por Renato Tardivo
— Vitória por nocaute —
Sempre que sai um livro de Philip Roth, muita expectativa é gerada – e não por acaso. Roth, estadunidense de Newark, é considerado um dos escritores mais afiados em atividade.
Felizmente, seus romances têm alcançado a expectativa que reinauguram, isto quando não a superam – caso de seu último livro, publicado agora no Brasil: Nêmesis.
Em vias de completar oitenta anos e a despeito (ou por causa?) da recorrência de temas, a inventividade com a qual Philip Roth se repete, no bom sentido, é arrebatadora.
O célebre escritor argentino Julio Cortázar dizia que o conto bem sucedido vence por nocaute, enquanto o romance vence por pontos. Muito bem. Conquanto a analogia seja praticamente irrefutável, talvez não exageremos ao dizer que os últimos romances de Roth – além de Nêmesis, vale citar os recentes A humilhação e Indignação – não apenas convencem como também “vencem por nocaute”.
— Narrador invisível —
A exemplo dos últimos títulos, Nêmesis não tem mais que duzentas páginas. O romance é denso, bem urdido e fisga o leitor, que não o consegue largar. A história é narrada em três capítulos: “Newark Equatorial”, “Indian Hill” e “Reunião”.
Um narrador invisível – e o suspense em torno de sua identidade é um dos pontos altos do livro – rememora, de dentro da história, a epidemia de poliomielite que acometeu Newark no verão de 1944. O protagonista é Eugene Cantor (“sr. Cantor” para o narrador, “Bucky” para o avô falecido anos antes), um jovem professor de educação física com “jeito confiante e decidido”, traços herdados do – e aprendidos com o – avô.
Cantor foi criado pelos avós num bairro habitado por judeus. Sua mãe morreu de parto, seu pai era ladrão, mas ele “raramente permitia que os pensamentos sobre seus pais o atormentassem, muito embora sua biografia houvesse sido determinada pela ausência deles”.
Para sua frustração, ele não pôde servir na II Guerra Mundial, inválido para os confrontos em função de uma miopia. Restava-lhe, naquele verão de 44, trabalhar como responsável pelas crianças no pátio do colégio em que lecionava. Além disso, quando não estava trabalhando, ele cuidava da avó, com quem morava.
— Questão existencial —
À medida que os casos de pólio aumentam, incluindo entre as vítimas crianças que frequentavam o pátio coordenado por Cantor (algumas delas chegando a falecer), uma questão, da qual depende a própria história, começa a se delinear: para onde vai a narrativa?
O pânico – em certa medida aparentado ao que se lê em Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago – toma conta da cidade. A questão, digamos assim, existencial do romance retorna ao corpo das personagens: o que devem fazer? Seguir a vida normalmente, ignorando o risco de contágio?
Uma escapatória, ao menos para Cantor, surge. Sua namorada, Marcia, estava trabalhando numa colônia de férias cujo responsável pelos esportes aquáticos fora convocado para a guerra. Cantor poderia assumir o posto. No entanto, ele se sente preso entre o passado – representado pelos cuidados que deve à avó – e o futuro – simbolizado pelas crianças do pátio.
O jovem professor, que já acumulara algumas frustrações ao longo da vida, passa enfim a questionar o porquê de muitas coisas. É primorosa a forma com que Philip Roth concilia os questionamentos de Cantor com as cenas que os encampam. Por exemplo: certo dia o protagonista sai (aparente e conscientemente) sem rumo, atravessa (e é atravessado por) eventos marcantes e, quando cai em si, já tomou decisões das quais dependem o futuro – seu e da trama.
— Caminho sem volta —
Mas, paradoxalmente, as guinadas que Eugene Cantor empreende à sua vida o colocam em contato com “a vacilação – uma dolorosa fraqueza que até então desconhecia”.
Ao se envolver com as vicissitudes trágicas da epidemia, ele enfim toma contato com uma série de afetos outrora estrangulados pela pacata rotina em que vivia. Doravante, para onde quer que ele for, o vírus do contágio o acompanhará. Na falta da Grande Guerra, ele enfrentará outras.
O caminho é sem volta: a morte está concretamente presente em sua vida desde o nascimento. Simples assim: “Algumas pessoas têm sorte, outras não. Toda biografia é uma questão de chance e, a partir do momento da concepção, a sorte – a tirania da contingência – comanda tudo”. Essa passagem do romance parece feita sob medida. E vale tanto para os eventos da história quanto para a sua forma: facetas que reverberam uma na outra.
Com efeito, o terceiro e último capítulo do livro condensa a força arrebatadora de um desfecho de conto. Trajetória análoga à de um dardo: “Nenhum de nós nunca assistira a um ato atlético tão lindamente executado diante de nossos olhos. O dardo ultrapassou a linha de cinquenta jardas, se aproximou da marca de trinta jardas no campo oposto e, ao aterrissar, a haste vibrou quando a ponta de metal penetrou diagonalmente no solo graças à força adquirida em pleno voo”.
Trajetória severa, com ares míticos – “havíamos escapado à pequena história de nossa vizinhança para entrar na saga milenar de nossos ancestrais” –, na qual Hércules (trazido à luz), o primeiro arremessador de dardos, filho de Zeus, e Nêmesis (não mencionada no texto), deusa da vingança e da ética, se unem em um casamento estranho, triste e bonito.
O juiz sequer precisa abrir contagem.
::: Nêmesis ::: Philip Roth (trad. Jorio Dauster) :::
::: Companhia das Letras, 2011, 200 páginas :::
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