sul, como companheira, e não casada formalmente. Pode-se imaginar a colher de chá que tal condição apresentou para a elite (principalmente sua parte feminina) invejosa do Paraguai classificá-la de “cortesã”, mera aproveitadora dos bens que Solano podia lhe comprar.
Como todos que estavam em algum lugar do Paraguai, Uruguai, Argentina ou sul do Brasil nas décadas de 1860 e 70, a Guerra do Paraguai foi de longe a experiência mais traumática para Elisa. Pior: não bastassem as cifras estratosféricas de morte, tortura e destruição cobradas pelo conflito, ela ainda teve que se ver, no pós-guerra, retratada como uma das principais responsáveis pelas desgraças que se abateram sobre seu país de adoção – dois terços da população aniquilada e a então notável riqueza material paraguaia reduzida a nada. Segundo os críticos, ela teria enfeitiçado Solano e o empurrado para batalha após batalha, derrota após derrota.
Compreensivelmente, Lillis e Fanning concentram seus esforços principais neste período. Fazem um resumo da guerra em si – não de todo satisfatório; esquecem o papel da Inglaterra para a ocorrência e prolongamento do conflito, e o país foi no final das contas o que mais lucrou – e mostram como Elisa Lynch não poderia ter sido o monstro que dizem ter sido. Mostram, nem tanto por insistentemente citarem depoimentos da própria Elisa, mas pela transcrição de documentos e livros de memórias de terceiros, inclusive de alguns inimigos de Solano.
Por exemplo, é curioso que George Masterman, inglês incorporado por Solano ao exército paraguaio, tenha escrito em suas memórias daqueles anos terríveis que “aquela senhora [Elisa] ocupou um lugar muito proeminente nos negócios do Paraguai e, acredito, seus demoníacos conselhos foram a remota causa da terrível guerra que acabou despovoando o país”. Curioso porque, como ele mesmo reconhece, a influência de Elisa junto ao marido foi fundamental para que certa vez ele, George, tenha tido sua prisão relaxada. George, como tantos outros aliados de Solano nos anos finais da guerra, fora preso e torturado por ordem do mesmo, que já estava beirando a loucura, vendo suspeita em todos os lugares – mandou inclusive prender os irmãos e a mãe.
Confissões como esta, mais relatos vindos do historiador Arturo Bray – que em livro da década de 1940 revela como em certa ocasião Elisa fez o filho preferido de Solano manter greve de fome até que o pai soltasse um coronel paraguaio que havia sido condenado à morte – e memórias de Silvestre Aveiro – secretário particular de Solano, não especialmente cheio de amores por Elisa, mas que relatou ter “frequentemente” presenciado o chefe “censurá-la severamente por tentar usar sua influência junto a ele” – nos dão a ideia mais de uma mulher tentando conter os ímpetos mais sanguinários do presidente, seja por motivos morais ou práticos, do que a de uma sorrateira pronta a levar o chefe de estado paraguaio, e o próprio Paraguai, à desgraça com seus conselhos “demoníacos”.
O que, então, mais ocupava Elisa nos anos de chumbo? Como notam os autores rapidamente e sem muita empolgação, “A frustração pessoal de Elisa foi que ela não conseguia mais abastecer seu maravilhoso guarda-roupa parisiense, a esplêndida decoração de sua casa e os palácios no campo ou sua coleção de livros, únicas no Paraguai”. Essas são preocupações fúteis, dadas as circunstâncias – o trecho acima está no capítulo intitulado “Desastre” (para o povo comum paraguaio, pelo menos). Além disso, Elisa justificadamente se preocupava com o futuro material dos filhos, a quem amava de maneira impressionante. E a propósito, ela passou grande parte dos anos de guerra gestando e criando filhos de Solano, o que por si só nos faz perguntar de onde ela poderia ter tirado tanto tempo, inspiração e força para enfeitiçar Solano (e todos os figurões das forças armadas) ao ponto de levar o país quase ao ponto de ser riscado do mapa. No máximo, defendem os autores, o papel de Elisa nas decisões que ajudaram a arruinar o país foi o de chefe de torcida.
Não se pode perder de vista, por fim, que a posterior demonização de Elisa Lynch por parte da elite paraguaia refugiada na Argentina, bem como por autoridades, jornalistas e intelectuais argentinos, brasileiros e uruguaios atendeu o evidente interesse dos próprios países da Tríplice Aliança, que assim tinham uma forte justificativa em retrospectiva para seus crimes indescritíveis em território paraguaio e sua política de estender a guerra desnecessariamente até o absurdo – principalmente por pressão de D. Pedro II. Em agosto de 1869, quando a guerra já havia acabado de fato há bastante tempo, enquanto saqueava vinhos e roupas de Solano-Elisa, o conde D’Eu supervisionou a degola de prisioneiros de guerra e a queima de feridos em um hospital militar (enquanto ainda estavam vivos). No mesmo ano, em maio, o general José Antônio Câmara também ordenou a degola de centenas de prisioneiros de guerra, deu sinal verde para o estupro de mulheres e meninas e deportou crianças para o Brasil (depois o general seria promovido a “visconde de Pelotas” pelo “rei-filósofo”).
Dentro desse quadro, que conveniente ter alguém em quem pôr a culpa por supostamente ter iniciado tudo! Sim, Solano López era um tirano, mas não poderia ter dado os passos em falso que deu e nem cometido os absurdos que cometeu, se não tivesse por trás de si a influência maléfica daquela irlandesa de beleza deslumbrante e comportamento audaciosa. Sim, audacioso; pois antes de se mudar com López para o Paraguai, ela não tivera a ousadia de largar o marido francês e levar uma vida independente e “suspeita”?
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As calúnias contra Elisa começaram antes da Guerra do Paraguai. Quando desembarcou com Solano na América, o país ainda era governado pelo pai dele, Carlos Antonio López. Como o favorito do pai para a sucessão, Solano já era de certa forma temido pelos círculos do poder, mas como ainda não dava totalmente as cartas do jogo (e ainda não mostrava com vigor a espada ao inimigos externos e internos), histórias nem sempre apócrifas sobre aquela europeia sua companheira se espalhavam por Assunção e além.
Expor e (quando possível) desmentir esses boatos é o outro grande foco de atenção dos autores Lillis e Fanning. Como no caso dos boatos sobre a suposta vida de Elisa como uma prostituta de luxo em Paris, após encerrar um embaraçoso casamento com o oficial francês Xavier Quatrefages. Esses contos foram “compilados” e publicados em obras no período pós-guerra. O jornalista argentino Hector Varela, desafeto de López e Elisa, que já encontrara os dois pessoalmente, publicou em 1870 nada menos que um volume de 350 páginas intitulado Elisa Lynch. Reunião de algumas das piores teorias sobre a vida de Elisa, Varela escreveu o que para Lillis e Fanning é uma “ficção romântica e às vezes delirante (…). As amplas linhas com que traçou o perfil de Elisa antes de sua vinda para o Paraguai coloriram a maior parte do que posteriormente foi falado sobre esse período de sua vida, tanto por outros escritores, politicamente hostis – os quais eram muitos –, como nos relatos mais imparciais sobre sua vida.”
Os ataques ao nome de Elisa entraram bem no século 20. Em 1992, a respeitada autora Anne Enright, conterrânea de Elisa, publicou The pleasure of Elisa Lynch, onde afirma que aos 14 anos a futura companheira de Solano López prestou serviços sexuais a um rico senhor, enquanto ainda estudava na França. Não apresenta provas. Mais raivoso, o argentino Hector Decoud publicou em 1939 Elisa Lynch de Quatrefages. Com esse título ele evidentemente procurava destacar a vida pregressa e “suja” de Elisa – “mulher cuja juventude deve ser procurada na libertinagem da rua; sua maturidade, no virtuoso sangue de suas vítimas inocentes; e sua terceira idade, nas estrumeiras do vício.”
Quanto de verdade existe nesse quadro do passado de Elisa? Descontados os exageros de seus caluniadores, é quase certo que ela teria experimentado por algum tempo o universo das cortesãs em Paris, e nele conhecido Solano López, numa grande turnê europeia deste a serviço do governo do pai, para compra de armas e contratação de técnicos. “Seria extraordinário”, escrevem os autores, “se Elisa, ciente de seus poderes de atração, legalmente solteira, sem dinheiro algum e desesperada por uma vida normal e decente, não tivesse ficado tentada a sonhar com suas chances de fazer carreira naquele resplandecente mundo. (…) pode ter pelo menos tentado experimentar aquelas águas após deixar Quatrefages no verão de 1853.”
O fato de alguns cronistas terem retratado Elisa como cafetina pode ter tido apoio no fato dos arquivos parisienses das décadas 1860-70 trazerem o nome de uma “Madame Quatrefages” como administradora de um bordel na cidade. No entanto, é impossível que esta seja Elisa: pelos arquivos, a Madame ainda comandava a casa no ano de 1863, e desde 1855 Elisa estava no Paraguai, com Solano.
Elisa Lynch foi uma mulher elegante e culta. Introduziu modos e costumes no Paraguai da segunda metade do século 19. Segundo certo diplomata estadunidense, era “uma senhora de tal cultura erudita, esclarecimento e bom gosto, com quem muita vezes pude lembrar em conversa os clássicos da língua inglesa e trocar ideias sobre a literatura de nosso tempo.” Invejada e detestada por amplos setores da elite local, relacionava-se bem com famílias de europeus “importados” por Solano para acelerar a modernização do país, e também com famílias das classes baixas paraguaias, no meio das quais disseminou moda e cosméticos até então desconhecidos na América do Sul.
Com o fim da Guerra do Paraguai, nos estertores da qual viu o marido enlouquecido e o filho predileto serem mortos por soldados brasileiros, voltou para a Europa. Depois ainda ousaria um retorno ao Paraguai, quando tentou recuperar as terras que havia adquirido no reinado de Solano e perdido para o governo fantoche pós-guerra implantado pelo Brasil. Sem grandes sucessos. Passou os 10 últimos anos em Paris e Londres, reclusa, no entanto sempre relembrando com as poucas visitas seus dias de Paraguai. Faleceu no dia 25 de julho de 1886, aos 52 anos.
O livro de Michael Lillis e Ronan Fanning engaja o leitor no conturbado percurso de vida de Elisa, que em seu momento mais difícil teve como pano de fundo a terrível Grande Guerra. Desfaz mal-entendidos e desmascara más intenções. Peca apenas pela ausência de uma cronologia, básica que fosse, que seria de grande utilidade para orientar o leitor no decorrer das páginas bem como em consultas futuras.
[ foto: Elisa aos 20 anos (arquivo da família de Barbara Dimock) ]
::: Calúnia: Elisa Lynch e a Guerra do Paraguai ::: Michael Lillis e Ronan Fanning :::
::: Terceiro Nome, 2009, 312 páginas ::: encontre pelo melhor preço :::
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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