De Cabral a Simonal
por Gustavo Alonso*
Era sábado, 25 de agosto de 1969. Wilson Simonal de Castro estava escalado para a abertura do show de Sérgio Mendes no Maracanãzinho. Grande responsável pela divulgação da bossa-nova no exterior, Sérgio Mendes era o artista brasileiro com maior sucesso internacional na época. Não obstante, tinha opositores no meio musical: muitos o acusavam de mostrar um Brasil “para inglês ver”. Mas o fato é que naquele dia havia 30 mil pessoas prontas para constatar a força do artista que lançara cinco LPs nos Estados Unidos, colocando-os entre os cinquenta discos mais vendidos daquele país.
Não era, entretanto, o dia do niteroiense Sérgio Mendes.
O show fora organizado nos mínimos detalhes pela patrocinadora do evento, a multinacional Shell. Usualmente palco de grandes eventos como o Festival Internacional da Canção, o Maracanãzinho havia se preparado de forma condizente com a importância do convidado. Além de Simonal, a Shell contratou para aquela noite alguns dos artistas mais famosos da época, entre eles Gal Costa, Maysa, Os Mutantes, Jorge Ben, Marcos Valle, Milton Nascimento, Peri Ribeiro, Gracinha Leporace e o conjunto Som Três.
Mas, passados alguns anos, ninguém se lembraria deles e, mesmo assim, o que aconteceu naquele dia ficaria marcado na memória de muitos.
Simonal subiu ao palco e fez a mesma apresentação que realizou durante uma temporada no teatro Tonelero, em Copacabana. O show tinha um pretensioso nome: De Cabral a Simonal. Acompanhado do conjunto Som Três e dos metais “com champignon”, uma gíria sua para dizer que o grupo tinha muito suingue, Simonal cantou sucessos da Pilantragem, novas canções, conversou e brincou com a plateia. Muito famoso na época , ele já havia sido apresentador de dois programas: o Spotlight, na TV Tupi, e o Show em Si… monal, na Record. Ostentava a marca de ser o primeiro cantor negro a apresentar um programa de TV na história do Brasil. Sabia muito bem lidar com o público, tinha o dom da comunicação. Queria empolgar as pessoas, fazê-las dançar, suingar. No auge da apresentação cantou um dos maiores sucessos, “Meu limão, meu limoeiro”, versão de Carlos Imperial para uma tradicional canção alemã. No meio da apresentação, e sem parar a música, Simonal pediu que um lado da plateia sustentasse uma linha melódica. Virou-se para a esquerda e pediu que as pessoas daquele lado cantassem outra variação. Depois pediu que as duas metades de 15 mil pessoas cantassem juntas e fez sobre as duas vozes outra vocal zação. O resultado agradou tanto que marcou a carreira de Simonal na memória daqueles que estavam presentes.
Depois dos aplausos, Simonal deixou o palco, logo após anunciar a grande atração da noite, o Brasil’66, grupo de Sérgio Mendes. Mas o povo continuou aplaudindo e exigindo sua volta aos gritos de “Simonal! Simonal! Simonal!”. Sérgio Mendes e seu grupo perceberam que iriam “se queimar” se Simonal não desse um bis. Nervoso e titubeante, ele chegou a desmaiar brevemente no camarim enquanto ouvia a plateia gritar seu nome. Reconduzido ao palco, continuou o jogo de popularidade dividindo a plateia em vozes: “Agora os 10 mil da direita! Agora os 10 mil do meio! Agora os 10 mil da esquerda!” Ao terminar o bis o povo continuou gritando seu nome. Mas não havia jeito. Era hora de Sergio Mendes subir ao palco do Maracanãzinho.
Mas a plateia queria mais Simonal e muitos continuaram insatisfeitos e gritando seu nome. Sob um barulho ensurdecedor, Sérgio Mendes até conseguiu conduzir o show, mas a algazarra só foi contida quando Simonal foi chamado ao palco para cantar junto com o músico. Eles cantaram juntos “Sá Marina”, sucesso do ano anterior.
Impressionada com a popularidade do cantor, a Shell resolveu contratá-lo como garoto-propaganda de seus produtos, que iam de combustíveis a formicidas. João Carlos Magaldi, gerente de marketing da empresa, ofereceu NCr$ 300 milhões durante um ano para que o cantor tivesse sua imagem vinculada à da multinacional. Assim, Simonal passou a aparecer frequentemente em comerciais de TV e ao lado dos astros da seleção brasileira de futebol em jornais e revistas. Em 1969, a Shell se tornara patrocinadora da seleção, aproveitando a crise que vivia o time do então técnico João Saldanha. A equipe de Saldanha havia se classificado com folga nas eliminatórias, mas na fase de amistosos preparatórios para a Copa sofrera algumas derrotas humilhantes em jogos considerados bobos, nos quais o time inteiro jogou mal. A Shell contratou Simonal para ajudar a vender a marca e dar um “empurrão” na seleção brasileira, tamanha a sua fama.
Não foi apenas a Shell que se impressionou com o show do Maracanãzinho. Cronistas reforçaram que aquela fora a noite de Simonal. Um deles chegou a dizer: “Sérgio Mendes, profissional cuja preocupação pelo detalhe chega a ser obsessiva, volta aos Estados Unidos depois de aprender uma dura lição: ninguém pode cantar depois Simonal. Hoje, no palco, ele come a broa e toma o leite dos outros. Até mesmo de Sérgio Mendes.”
De fato, ele roubara a cena. Quem ainda se lembra de alguns de seus sucessos nas décadas de 1960/1970 dificilmente se esquece daquele sábado de 1969.
Além de muito popular, Simonal era um showman reconhecido por vários artistas da época. Juca Chaves, Chacrinha e Jô Soares o consideravam o melhor cantor do Brasil. Para Maria Bethânia ele era um artista nota 10 e ela o considerava melhor do que Chico Buarque. Embora a maioria dos artistas reconhecesse seu talento, muitos criticavam as “besteiras” que ele cantou ao longo de sua carreira, especialmente as canções ligadas ao seu projeto estético, a Pilantragem. Vinicius de Moraes chegou a dizer que daria nota 10 para o cantor que ele poderia ser se não tivesse aderido à “bobagem” da Pilantragem. Roberto Carlos o considerava um dos três maiores cantores do Brasil, ao lado do “deus” daquela geração, João Gilberto. Mas o “rei” fazia ressalvas: “Simonal é muito bom, [mas] eu não estou me referindo ao gênero pilantragem não, mas ao Simonal como cantor, cantando outro tipo de música.” Essa opinião soa estranha na voz de Roberto Carlos, já que ele próprio sofreu perseguição dos puristas da música popular contrários ao iê-iê-iê brasileiro.
Nara Leão também ridicularizava a Pilantragem, mas concordava com Norma Bengell que sua voz era fenomenal: “nota 3 para a pilantragem e 5 para Simonal, pois ele é musical paca mas fica naquele negócio de meu limão meu limoeiro, não dá.”
O que todos reconheciam era que sua fama era enorme, talvez só comparável à de Roberto Carlos. A partir de 1966, ele se tornou um dos maiores vendedores de discos, disputando com o “rei” e com outros artistas recordistas de vendas, como Agnaldo Timóteo e Paulo Sérgio, o mercado nacional de compactos e long plays, os vinis da época. Embora gerasse algumas desavenças no meio artístico, Simonal era reconhecido pelo povão. Numa pesquisa realizada pelo Ibope no Rio de Janeiro em novembro de 1969, ele foi considerado o terceiro cantor mais popular do país. Ficou atrás apenas de Roberto Carlos e Agnaldo Timóteo.
* * *
No dia 24 de junho de 1967, o programa Show em Si… monal comemorava um ano de existência. Para celebrar o aniversário foi organizado um programa ao vivo no Teatro Record em São Paulo, no centro da cidade. Mais tarde, em outubro daquele ano, foi lançado pela Odeon o LP no qual se pode ouvir a euforia daquela festa.
Além de cantar os principais sucessos, Simonal fez imitações e contou piadas. Na metade do programa, leu um exemplar fictício do Jornal da Tarde de 33 anos mais tarde, um sábado, 24 de junho de 2000. Simonal fazia piadas com as notícias do futuro, ironizando os debates da década de 1960. Brincando, leu a notícia que o músico “Louis Armstrong Neto” estaria liderando um movimento intitulado Frente Única do Jazz, com o intuito de acabar com o “imperialismo do samba-de-breque” que invadia há três anos as paradas de sucessos de todo o mundo. Na seção de esportes, a seleção brasileira de futebol do ano 2000 seria hexacampeã dirigida pelo técnico Edson Arantes do Nascimento, o Pelé. Terminou dizendo: “Vocês acabaram de ouvir o festival do otimismo! Quem sabe? Afinal de contas, pra Deus nada é impossível! A gente vai brincando, pode ser que cole e tal!”
Não colou. Simonal “esqueceu-se” de anunciar o agravamento de sua doença e o caminho sem volta que o levaria à morte. Ele faleceu no dia 25 de junho de 2000, um dia após a data do fictício jornal criado em 1967. A morte pouco divulgada foi a síntese do exílio interno de um cantor banido da memória coletiva nacional.
Em sua carreira, Simonal gravou 36 discos. O último, Brasil, foi lançado em 1998. No fim da vida as poucas gravações e as raras turnês por boates e pequenos bares eram interrompidas pelas internações cada vez mais frequentes. Ele estivera hospitalizado entre 4 de abril e 12 de maio de 2000. Saiu da intervenção apesar do quadro grave de “disfunção hepática” com o qual convivia há pelo menos uma década. No dia 30 de maio, deu entrada novamente no Hospital Sírio Libanês, em São Paulo. Desta vez não haveria volta para casa, já que seu quadro clínico era considerado irreversível pelos médicos. Quando o fígado parou de funcionar, comprometendo os outros órgãos, a família já sabia do pior.
Simonal morreu aos 62 anos de idade. O fígado estava destruído por longos anos de consumo de uísque, a bebida com a qual tentava apagar o passado do qual perdera o controle. Acusado de dedo-duro em 1971, Simonal ficou marcado pela pecha, seu sucesso foi interrompido e sua importância no cenário musical gradativamente diminuída. Amargurado, o alcoolismo foi a saída que encontrou. Tibério Gaspar, compositor de algumas das canções de Simonal, relatou que na última vez que o viu, no fim dos anos 1990, o cantor bochechava uísque na intenção de não mais bebê-lo. Mas não conseguiu livrar-se do vício.
O enterro aconteceu no cemitério do Morumbi, após o velório realizado ainda no próprio hospital, com pouco mais de quarenta pessoas presentes. Poucos artistas de sua geração compareceram à cerimônia fúnebre: apenas Wanderléa, Ronnie Von e Jair Rodrigues.
No enterro, em 26 de junho, Jair Rodrigues manifestava indignação:
Infelizmente, o meio artístico não tem muita união. Devia estar apinhado de gente aqui hoje. Esperava a presença, pelo menos, dos mais representativos na carreira dele, como Jorge Benjor [autor de “País tropical”, sucesso nacional em 1969 na voz de Simonal]. Não sei se ele está sabendo. Ele teria de estar presente de alguma forma. O Flamengo também devia ter um representante aqui, dando adeus a quem tanto elevou seu nome.
A notícia do falecimento mereceu apenas algumas notas nos jornais e revistas. Desde 1971, Simonal só conseguira ser lembrado pela imprensa algumas poucas vezes. Reclamava da pouca importância que os meios de comunicação davam à sua situação de exilado interno: “Existe um boicote profissional contra mim, uma regra não escrita, que tira o pão da minha boca, cerceia os meus direitos básicos de cidadão”; “A imprensa nunca me deu colher de chá para me defender. Não sei se os ataques que sofri, de 1971 até agora, foram piores do que o silêncio da imprensa a meu respeito”; “Sou o único cara que foi exilado em casa, não precisei ir para a Inglaterra”; “Sofri uma inquisição discográfica. Foram rasgados, destruídos. Os artistas não podiam trabalhar comigo porque se inventou que iriam se queimar”.
Antes de Simonal falecer, o compositor Geraldo Vandré chegou a visitá-lo ainda enfermo no hospital. Se em 1968 eles representavam lados ideologicamente opostos, na virada do milênio Vandré trazia-lhe a compaixão dos desgraçados. Como se sabe, o cantor paraibano passou por um processo de metamorfose política durante o exílio. Transformou-se de bastião das esquerdas em cantor da Força Aérea Brasileira, para a qual compôs uma canção ironicamente chamada Fabiana. Vandré visitou o cantor dois meses antes de sua morte, durante sua primeira internação. Procurado pelo jornal Folha de S. Paulo, Vandré se recusou a fazer comentários. Negou ter tratado de política durante a visita: “Falamos de amenidades. Fui me solidarizar com ele. Não iria tratar de um assunto desses com uma pessoa doente”, afirmou o compositor.
A história da música popular brasileira dificilmente consegue se desvencilhar do papel de espelho da política dos anos 1960/1970. Se a imagem cristalizada de Vandré é a do resistente à ditadura, a de Simonal é a do dedo-duro do regime. Ambos pagam tributo à memória forjada naqueles anos. Mas essa memória parece não dar conta do encontro no Hospital Sírio Libanês, quando um deles estava à beira da morte.
* * *
Quando se inicia o estudo da história da música popular brasileira, logo se depara com a extrema politização do debate. Frequentemente os marcos da música brasileira são temas políticos que associam cantores, compositores e intérpretes às questões sociais do período. Maria Bethânia começou sua carreira cantando Carcará, ao lado de Zé Kéti e João do Vale em 1965, para uma plateia universitária “politizada” no show Opinião. “Pra não dizer que não falei das flores” chegou a ser chamada de “Marselhesa” brasileira por alguns críticos, e serviu de “hino da resistência” ao AI-5. “É proibido proibir” e mesmo “Alegria, alegria”, de Caetano Veloso, não conseguem deixar de tematizar os livros e os fuzis. “Apesar de você” serve de libertação para os oprimidos que acordaram com a polícia “lá fora” e gritaram “chame o ladrão” em “Acorda amor”, ambas de Chico Buarque.
O conceito MPB foi forjado por meio da luta contra a ditadura, ecoando e catalisando a construção de uma memória da resistência que a própria sociedade vinha criando para si mesma. Associando-se a uma memória dicotômica, ela serviu (e serve ainda hoje) de trilha sonora de uma história que vitimiza a sociedade, simplificando as relações do período e enaltecendo a si própria.
Para além de ver quanto a MPB resistiu ao regime ditatorial, como frequentemente se faz, é preciso compreender os significados da preferência de nossos pesquisadores pelo tema da resistência. Dessa forma, o que interessa é mais o discurso que se faz sobre a música do que a música “em si”. Por que a história da MPB é contada por meio de marcos políticos? Por que a música do período é mais relembrada do que outras produções dos meios de comunicação de massa, como a televisão ou o cinema? Por que frequentemente se esquece das relações de artistas da MPB com a ditadura? E, finalmente, por que Simonal foi apagado da memória da música popular?
A história da MPB sempre foi privilegiada por pesquisadores, escritores, acadêmicos e jornalistas, muito mais do que qualquer outro gênero musical. É comum que artistas não identificados a este gênero estético-político sejam associados a baixa qualidade estética e a “alienação” política. Não à toa, os alunos dos ensinos fundamental e médio estudam a participação dos artistas da MPB na luta contra o regime de 1964, pois os livros didáticos de História do Brasil do século XX idealizam sua luta “heroica”. Constrói-se, assim, uma história musical dicotômica, simplista, que enxerga resistentes e alienados. Quase sempre, os que não estão sob o signo da resistência da MPB não merecem ser citados nos livros de música, em manuais de história, em biografias e memórias de artistas, nos trabalhos jornalísticos em geral. Enfim, certos artistas são silenciados pela memória hegemônica em nome de um conceito estético e político, apagando-se a vivência afetiva de milhões de brasileiros.
Isso acontece com Wilson Simonal. Frequentemente, sua importância é diminuída e a dimensão de seu sucesso esquecida. Como pertenço a uma geração que não viveu a década de 1960, não tive qualquer contato com a obra de Simonal antes da minha pesquisa de mestrado sobre sua história. O que me levou a este encontro foram as referências dicotômicas ao cantor em grande parte da bibliografia consultada. Ao longo dos textos, termos como “rei do suingue”, “showman”, “simpatia”, “voz afinada” estavam sempre ao lado de palavras como “simples”, “comercial”, “alienado”, “pilantra”, “abusado”, “prepotente”, “bobagem”.
Ao perguntar pelas lembranças daqueles que viveram os anos 1960/1970, constatei que a bibliografia referendava um ponto de vista coletivo. Os que viveram o auge do sucesso de Simonal parecem reconhecer, ainda hoje, sua bela voz, virtuosa e afinada. Muitos se lembram do show do Maracanãzinho, embora não estivessem lá. Por outro lado, todos se lembram igualmente da acusação de dedo-duro (e a reproduzem).
Tal acusação impediu que muitos jovens tivessem contato com a obra do cantor, que foi sistematicamente esquecida e silenciada. Minha geração nasceu e cresceu num mundo sem Wilson Simonal de Castro. Assim, o que me chamou atenção foi a ausência de referências sobre o cantor, muito mais do que sua obra em si. E quando as havia, eram sempre acusações injuriosas, rancorosas até. Sobre ele pesavam acusações de “mau-caráter”, “traidor” e outros adjetivos inomináveis. Só posteriormente entrei em contato com seus LPs, relativamente difíceis e caros de se encontrar em sebos.
Gradualmente, ao tomar conhecimento de sua obra, percebi a importância de seu projeto estético: a Pilantragem. A década de 1960 quase sempre é contada através da trilha sonora de movimentos musicais como a Bossa Nova, a Jovem Guarda e o Tropicalismo, além da música de protesto. Dificilmente a Pilantragem é lembrada. Esse movimento musical, que encaro como sendo um projeto estético da década de 1960, foi inventado por Simonal, Carlos Imperial e Nonato Buzar. Buscava, como o Tropicalismo, fundir o que vinha “de fora” com as tradições “de dentro”. A procura por uma música nova, mais suingada e cheia de balanço, levou Simonal a incorporar novos instrumentos, modificar seus shows, transformar seus arranjos e suas performances no palco. No entanto, ao se afastar de sua matriz bossa-novista, Simonal foi muito criticado.
Alguns anos antes de o boato de dedo-duro se espalhar, Simonal investiu em diversas canções que de fato foram interpretadas como sendo apologia ao Brasil e/ou ao regime militar. São dessa época canções como “País tropical” (1969), “Brasil, eu fico” (1970), “Que cada um cumpra com o seu dever” (1970), “Resposta” (1970), “Aqui é o país do futebol” (1970) e “Obrigado, Pelé” (1971). A mais ofensiva delas, “Brasil, eu fico”, composição de Jorge Ben, não deixava dúvidas: “Este é o meu Brasil/ Cheio de riquezas mil/ Este é o meu Brasil/ Futuro e progresso do ano dois mil/ Quem não gostar e for do contra/ Que vá pra…”. Como se vê, os boatos talvez não fossem infundados. Mas fato é que, reais ou imaginários, eles foram fundamentais para catalisar o ostracismo de Simonal. A partir de 1971, sua carreira entrou numa descendente e os poucos discos lançados até sua morte, em maio de 2000, não receberam grande nota por parte da imprensa e do público. De “rei do suingue”, Simonal passou a cantor de cabarés e bares noturnos de pouca expressão, mas sempre clamando inocência.
No entanto, mais do que comprovar a veracidade dos boatos, o importante é vê-los como indícios. Indícios de uma memória da MPB que tem dificuldades de lidar com a música que não canta as glórias da resistência da sociedade diante da ditadura. Lembranças que não se encaixam nos padrões da resistência requeridos pela sociedade são marginalizadas, apagadas ou simplesmente silenciadas. Daí Simonal ser visto como uma “aberração” pela memória coletiva.
Para além da reconstrução de uma história conhecida (e reconhecida), me interessei em estudar o “lado B” da música popular brasileira. O lado que frequentemente não é relembrado por nossos memorialistas, historiadores, jornalistas, cientistas sociais e pelos próprios artistas que escreveram sobre o período. O lado daqueles que se identificaram com o regime, ou que foram indiferentes a ele. Se o apoio ao regime é fácil de ser demarcado, a indiferença nos proporciona um terreno pantanoso para análise. Mesmo porque a indiferença raramente deixa registro. Simonal é uma janela para se entender a parte da sociedade que colaborou com os militares, e uma parte talvez maior ainda que foi indiferente à ditadura. Não se trata, obviamente, de fazer apologias às políticas autoritárias de um governo ditatorial, mas de compreender como parte da sociedade pôde se associar sem muitos problemas a esse ideal.
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* Este post reproduz, de forma ligeiramente alterada e com autorização do autor e da editora, a Introdução do livro Simonal: Quem não tem swing morre com a boca cheia de formiga (Record, 2011).
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