DANIEL LOPES - Calúnias devem ser tratadas como caso de polícia, e não como pautas para o debate
por Daniel Lopes – Depois que a vitória no primeiro turno não veio, começou-se a cogitar por que Dilma Rousseff perdeu tantos eleitores para Marina Silva — supondo que os tinha; a alternativa é a incompetência dos institutos de pesquisa, que Marina já havia alertado não captarem seu eleitorado no Brasil profundo. Ontem, Idelber Avelar classificou os três maiores grupos pró-Marina: o ambientalista, o da classe média liberal e urbana decepcionada com os desmandos do PT e, por fim, o bloco evangélico. Idelber acha que este último não foi o mais decisivo.
É possível, mas duvido que não tenha sido o que mais cresceu na reta final, devido a uma rede de boatos pintando Dilma como algo próximo ao anticristo. Como morador de uma capital nordestina em contato com gente de classes menos favorecidas (gente religiosa), posso garantir que a campanha suja se espalhou muito na véspera do 3 de outubro — nas filas de votação não era difícil encontrar pessoas dizendo não votar em Dilma porque ela defende o casamento de “sapatões” e “veados”.
Seja como for, é altamente deplorável o que alguns assessores formais e informais da candidata Dima passaram a fazer. André Vargas, secretário de comunicação do PT, na Folha: “Agora é hora de envolver mais dirigentes na campanha. Foi um erro ser pautado internamente por algumas feministas. Eu e outros fomos contra”. Li isso em um post indignado da Marjorie Rodrigues. Vargas cometeu ainda a bobagem de espalhar no Twitter que “O Brasil verdadeiramente cristão não votará em quem introduziu a PILULA DO DIA SEGUINTE que na pratica estimula milhões de abortos. SERRA”.
O blog do Luis Nassif publicou um post, “O aborto como política de saúde de Serra“, com um documento de 1998 assinado pelo tucano, quando ministro da Saúde, com diretrizes para abortamentos em casos amparados pela lei. Mas que porcaria de “denúncia” é essa? Se os apoiadores de Dilma forem usar esse documento para mostrar a hipocrisia de Serra caso ele venha a classificar Dilma de pró-aborto, tudo bem. Mas se forem passá-lo adiante apenas para passá-lo adiante, estarão descendo ao nível da CNBB (voltaremos já à CNBB). José Serra não autorizou tráfico de órgãos, ele teve uma atitude positiva ao se certificar de que o SUS tivesse os meios adequados para realizar abortos em casos de violência sexual contra mulheres.
Demonizar o aborto seria a pior tática de Dilma para o segundo turno. Pouco antes da eleição, cercada de líderes religiosos, ela garantiu que não tomará a iniciativa de enviar ao Congresso propostas para a legalização do aborto. Se ela levar o teor dos pronunciamentos além disso, não apenas não acredito que vá convencer muita gente que acha que ela é uma enviada do demônio, como ainda vai perder o apoio de quem não reza pela cartilha anti-aborto — gente como a Marjorie.
Nossa legislação em relação ao aborto é uma das mais rígidas do mundo, os religiosos anti-descriminalização deveriam estar satisfeitos pelo fato da candidata favorita ter dito o que disse. Ou isso não basta? Ou é preciso não apenas não avançar a legislação rumo à de países europeus, mas fazê-la regredir à de El Salvador, um dos paraísos cristãos na Terra, onde uma mulher não pode abortar ainda que tenha sido estuprada ou corra risco de vida?
Aqui está o padre Luiz Antônio Bento, da Comissão Pastoral Episcopal para a Vida e a Família, célula anti-aborto da CNBB encarregada de colocar a doutrina acima de tudo: “Temos de examinar qual das duas opções [Serra ou Dilma] responde melhor à expectativa. Todo tipo de aborto é condenável, também o que visa proteger a mãe e o que impede o nascimento de uma criança fruto de estupro“. O destaque é meu. E essa é a CNBB, lembram?, aquela maravilhosa instituição “progressista”. Se o padre Bento não vai convidar a Dilma para uma roda de chá, imaginem se a petista convencerá as ovelhas do Malafaia.
Se Dilma não quer começar o governo em 2011 desmoralizada com os grupos progressistas, é melhor ir atrás dos votos verdes da Marina ao invés de fazer média com o mais extremado pessoal do crucifixo. Que a candidata reitere sua posição: não tomará a iniciativa de enviar projeto de descriminalização ao Congresso. E pronto. Que não se rebaixe aos boatos e panfletos caluniosos. O que ilustra a abertura deste post afirma, entre outros absurdos, que Dilma defende a legalização do aborto até os nove meses de gestação (!), e foi distribuído pouco antes da eleição em vários pontos públicos. Ao final dele consta um e-mail que, como revelou o jornalista Renato Rovai, pertence a Doris Hipólito Pires. Dona Doris é fundadora da Associação Mulheres pela Vida. Que ela e os seus achem a adoção de crianças por casais homossexuais algo tão abominável quanto um aborto aos nove meses diz muito sobre o enorme serviço que prestam à Nação. São ainda mais merecedoras de louvor porque despendem todo esse esforço intelectual e de impressão sem fins lucrativos e com dinheiro do próprio bolso.
Calúnias devem ser tratadas como caso de polícia, e não como pautas para o debate. Toda vez que alguém vier falar com Dilma portando a credencial de “defensor da vida”, a candidata deve imediatamente sacar o celular e contatar seu advogado.
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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