Ciência

Quando, em questões de ética, ciência e religião conflitam, é importante lembrar das vantagens da ciência

por Carlos Orsi

[ Nota do Editor: o que segue é uma versão da palestra que o autor
deu no dia 27 de setembro no SESC Paço da Liberdade, Curitiba ]

 

Boa noite, obrigado a todos por estarem aqui, e obrigado ao SESC pelo convite, que me deu a oportunidade de retornar a esta bela cidade de Curitiba depois de mais ou menos 20 anos. A última vez que estive na cidade foi em 1990 ou 1991, para um Encontro Nacional de Estudantes de Comunicação – fiz faculdade de jornalismo. Foi em julho, eu vim de ônibus e dormi no chão de um ginásio de esportes. Desta vez é primavera, vim de avião e estou dormindo num quarto de hotel. Algumas coisas melhoram com a idade…

Ciência e fé. O que essas duas palavras denotam são coisas que circunscrevem nossas vidas, quer gostemos disso ou não. Em linhas gerais, a ciência, por meio da tecnologia, define o ambiente material em que vivemos – foi graças à ciência que voei até aqui, é graças à ciência que minha voz vai até vocês, e se não fosse pela ciência por trás dos meus óculos eu não estaria lendo isto aqui para vocês.

Já a fé, para muitos de nós, circunscreve o ambiente social e psicológico: o que achamos certo ou errado, a linguagem que usamos para dar forma a nossos sonhos e esperanças, medos e temores, motivações e sentimentos, nossa própria visão de mundo.

Aqui, no entanto, já surge uma assimetria notável: a fé é opcional, de uma maneira que a ciência não é. Eu posso me recusar a ir à igreja, por exemplo, e ser bem-sucedido nisso, mas teria muito menos sucesso se resolvesse me recusar, digamos, a obedecer à lei da gravidade.

Mas alguém poderia levantar uma objeção a isso: dizer que, da mesma forma que ponho minha vida em risco ao desrespeitar a gravidade, ponho meu bem-estar presente, ou mesmo minha alma imortal em risco, ao desrespeitar a fé. Que o objeto da fé é tão real quanto a atração gravitacional da Terra.

Mas será mesmo? Parece haver, ao menos intuitivamente, um sentido em que “matéria atrai matéria” expressa uma verdade, digamos, mais verdadeira – ou talvez eu devesse dizer, menos controversa – do que “ninguém vai ao Pai senão por mim”.

E aqui chegamos ao ponto fundamental da questão: como fazemos para saber o que é, com o perdão do pleonasmo, realmente real?

Esse é o tipo de questão que pode parecer meramente acadêmica – alguém poderia responder, eu sei que a gaveta é real quando ela cai no meu pé – mas, de fato, trata-se de algo fundamental. E é fundamental porque o ser humano, além de ser o animal racional, o animal que ri e o único bípede sem penas, é também o animal que crê.

Porque, para a vida humana ser possível, acreditar é necessário. Agora, por favor, não me confundam com um guru de autoajuda: não estou usando o verbo “acreditar” no mesmo sentido em que ele costuma ser usado por jogadores de futebol que “acreditam na vitória”, ou por palestrantes motivacionais que “acreditam no seu potencial”.

Quando digo que acreditar é necessário para a vida humana, o que quero dizer é algo bem mais comezinho. Quero dizer que é necessário acreditar que comida mata a fome, para não morrer de inanição; é preciso acreditar que, se não bebermos água, morreremos de sede; é preciso acreditar que o carro vindo em alta velocidade pela rua representa um perigo real e imediato, se quisermos um motivo para sair de seu caminho.

Enfim: sem crenças, não agimos. E se quisermos que nossas ações sejam realmente úteis e eficazes, faz sentido tentarmos, na medida do possível, baseá-las em crenças verdadeiras. Em fatos realmente reais.

Mas eis que surge um problema. Existe uma longa tradição filosófica, que vem pelo menos desde a Grécia antiga, que diz que, ora bolas, não sabemos quais fatos são esses. Que o melhor que podemos fazer é obter vagas impressões da realidade, tal como geradas por nossos sentidos, interpretadas por nossas mentes e articuladas dentro dos limites de nossa linguagem.

Como nem os sentidos e nem as mentes são perfeitos, e a linguagem é essa confusão de mal-entendidos que temos de navegar no dia-a-dia, como podemos realmente saber o que corresponde aos fatos? Temos a tendência de achar que ilusões e alucinações são coisas que só acontecem com doentes mentais ou mocinhas de filmes de terror, mas não é verdade: somos iludidos, por exemplo, toda vez que vamos ao cinema, assistimos a um show de mágica, confundimos um poste, visto ao longe, com uma pessoa parada na calçada.

O reconhecimento de que nossos sentidos e pensamentos podem nos enganar traz embutido, no entanto, uma semente de otimismo: o fato de que somos capazes de distinguir realidade de ilusão. Porque, se somos capazes de saber que ilusões existem, é porque há de haver algum mecanismo que nos permite separá-las do que é real.

Se o vulto ao longe parece um homem parado, podemos nos aproximar dele e, chegando mais perto, ver que, na verdade, é um poste. Se uma mulher que mora sozinha e que não tem filhos ouve uma criança chorar no quarto de seu apartamento, ela pode se convencer de que mora num lugar mal-assombrado ou ir ao quarto e ver que esqueceu o rádio ligado num programa sobre pediatria.

E assim por diante. Esse processo – de chegar mais perto, de ir até lá e conferir, checar e medir, vem sendo refinado há milhares de anos. Seu estágio mais desenvolvido e avançado é o que chamamos de método científico. É ele que produz as verdades da ciência.

Um problema desse processo, no entanto, é que ele é lento, trabalhoso e artificial. Você não vai fazer uma análise clínica da comida do restaurante para ter certeza de que ela não está envenenada; você não vai calcular os vetores de velocidade e aceleração do carro antes de decidir em quantos graus girar a direção para fazer a curva com segurança.

Outro problema é que ele é, ao menos idealmente, neutro e aberto: quando a pesquisa científica começa, não existe uma resposta predeterminada. A necessidade humana de acreditar é suplementada por um desejo humano de que as crenças formadas sejam agradáveis – ninguém, afinal, gosta de receber más notícias. Mas esse é um desejo que a ciência não tem compromisso algum em satisfazer.

No entanto, muito antes da ciência dar seus primeiros passos, nossa espécie havia evoluído atalhos intuitivos que todos usamos quando precisamos formar crenças e não temos o tempo, a disposição, os meios ou a energia de realizar uma investigação adequada.

Um desses atalhos é a confiança na autoridade: nós acreditamos quando o médico nos receita um remédio, como também acreditamos quando o policial nos diz que a rua que estamos procurando é a segunda à direita.

E esse é talvez o primeiro atalho que descobrimos. A criança, afinal, aprende rapidamente a confiar na autoridade dos pais. Rebeldias da adolescência à parte, o bebê nasce, de certa forma, programado para confiar nas pessoas que irão vesti-lo e alimentá-lo. E a programação torna-se hábito, e o hábito traz segurança. Nada é mais confortável do que saber que podemos acreditar em quem nos ama e cuida de nós.

É dessa confluência – do desejo visceral de que a verdade seja boa, do instinto que leva a confiar na autoridade que ama e alimenta, da busca por segurança – que nasce a fé.

O filósofo Friedrich Nietzsche tem um ótimo aforismo a respeito: a verdade e a fé de que alguma coisa é verdade são dois reinos completamente separados. A fé sustenta uma concepção do que a verdade deveria ser. A ciência busca o que a verdade é. Nietzsche completa o raciocínio dizendo que ter fé significa não querer saber a verdade.

Eu, pessoalmente, não iria tão longe. É preciso notar que, embora fé e ciência tenham métodos diferentes, não há nenhuma razão fundamental para que suas conclusões não convirjam. A ciência poderia ter revelado uma verdade compatível com as expectativas da fé.

O fato de isso não ter acontecido – o fato de a Terra não ser o centro do Universo, por exemplo – serviu de estímulo para uma transformação na fé: ela passou a proclamar expectativas de verdade cada vez mais remotas em relação à esfera da investigação científica.

Ao mesmo tempo, muitas pessoas optaram por esvaziar suas crenças baseadas na fé de qualquer conteúdo empírico, prático: essas crenças passaram a ter impacto apenas residual em seus comportamentos, mas preservaram seu poder emocional de trazer conforto, consolo e segurança.

Essa estratégia de acomodação já foi definida, pelo paleontólogo Stephen Jay Gould, como a tese dos “ministérios são sobrepostos”, segundo a qual fé e ciência teriam esferas de influência independentes.

Trata-se de um plano que funciona, mas apenas até certo ponto. Do ponto de vista prático, ele permite que cientistas como Francis Collins, um dos líderes do projeto genoma humano, também encarem a si mesmos como cristãos, por exemplo.

Mas também é um plano fundamentalmente limitado: porque não é possível manter uma crença que não afete absolutamente nenhum comportamento. Afinal, se ela não se manifesta em comportamentos, como saber se realmente existe? Nesse aspecto, os religiosos mais conservadores têm razão em criticar seus colegas “não praticantes”.

Além disso, muitos dos comportamentos influenciados pela fé têm impacto social: eles geralmente dizem respeito à esfera da ética, que afeta a política, por exemplo, em questões como a do aborto e a da união homossexual. E em várias dessas questões, a sobreposição entre os domínios da fé e da ciência torna-se inevitável.

Quando isso acontece, é importante lembrar que a ciência, falível e complexa como é, ao menos se baseia num desejo sincero de conhecer os fatos. Já a fé vem de uma mistura do desejo de que os fatos sejam como gostaríamos que fossem e do apelo, às vezes reconfortante, às vezes cheio de medo e horror, à palavra da tradição e da autoridade.

A escolha, portanto, não se torna menos certa, apenas porque pode ser dolorosa.

Carlos Orsi

Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.