por Bruno Cava
“O paradoxo é muito mais interessante que a ironia, que pode ser simplesmente uma fuga, um modo de escapar da responsabilidade. Homossexualidade é nela mesma um estado paradoxal de ser, no meu modo de ver. Esse paradoxo é mais existencial e permite a você acessar a absurdidade da vida.”
– Bruce LaBruce, cineasta do queercore, nessa entrevista (pdf)
“Nós demos tanto ao mundo: a democracia, todas as artes, os conceitos de amor, filosofia e de alma, apenas para citar alguns presentes de nossos velhos ‘viados’ e ‘sapatões’.”
– ‘Queers Read This’, panfleto distribuído em Nova Iorque, 1990
O movimento mudou bastante desde que os gays saíram em massa do armário, formaram comitês, se candidataram a cargos políticos e organizaram passeatas pelo mundo, nos anos 1960. As marchas da afirmação gay reúnem milhões de pessoas. Num processo gradual, a aceitação social ganhou as metrópoles e se alastrou às cidades médias e pequenas e ao interior recatado. O casamento e a adoção não são mais tabu, e se disseminam até nos países mais conservadores do planeta, como o Brasil. Aqui, já existem gays mais ou menos assumidos no parlamento, no poder executivo, nos tribunais, nas forças armadas. Veiculam-se cartilhas antihomofóbicas nas escolas. Declara-se com orgulho que “o Rio de Janeiro é gay”. Todo mundo tem — e a maioria se compraz de ter — não um, mas vários amigos e parentes gays. Enquanto isso, se consolidou todo um mercado particular de filmes, livros, roupas, bares, boates, motéis, academias, videolocadoras, produtos de beleza, pet shops, revistas para gays.
A luta continua, ainda há muito a conquistar-se, mas é difícil não sentir que as coisas parecem estar melhorando. Para melhorar mais, indispensável a autocrítica. Mas se deve distinguir: há uma crítica à direita e à esquerda ao movimento gay. A primeira deve ser combatida sem dó. A segunda, desenvolvida.
À direita, o argumento de que a opressão aos gays não é digna de receber atenção especial. Que, como a lei é igual pra todos, eles não possam ser reconhecidos como minoria, como sujeito político, com políticas públicas e demandas coletivas direcionadas. Que os heterossexuais viraram minoria e também merecem um movimento, um feriado. Que já estão exagerando, tudo bem os gays sejam aceitos, mas apologia já é demais.
Que, no fundo, os gays têm a sua parcela de culpa por seus problemas. Porque são mesmo um pouco abusados, quiçá ofensivos, alguns querem tirar vantagem, outros adoram se exibir e provocar, perturbando a ordem pública. Que, num país verdadeiramente democrático, deve haver o direito de ser homofóbico (e sexista e racista).
Mais que individual, esse preconceito está no ar, como um gás invisível, todavia pronto a ganhar consistência nas situações mais previsíveis e imprevisíveis. Parte disso aparece na grande imprensa, através de colunistas e âncoras teleguiados por uma linha editorial conservadora. Parte, pelo stand-up-preconceito, que vem prestando um desserviço ao politicamente incorreto. Pros jovens e descolados humoristas, destilar o ódio e escárnio contra minorias virou não só um direito, mas um selo de rebeldia. E também não podemos esquecer os fascistas, sempre sinceros, que usam contra os gays o mais dolorido dos argumentos: a porrada. Tudo isso é inaceitável e deve ser enfrentado: argumento com argumento, violência com violência.
Por outro lado, distinta, existe a crítica de esquerda. Essa crítica é delicada, quase um tabu de meios de esquerda. Criticar o fechamento de certos movimentos, seus métodos e discursos. Que tenta ir por dentro e mais além dos movimentos gays. Reconhece a sua história, mas pretende radicalizá-lo, torná-lo mais agudo e mais potente. Porque muitos grupos se fecham sobre si mesmos, numa identidade coesa e segura. Guiados por essa identidade, uma espécie de significante mestre, tendem a impermeabilizar o discurso e dificultar a articulação política, o empoderamento conjunto com outros movimentos, de outros tipos. Surge uma nova Grande Narrativa, que subordina todas as pautas e todas as lutas. São grupos LGBT que não compartilham com forasteiros — mesmo com cultura de esquerda (ou sobretudo eles). Que se vêem cercados por todos os lados por lobos em pele de cordeiro, num sectarismo matizado pela sexualidade. A desconfiança se generaliza e vira estado policial.
Critica-se, portanto, o fato de o movimento ser identitário. Isso mais enfraquece do que fortalece. Segrega onde deveria coordenar a luta. Nem se expande nem se aprofunda: engessa-se, dogmatiza-se, sectariza-se, circula eternamente ao redor de uma identidade mistificada. Daí ser necessário desestabilizar categorias muito delineadas, comportamentos gays esperados. De que adianta lutar contra a norma heterossexual e hetero-fascista, se o movimento acaba reinventando-a como norma homossexual? Reinstala-se uma nova opressão: é o gay enquadrado e com família de comercial de margarina e com 33 anos do mesmo jeito com a boca escancarada de dentes esperando a morte chegar. Que chega a nutrir preconceito contra as bichas loucas e os travestis. É a lésbica que não admite que outra mulher fique de quatro numa relação sexual. É o meio profissional de cabeleireiros ou estilistas, que conformam uma normatividade igualmente coagida.
Vem o movimento queer e afirma que ser homossexual já está capturado na heteronormatividade. Homossexual, bissexual, lésbica ou gay, isso por si só não é suficiente. É preciso escapar da divisão binária homem/mulher ou hetero-homo. Desistir de pretender definir-se pela negação do outro, pela imagem que o outro faz do que você (não) é. Porque isso já é definir-se por meio do normal, na medida de sua exclusão. Por isso, LGBT é muito pouco. Nem todas as letras do alfabeto poderiam cobrir a sexualidade humana. Ela é polimorficamente perversa e a culpa não tem vigência. O queer não quer se casar e adotar filhos pra ter uma família aburguesada e banal. Ele realmente não vai criar os filhos como um casal heterossexual normal e essa é a sua maior qualidade! Recusa a própria idéia de uma normalidade, de uma saúde mental, e também não cai no papai-mamãe-filhinho da psicanálise freudiana.
A sensibilidade queer está bem representada no pós-estruturalismo linguístico, na antropologia diferencial, na desconstrução, em Deleuze e Lacan. Está na vanguarda de uma luta que politiza o desejo. Sua ontologia da diferença incide imediatamente em movimentos feministas, nas lutas raciais, na questão dos imigrantes e da Palestina. Transcende as etiquetas e expectativas, implica uma microfísica do poder, desestabiliza as narrativas botininhas do governo, da psiquiatria, da própria esquerda. Mas não quer se fazer invisível, como se não existissem alegres em sua gaia ciência. E sim saturar as relações de múltiplas formas de vida, por uma maneira menos ordinária de viver a liberdade. É tornar visível e principalmente vivenciável o universo de amor, desejo e prazer que constitui o ser humano nas suas várias camadas. Uma política queer pode realmente perturbar o sistema político-econômico dominante, de encontro à mercantilização de segmentos sociais, sua imagem publicitária e seu desejo pré-fabricado. O queer é revolucionário.
Aí a crítica da crítica acusa-o de quinta-coluna. Atrapalha e confunde os gays em movimento. Seu jargão pós-moderno importado do jet set intelectual dissolve a unidade da luta. Como assim, não afirmar uma identidade? Isso é tudo o que eles querem e o que eles têm, não pode ser outra a via da libertação para os gays comuns. Sem identidade, e uma união cimentada pela afirmação e orgulho coletivos, não se é nada enquanto força política. Quanto menos num mundo hostil aos párias. O queer comete um erro tático ante ao cerco nunca afrouxado contra o mundo gay.
É possível dar ainda mais uma volta no parafuso. Através do queerpunk. Primeiro vocalizado pela fanzine J.D. (1985-91), o queerpunk começa com a palavra-de-ordem politicamente incorreta “Não seja gay!”. Vem para provocar os gays e os punks, cujos movimentos estavam se institucionalizando na segunda metade dos anos 1980. Os primeiros, lhes criticam o apaziguamento da revolta, a conformação na nova norma, na cultura dominante, no capitalismo. Os segundos, cobram deles mais foco que o anarquismo fácil e o excesso de testosterona. Nos anos 1990, baseados no Canadá, São Francisco e Londres, fazem eles mesmos, lançando zines, canções, álbuns, filmes e BBS. Polemizam diretamente com a ortodoxia gay e lésbica, sem concessões ao consenso. Do queer, se apropriam da paródia e da desconstrução, da filosofia da diferença. Do punk, do inconformismo antissistema.
Num dos filmes-conceito do queerpunk, um skinhead gay se masturba e ejacula sobre o Mein Kampf. Noutro, o o protagonista é um zumbi gay, entre angústias existenciais e orgias sexuais. O diretor Bruce LaBruce (7 longas, entre 1993 a 2008) toma por referências o cinema underground de Kenneth Anger, e queer de John Waters e Andy Warhol, para forjar a poética queercore. Enfant terrible do movimento, Bruce cruza todas as fronteiras do bom tom e do politicamente correto. Sem renunciar ao estilo autoral e recheado de referências da história do cinema, filma o sexo explícito com skinheads gays, travestis acadêmicos e lésbicas fascistas.
O amálgama do queerpunk podem servir de tônico ao movimento gay, que por todo lado precisa ser estimulado a radicalizar e não perder a verve contestadora. Contra fechamentos identitários e a domestição, é manter a roda girando para conquistar muito mais do que ser como os outros, em ser normalmente medíocre. Fique claro: não é que haja gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, transgêneros etc, e então mais uma legenda, o queer. Que se esteja propondo um novo rótulo, mais modernoso e descolado. O queer qualifica todos esses subgrupos, atravessa-os em diagonal para ir além e mais fundo. Associado ao rebu do punk, atravessa de coração inflamado, com vontade e raiva, sem perder de vista a transformação social.
Todas as criaturas de esquerda temos a aprender com o queerpunk.
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