Cinco grandes autores escrevem textos primorosos sobre o Brasil de 1808 a 1830
por Daniel Lopes
Essa série de cinco livros que a editora Objetiva começa agora a pôr nas livrarias faz parte de um projeto mais amplo da espanhola Fundación Mapfre, que já cobriu a história de diversos outros países americanos.
A narrativa da história da nação brasileira vai desde o ano em que d. João VI foi obrigado por Napoleão a fazer-se ausente de Portugal até o ano em que Lula da Silva elegeu Dilma Rousseff. A julgar pelo primeiro volume, com cerca de 240 páginas de texto, não será uma série de livros longos. Mas antes que se pense que, com isso, não teremos uma série profunda, observe o time de colaboradores reunidos por Alberto da Costa e Silva. Lilia Moritz Schwarcz (também diretora geral do projeto), Jorge Caldeira, Rubens Ricupero e Lúcia das Neves, além do próprio Alberto, escrevem cada um artigo sobre uma faceta diferente do período 1808-1830.
Os artigos são todos de alto nível intelectual, e acessíveis porque primorosamente escritos. Os textos não são meramente descritivos, e os autores por diversas vezes se permitem opinar sobre eventos e personagens, o que por vezes gera interessantes contrastes. Como quando Rubens Ricupero tem de José da Silva Lisboa – baiano estudado em Portugal e que, bem ou mal, divulgou as ideias de Adam Smith no Brasil, sendo ainda o responsável pelo tanto de liberalismo econômico que apareceu na abertura dos portos brasileiros às “nações amigas” – um juízo bem mais positivo que o de Jorge Caldeira, que julga Silva Lisboa como apenas um liberal de fachada. O autor de Princípios da economia política (1804), escreve Caldeira, logra “a proeza de fabricar uma defesa econômica do absolutismo numa obra que se apresentava como peça de divulgação do liberalismo de Adam Smith…”, vendo como “errônea” a noção do indivíduo como principal agente da economia e concedendo ao líder soberano o papel de verdadeiro ator. Jamais tendo lido o trabalho do senhor Silva Lisboa, digo apenas que a análise crítica feita por Jorge Caldeira é bem convincente.
No geral, porém, a colaboração de Rubens Ricupero – “O Brasil no Mundo” – sobre a carta de Abertura dos Portos é bem esclarecedora. Ao contrário do que comumente se julga, a ação de d. João VI em 1808 não foi movida principalmente pelo interesse em agradar aos britânicos após a proteção que estes deram à fuga da família real. Se algo, o que esse tipo de quebra do monopólio português no comércio com o Brasil fez foi desagradar – ou pelo menos não agradar muito – os britânicos, já que os portos foram abertos a todos os países em paz com os Bragança que tivessem condições de aproveitar tal abertura, sem privilégios aos britânicos. Tanto que, quando d. João, no Rio de Janeiro, perguntou a um representante do país europeu como ele se sentia com a abertura, teve como resposta que a ação “não podia deixar de causar bom efeito na Inglaterra, mas necessariamente produziria satisfação ainda maior se tivesse sido autorizada a admissão de navios e manufaturas britânicas em condições mais vantajosas que as concedidas aos navios e mercadorias de outras nações.”
O tratamento preferencial aos britânicos não advém da carta régia de 1808, mas de três tratados – começando com o Tratado de Comércio e Navegação – e um punhado de artigos secretos de 1810, que geraram privilégios através dos quais os portugueses pagavam o suporte britânico que garantiu sua proteção e retirada da Europa. Isso claramente ia contra os interesses da futura nação brasileira, mas até aí, como lembra Ricupero, o que havia era uma política externa no Brasil, e não do Brasil, que “nunca deixará de ser uma diplomacia formulada e executada por ministros portugueses com vistas aos interesses lusitanos e da dinastia de Bragança.” Tão logo Napoleão fosse esculachado, raciocinavam, a Europa voltaria a ser o centro de tudo, e a América, apenas a América. Pensando como um Bragança, isso faz completo sentido – e a situação não parece tão esdrúxula quanto a do futuro suposto líder da Independência com a cabeça na Península Ibérica.
Ainda no artigo de Ricupero, é interessante notar sua aberta simpatia por José Bonifácio, articulador de destaque da independência brasileira. Isso é moralmente justificado (Bonifácio viu antes de quase todo mundo nestas bandas a desgraça que era a escravidão – inclusive para o futuro desenvolvimento econômico do Brasil, ou falta dele; na questão da escravidão, Jorge Caldeira o vê como um pensador superior a Thomas Jefferson), mas há também uma identidade intelectual maior entre Bonifácio e Ricupero, diplomata que foi secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento. “O voluntarismo que distinguia a forte personalidade do Patriarca”, escreve Ricupero, “fez dele um dos raros que abordam nessa época as negociações com os ingleses sem insegurança, nem sentimento de inferioridade.”
Em breve Bonifácio seria sacado do governo por d. Pedro I, preso e em seguida exilado. Ricupero, após passar por diversas embaixadas, servir Tancredo e Sarney e dirigir um órgão da ONU, foi para o Instituto Rio Branco, onde atualmente leciona para nossos futuros diplomatas. O nosso não é o pior dos tempos.
A historiografia mais divulgada do primeiro terço do século 19 no Brasil costuma se deter sobre questões estritamente sociais e políticas. Isso é compreensível – com a chegada da família real ao Rio, começa-se a criar as instituições que ajudariam a fazer deste pedaço de terra uma nação, e com os portugueses de sangue azul vieram reformas e costumes, e logo teríamos o 7 de Setembro, e logo a evasão de Pedro I para Portugal. O maior mérito deste volume coordenado por Alberto da Costa e Silva, eu diria, é trazer para o primeiro plano as questões econômicas e de política externa, abordadas respectivamente, como vimos acima, por Jorge Caldeira e Rubens Ricupero. Mas o sócio-político obviamente não poderia faltar. O próprio Alberto abre o volume com um texto dando uma visão geral da população e da sociedade da época. Lilia Schwarcz explora a questão cultural, em artigo que fecha o livro.
Lúcia Bastos Pereira das Neves escreve sobre a política, por assim dizer, partidária – se não em termos de partidos políticos, em termos de facções ideológicas (como Joaquim Nabuco no futuro se referiria ao “partido abolicionista”) e grupos econômicos com peso em algumas dessas facções. No artigo, fica otimamente representado o jogo político e o dilema que envolveu d. João, primeiro, e depois Pedro I, jogo jogado nos dois lados do Atlântico pelas duas partes mais relevantes do Reino Unido de Portugal e do Brasil e Algarves.
Os súditos na Europa não se conformavam com o fato da Coroa criar raízes cada vez mais profundas no Brasil, não obstante Napoleão ter sido derrotado em Waterloo e o caminho de volta estar reaberto. Depois, com d. João enfim de volta a Portugal, os súditos na América temiam ver o Brasil regredir ao papel secundário do período anterior à invasão napoleônica. Com Pedro I dando as rédeas no Brasil, cada vez menos habitantes do país viam sentido em sequer manter uma ligação umbilical com Portugal.
Daí a Independência. O problema é que Pedro I jamais tirou a cabeça completamente de Portugal e dos interesses da casa de Bragança, especialmente após a morte do pai em 1826. Razão pela qual o 7 de Setembro (data aliás irrelevante para os contemporâneos) não acalmaria completamente os ânimos. Lúcia das Neves narra os pormenores dessas batalhas político-identitárias com maestria, bem como a forma com que, no pós-22, e descontadas as nuances, construiu-se uma oposição entre defensores (geralmente portugueses) de um poder executivo autoritário e centralizador e os defensores (geralmente brasileiros) do federalismo e de uma monarquia efetivamente constitucional – republicanos, não havia muitos de destaque à época.
O artigo carece, no entanto, de dar a verdadeira dimensão do quanto o Brasil continuou pagando as contas de Portugal após a Independência. Isso aparece brevemente no artigo de Ricupero, mas é aqui, no texto de Lúcias das Neves, e mais bem explorado, que esse ponto deveria estar presente. Ele é certamente indispensável para se compreender até que grau Pedro I continuou com o país de seus ancestrais no topo de prioridades, governando o Brasil apenas como quem ainda não possui algo de mais importante para fazer.
Portugal reconheceu a independência da ex-colônia em 1825. Quando José Bonifácio, do exílio francês, comentou que “temos Independência reconhecida, bem que a soberania nacional recebeu um coice na boca do estômago”, ele, a exemplo de quase todos, não sabia da cláusula secreta segundo a qual, entre outros deveres, o Brasil assumiria a dívida de 1,4 milhão de libras esterlinas que Portugal adquirira junto à Inglaterra em 1823 – para lutar contra a independência brasileira! Quem quiser se inteirar dessa e de outras questões correlatas poderá recorrer à boa biografia de Pedro I escrita pela cearense Isabel Lustosa. Por que “nosso” imperador aceitou facilmente imposições tão descabidos? Isabel explica: “O tratado [de reconhecimento do Brasil] nada estabelecia acerca da sucessão ao trono de Portugal. Como a Constituição [brasileira] outorgada em 1824 também não incluía nenhum dispositivo vedando ao imperador aceitar outra Coroa, tudo levava a crer que d. Pedro não desistira por completo de suceder a d. João.” Independência ou Morte, realmente.
Como a professora Isabel consegue ver o primeiro Pedro como “o personagem mais fascinante da história do Brasil”, eu não sei. Em uma disputa acirrada, o dístico cairia melhor em seu pai, por ser mais sincero. Certamente cairia muito melhor em seu filho. Pedro II foi um personagem interessantíssimo. Em termos de monarcas mundiais do século 19, poderíamos ter tido coisa pior – que tal um russo? Brasileiro da gema, conhecedor do Brasil, viajante entusiasmado, não teve muito talento para o autoritarismo. Suas realizações, em termos de infraestrutura e instituições, podem não ter sido das mais impressionantes, mas o debate de ideias e projetos de País que ocorreu na segunda metade do século foi certamente resultado de seu respeito pela liberdade de imprensa – ele acreditava que os jornais lhe davam informações mais realistas do Brasil do que as repassadas por seus ministros. Alguns estrangeiros, de passagem por aqui durante seu reinado, observaram o fato curioso de uma monarquia com mais liberdade para a circulação de ideias do que muitas das repúblicas vizinhas. No fronte externo, insistiu com os aliados que a Guerra do Paraguai tinha que ter como desfecho a invasão daquele país e a derrubada de seu caudilho, prevendo, provavelmente com razão, que a simples expulsão dos paraguaios do Mato Grosso, com a permanência do caudilho no poder, seria mera preparação de terreno para complicações futuras.
Mas me adianto. D. Pedro II e o período do Segundo Reinado são temas do segundo volume do projeto dirigido por Lilia Schwarcz, a sair em 2012. Como o nível dos colaboradores deve se manter, eu mal posso esperar para começar a leitura.
::: Crise colonial e Independência (1808-1830) ::: Alberto da Costa e Silva (coord.) :::
::: Fundación Mapfre/Objetiva, 2011, 280 páginas, ilustrado :::
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Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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