Filosofia

Como Terry Eagleton debate Deus e os “novos ateus”

por Carlos Orsi (09/10/2011)

O que o autor propõe é que não importa se um conjunto de ideias é verdadeiro, contanto que seja útil

por Carlos Orsi

-- "O debate sobre Deus: Razão, fé e revolução", de Terry Eagleton --

 

Terry Eagleton é um daqueles intelectuais de esquerda convencidos de que uma demonstração efusiva de bons sentimentos e boas intenções — sob a forma de uma profunda indignação moral para com as desigualdades do mundo e de um sincero voto de amor pelos oprimidos — basta para eximi-los por completo de certas tarefas inconvenientes, como a de ter de apresentar um argumento honesto.

Seu livro O debate sobre Deus é um longo vitupério contra Richard Dawkins e Christopher Hitchens por, até onde fui capaz de depreender, não terem notado que a Bíblia (mais especificamente, o Novo Testamento) pode ser interpretada de forma a legitimar, animar e estimular o engajamento em causas esquerdistas: Cristo pode ser visto como um guerrilheiro hippie; o celibato dos “eunucos por amor do Reino” (Mateus, 19:12) é a abstinência sexual dos guerrilheiros que vão lutar contra o capitalismo nas selvas; e o pecado, tal como definido por Tomás de Aquino, pode ser entendido, entre outras coisas, como “consumismo”.

Quem iria imaginar que a ganância capitalista era um problema para os jovens do século 13… Eu imaginava que a maior ameaça fossem mesmo as Cruzadas.

Um crítico com viés ideológico diverso poderia dizer que o que Eagleton chama de “interpretada” na verdade significa “manipulada” ou “distorcida”, mas todos nós sabemos que esses direitistas neoliberais colonialistas, como o Papa, por exemplo, são uns filhos da mãe indignos de crédito e que não sabem mesmo do que estão falando, certo? Afinal, por que a exegese oficial de Roma, formulada ao longo de 2.000 anos de tradição, deveria ser levada mais a sério que a de um marxista britânico professor de literatura?

Enfim. Por conta disso, os autores de Deus, um delírio e Deus não é grande estariam causando um grande mal à causa da emancipação humana e da luta contra o capitalismo, ao jogar fora a criança ideológica junto com a água do banho mitológica, por assim dizer.

Essa conclusão, tão simples quanto revoltante (explicarei o “revoltante” mais à frente), não é, porém, apresentada de modo claro. Em vez disso, é longamente esticada por 150 excruciantes páginas (em termos absolutos, não se trata de um livro longo, e a tipologia da edição nacional é bem agradável, mas a leitura é penosa o bastante para dar a impressão de estarmos diante de tomos e tomos preenchidos por seguidas colunas da letra mais miúda).

A apresentação é entremeada por ironias sofríveis, tentativas de humor constrangedoras e afirmações contundentes, apresentadas sem argumento, da relevância suprema do marxismo e da arrogância ocidental pequeno-burguesa na compreensão, pela ordem, do fenômeno religioso e da mente perversa de “Ditchkins” — misto de nome-piada e trocadilho criado por Eagleton para se referir, simultaneamente, a Dawkins e Hitchens. Os principais oráculos de Eagleton são Karl Marx e o apóstolo Paulo.

Abre parêntese. A escolha de Paulo como heroi teológico dos oprimidos é especialmente divertida, já que o capítulo 13 da Carta aos Romanos tem sido usado, historicamente, para defender a submissão dos cristãos à tirania (“Cada qual seja submisso às autoridades constituídas, porque não há autoridade que não venha de Deus; as que existem foram instituídas por Deus”). Já no capítulo 7 de I Coríntios, o apóstolo exorta os escravos convertidos ao cristianismo a desistir de buscar a liberdade porque, afinal, já estão “livres em Cristo”. Fecha parêntese.

Em meio a sua peroração desconexa, Eagleton encontra tempo para descabelar-se em justa ira contra o fato de o demônio “Ditchkins” não se lançar ao combate contra os dragões cuspidores de fogo do capitalismo, da globalização e do imperialismo-colonialismo, que são, ora bolas, os verdadeiros opressores da humanidade (na opinião dele); e para acusar Hitchens e Dawkins de falta de sutileza filosófica e de conhecimento teológico. O “Deus dos teólogos”, ri-se Eagleton, não tem nada a ver com a caricatura grosseira que os “novos ateus” tanto atacam.

Essa é uma crítica tão recorrente que, à moda de Goebbels, já começa a ser levada a sério até mesmo entre pessoas que deveriam estar mais bem informadas. Por isso, peço licença para me deter um pouco nela.

Vejamos como Eagleton define esse “Deus dos teólogos”. Esse Deus é “absoluta e gloriosamente inútil”; é a “condição e possibilidade de toda e qualquer entidade, não sendo ele próprio uma entidade”; se o mundo é o melhor que Deus pode fazer, sentencia nosso pio autor, “seu talento, cá entre nós, deixa muito a desejar”. Por fim, Eagleton considera simplória e risível a presunção de que “ter fé neste Deus significa acima de tudo aderir à proposta de que ele existe”.

Bem, se “ter fé em Deus” agora não significa mais “aderir à proposta de que ele existe”, alguém precisa urgentemente contar a novidade à minha mui devota tia Hilda, à bancada evangélica no Congresso e ao papa Bento XVI.

-- O autor --

Eagleton se lança, perto do fim do livro, num longo devaneio semântico sobre a palavra “fé”. Fé, diz ele, é melhor compreendida como “fé em”, e não “fé que”. Em outras palavras, a formulação da “verdadeira religião” (em oposição, digamos, à religião tal como praticada por dois bilhões de cristãos) é a de expressar “fé em Deus”, no sentido de ter confiança, esperança, e não “fé que Deus (existe)”. A ginástica mental necessária para não ver a “fé que” como pré-requisito para a “fé em” fica por conta do leitor.

Ele tenta se safar da contradição definindo fé como um “conjunto de compromissos”, e dá como exemplo a frase “fé numa sociedade livre de racismo”. Mas isso é apenas um jogo de palavras: se “Deus” é um conjunto de aspirações e compromissos, que aspirações e compromissos são esses? O de matar até o último herege e converter até o último infiel, ou o de construir uma sociedade justa e solidária? Que cada um escolha seu sabor.

O que todas as críticas à “falta de sofisticação” do novo ateísmo falham em captar é que as baterias de gente como Hitchens e Dawkins estão voltadas primariamente contra os efeitos sociais nefastos da religião, e que esses efeitos são produzidos pela concepção de Deus das massas, não pelas ideias de meia dúzia de teólogos que passam a vida contemplando lindos vitrais da Idade Média e o próprio umbigo (ou os umbigos de suas amantes, como no caso de Paul Tillich). Ideias estas que, uma vez removidos os cobertores e edredons de retórica obscura e sentimentalista em que costumam vir acolchoadas, são indistinguíveis do agnosticismo ou, até, do mais radical ateísmo. Eu mesmo já tratei desse assunto, aliás, em outro artigo. Como o próprio Dawkins escreve na introdução da edição paperback de Deus, um delírio, “se essa religião nuançada e sutil predominasse, o mundo certamente seria um lugar melhor, e eu teria escrito um livro diferente”.

Ao longo de O debate sobre Deus, fica mais ou menos claro que Eagleton é, se não em termos emocionais e psicológicos, ao menos na prática um ateu tão convicto quanto os dois autores que ataca. Ele se refere seguidas vezes às narrativas sagradas do cristianismo como “mitologia”, e quando se refere a Deus parece sempre estar falando de um juízo estético ou de um sentimento. E aqui chegamos ao ponto do “revoltante” que soltei lá no início do artigo. Eagleton passa os primeiros 25% do livro, mais ou menos, construindo uma “teologia dos oprimidos”: Jesus era um guerrilheiro; os “eunucos do Reino” são herois de la revolución; a noção de pecado de Tomás de Aquino pode ser aplicada, sem problemas, à sanha de consumo contemporânea.

Depois de construir esse edifício de retórica bamboleante, o autor sentencia: “Não necessariamente eu proponho [essa teologia] como verdade, pela excelente razão de que pode muito bem não ser. Pode não ser mais plausível do que a fada dos dentes”. “Mas embora o relato possa não ser verdadeiro”, prossegue o melífluo autor, “talvez sirva como uma alegoria da nossa condição política e histórica (…) qualquer um que se apegue a ela, a meu ver, merece respeito”.

Eagleton propõe, trocando em miúdos, que não importa se um sistema ou conjunto de ideias é verdadeiro, contanto que seja útil. E a utilidade, claro, é medida de acordo com a conveniência ideológica do autor. Desprezar as categorias de verdade e mentira em nome da utilidade é o que o filósofo Harry Frankfurt definiu como bullshit, num ensaio traduzido no Brasil com o título Sobre falar merda. De acordo com O debate sobre Deus, religião e Deus podem até ser merda, mas se essa merda nos permite manipular as pessoas de acordo com a ideologia que abraçamos, não devemos ousar desrespeitá-la. A direita cristã provavelmente tem a mesma opinião, apenas com o sinal ideológico trocado.

O que o projeto racionalista de “Ditchkins” oferece, em contrapartida, é o desafio de tentar estabelecer um mundo onde as merdas sejam expostas pelo que são, onde as ferramentas da desonestidade intelectual e da manipulação mitológica não sejam tratadas com respeito ancestral apenas porque o nosso Partido pode precisar delas um dia.

Ah, sim: além da polêmica direta contra Dawkins e Hitchens, O debate sobre Deus traz algumas platitudes sobre o papel do imperialismo ocidental na formação do radicalismo islâmico, algumas críticas um tanto quanto pueris à razão (“a ciência vive em contradição consigo mesma o tempo todo, o que é conhecido como progresso científico”) e um longo elogio do marxismo como algo que, assim como a religião, promove uma união entre “civilização e cultura” (o que o autor parece achar bom), e de Marx como alguém que soube unir o romantismo ao iluminismo.

O livro é formado por uma série de conferências apresentada pelo autor na Universidade de Yale, nos EUA, em abril de 2008.

::: O debate sobre Deus: Razão, fé e revolução ::: Terry Eagleton (trad. Regina Lyra) :::
::: Nova Fronteira, 2011, 232 páginas :::
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Carlos Orsi

Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.