Entrevista com Sasha Polakow-Suransky
a Daniel Lopes
Ao mesmo tempo fruto de uma profunda e paciente pesquisa histórica e de um impressionante trabalho de jornalismo investigativo, The unspoken alliance: Israel’s secret relationship with Apartheid South Africa é uma obra indispensável sobre o século passado. Elaborado primeiro durante o doutorado de Sasha Polakow-Suransky em história moderna por Oxford, o texto foi reescrito, tornado mais palatável para o grande público, e lançado no primeiro semestre, com repercussão global. Durante anos, Sasha entrevistou dezenas de personagens do grande enredo político-militar que foi a relação comercial e nuclear entre Israel e a África do Sul do apartheid, mesmo depois da resolução da ONU pelo embargo ao regime africano. Sasha concordou em responder algumas questões sobre o tópico, sobre o livro em si e – até por ser editor-sênior da Foreign Affairs – sobre o programa nuclear iraniano.
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Amálgama – À primeira vista, uma aliança Israel-África do Sul do apartheid não parece algo muito provável. Israel, um país de sobreviventes do racismo hitlerista, dificilmente se alinharia a um regime supremacista e opressor. De fato, alguns dos primeiros grandes líderes do país judeu, como Golda Meir e David Ben-Gurion, teceram severas críticas aos africânderes e buscaram outras alianças no continente africano. No entanto, depois da Guerra dos Seis Dias, houve uma enorme mudança na postura de Israel em relação à África do Sul. Por quê?
Sasha Polakow-Suransky – Durante os anos 60, sionistas trabalhistas como Ben-Gurion estabeleceram uma rede de aliados entre as nações africanas recém-independentes, oferecendo ajuda financeira, assistência agricultural e treinamento militar. Esse movimento foi tanto estratégico (ajudou Israel a ter apoio na ONU) quanto ideologicamente motivado (Meir genuinamente se identificava com a luta anticolonial africana e frequentemente comparava os recém-independentes estados africanos à Israel pós-independência). O governo israelense se sentiu traído por seus aliados africanos após a Guerra do Yom Kipur em 1973, durante a qual a maioria dos países africanos se aliou ao Egito e cortou laços diplomáticos com Israel. Mas o fator mais importante foi o desaparecimento da geração que havia fundado Israel e a emergência de uma visão mais tecnocrática no Partido Trabalhista – uma visão que era motivada mais por realpolitik que por anticolonialismo ou aversão moral ao racismo. Essa nova geração – líderes tais como Shimon Peres, Moshe Dayan e Yitzhak Rabin – estava disposta a fazer concessões morais a fim de garantir a segurança de Israel.
Em 1977 a ONU aprovou e tornou obrigatório o embargo à venda de armas ao regime do apartheid, e no entanto ele continuou a adquirir muito armamento de Israel. Por quais métodos esses dois países tornaram essas transações possíveis, apesar da resolução da ONU e da vigilância internacional?
O embargo era obrigatório, mas não era levado a cabo com poderio militar, e a vigilância por parte de organizações anti-apartheid não era sofisticada o bastante para monitorar o comércio secreto entre dois exércitos bem avançados. Israel e África do Sul conseguiram continuar seus negócios e dissimular cargas mais delicadas. Jornalistas ocasionalmente escreviam sobre embarcações suspeitas e as semelhanças entre as armas sul-africanas e israelenses, mas a relação era tão bem disfarçada que ninguém conseguiu ver o quadro como um todo. Quando oficiais militares e de inteligência viajavam entre os dois países, eles frequentemente usavam identidades falsas e pseudônimos, e não eram descobertos.
Que recepção seu livro teve na África do Sul e em Israel?
Na África do Sul, a imprensa no geral reagiu positivamente. O governo da Congresso Nacional Africano não tem constrangimento pelos pecados de seus predecessores, e os jornais reagiram bastante favoravelmente, com inúmeros artigos e resenhas. Alguns oficiais do ancien régime criticaram o livro e minhas descobertas. Quando Pik Botha, o antigo Ministro do Exterior, questionou as alegações do livro sobre cooperação nuclear, o famoso jornalista Allister Sparks veio em minha defesa e argumentou que o livro confirmava informações que algumas fontes lhe haviam passado nos anos 70. A única exceção foi uma resenha negativa em um dos jornais em língua africâner escrita por um jornalista que parece nostálgico dos velhos dias sob apartheid.
Em Israel, a imprensa também foi bastante receptiva, embora às vezes crítica. Poucas horas depois do Guardian ter publicado uma matéria de capa em Londres, Shimon Peres negou as acusações a respeito de suas discussões nucleares com os sul-africanos. Após esse evento, várias estações de rádio e tevê israelenses me entrevistaram (inclusive a rádio do exército) e Haaretz e Jerusalem Post me permitiram escrever colunas respondendo a meus críticos. A imprensa israelense na verdade pareceu bastante excitada para discutir o assunto. Há um tabu nuclear em Israel e a imprensa não pode discutir livremente o programa de armas nucleares israelense, devido à censura militar; mas quando uma publicação estrangeira levanta a questão, eles são livres para discutir.
As organizações “pró-Israel” nos EUA, como o American Jewish Committee e a Anti-Defamation League, que ainda nos anos 80 encaravam denúncias da aliança Israel-África do Sul como atos de hostilidade ao estado judeu, chegaram a reconhecer seus erros e pedir desculpas?
Elas nunca se desculparam por terem denunciado a oposição negra na África do Sul e por terem infiltrado organizações americanas anti-apartheid. Acreditavam que Mandela era um comunista amigo de líderes árabes, e portanto decidiram que ele era uma ameaça a Israel. A história mostrou que estavam erradas. A Anti-Defamation League (ADL) estava preocupada antes de mais nada em proteger a imagem de Israel, mesmo que as pessoas criticando Israel pela ajuda à África do Sul tivessem razão. Abraham Foxman, o diretor da ADL, se encontrou com Mandela após ele deixar a prisão em 1990 e depois escreveu uma carta para o New York Times lhe elogiando. Não é exatamente uma desculpa pela espionagem da ADL sobre movimentos anti-apartheid, mas sinaliza uma mudança de sentimento. Ainda que Foxman tenha mudado seu veredito sobre Mandela, a ADL ainda hoje adere a posições que alguns encaram como discriminatórias – por exemplo, sua crítica ao planejado Centro Islâmico “Ground Zero Mosque” próximo a onde ficava o World Trade Center.
Em Terror and Liberalism, Paul Berman liga o radicalismo islâmico atual aos movimentos antiliberais do século passado, como o nazismo e o comunismo. Berman acredita que eles tenham raízes semelhantes. Lendo certas passagens de seu livro sobre o sionismo revisionista, me ocorreu algo interessante. Vladimir Jabotinsky, pai dessa versão radical do sionismo, queria uma “Grande Israel” em ambos os lados do rio Jordão; como correspondente de um jornal russo na Itália, ele se encantou pelas ideias nacionalistas italianas e gradualmente passou a atacar o liberalismo, inspirado tanto por marxistas quanto por fascistas. Jabotinsky foi mentor de Menachem Begin, futuro presidente de Israel que, não concordando com a moderação de alguns sionistas no trato com os colonizadores britânicos, disse, “Já renunciamos o bastante. Queremos lutar – para morrer ou para vencer”, passou a organizar o sionismo militarista de organizações como a Irgun. Você observa que alguns pares de Begin eram ainda mais radicais, chegando a flertar como nazi-fascismo e defender assassinatos políticos e um estado judaico totalitário alinhado ao Reich alemão. Embora várias dessas visões radicais, até por uma questão de contexto histórico, não existam mais em Israel, é inegável que uma “Grande Israel” e o tratamento rude dispensado aos palestinos ainda encontram amplo apoio em setores mainstream da sociedade israelense. Então, pergunto se não podemos considerar o comportamento, por exemplo, dos líderes do Likud em relação à questão árabe, um fruto das ideologias antiliberais do passado, tal como Berman enxergou a postura do Hamas.
Sim, muitos dos eleitores que apoiam partidos de direita em Israel são extremamente racistas em relação a árabes e têm visões antiliberais. Veja por exemplo este artigo de Peter Beinart. Ele escreve que “Em 2009, uma pesquisa do Instituto Israelense para a Democracia descobriu que 53% dos judeus (e 77% dos recentes imigrantes vindos da antiga URSS) são a favor de se encorajar os árabes a deixarem o país. (…) e mais de 80% dos estudantes judeus religiosos do ensino médio negariam a árabe-israelenses o direito de serem eleitos para o Knesset [parlamento israelense]. Um oficial do Ministério da Educação classificou a pesquisa de ‘um imenso sinal de alerta em vista das tendências cada vez mais fortes de pontos de vista extremistas entre a juventude’”.
Muitos dos colonos ideologicamente motivados na Cisjordânia são profundamente antiliberais. É importante lembrar que não existe nada de mutuamente exclusivo entre judaísmo e totalitarismo. Ao longo da história, houveram muitos judeus que aderiram a ideias totalitárias, até mesmo fascistas. Vale a pena lembrar que Jabotinsky era bem moderado se comparado a alguns de seus seguidores, e tinha um respeito relutante pelo nacionalismo árabe e pelas reivindicações territoriais árabes. Entretanto, a ideia de um “muro de ferro” de força militar para defender o estado judeu e a noção de que os árabes não poderiam gozar de igualdade política com os judeus em um estado judeu estão bastante vivas hoje em dia. Na verdade, se você observar a retórica de membros do partido Likud que estão considerando a possibilidade da “solução de um estado” (porque não querem desmontar os assentamentos), verá que eles estão usando uma retórica similar a respeito de cidadania sem representação política.
Aproveitando que você aborda a questão dos armamentos nucleares no livro e é um analista de relações internacionais, como observa os passos do Irã (segundo alguns, com clara intenção de entrar para o clube nuclear), as pressões por sanções e o papel do Brasil no caso (muito criticado pela imprensa por aqui)?
Acho que não há nenhuma dúvida de que o Irã esteja em busca de armas nucleares. O caso sul-africano sugere que sanções na verdade encorajam os proliferadores a agirem no underground e acelerarem seus programas nucleares a fim de cruzar a linha de chegada o mais breve possível. No caso da África do Sul nos anos 70, as sanções não impediram o regime do apartheid de conseguir armas nucleares. Da mesma forma, a inspeção americana de Dimona nos anos 60 não impediu Israel de conseguir a bomba. Se as sanções funcionarão vai depender de quão próximo o Irã está de transformar seu material nuclear em armas e quantas opções alternativas ele teria, caso fortes sanções ocidentais sejam impostas. Se China e Rússia não forem igualmente duras com o Irã, é improvável que as sanções sejam efetivas.
Brasil e Turquia pareceram ter boas intenções quando conseguiram estabelecer um acordo com o Irã, e eles provavelmente também estavam motivados em parte por interesses econômicos nacionais – no caso da Turquia, manter um relação de comércio bastante lucrativa com um país vizinho e, no caso do Brasil, assegurar um potencial futuro cliente para urânio enriquecido, uma vez que o Brasil desenvolva sua própria capacidade de enriquecimento independente.
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— O LIVRO —
::: The unspoken alliance :::
::: Pantheon Books, 2010, 320 páginas :::
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Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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