Ciência

O “tratamento espiritual” de Reynaldo Gianecchini: vamos aos fatos

por Carlos Orsi (02/10/2011)

Depois da Veja, chegou a vez da Folha dedicar espaço ao lado heterodoxo do tratamento

por Carlos Orsi

 

Depois da Veja, chegou a vez da Folha correr atrás do trio elétrico do “tratamento espiritual” do ator Reynaldo Gianecchini. Se, por um lado, o texto publicado na edição deste domingo da FSP tem o mérito de quebrar um velho vício da mídia brasileira — o de privilegiar as doutrinas do catolicismo sobre as de todas as demais religiões praticadas no país –, ele o quebra, a meu ver, do jeito errado, estendendo às crenças espíritas o mesmo grau de suspensão do senso crítico de que já gozam as supostas aparições de Maria e os alegados milagres de Frei Galvão, Irmã Dulce e João Paulo II.

Imagino até onde irá esse espírito de cortesia para com as crenças alheias. Será que um dia leremos, numa publicação que se pretende de primeira linha, algo como “Fazer trabalho para amarrar o amor funciona? Quanto a isso, não há consenso nem mesmo entre as feiticeiras que leem tarô cigano…”, ou “Ditadura de partido único funciona? Quanto a isso, não há consenso nem mesmo entre os leninistas…”?

A edição do caderno ainda tenta dar algum equilíbrio à pauta, publicando um artigo do editor de Ciência, o heroico Reinaldo José Lopes, mas o texto não só foi parar numa página diferente da reportagem principal, quebrando a unidade do tema, como o título (“Pacientes com fé têm melhoras, afirma pesquisa”), além de ser de uma tolice atroz — pacientes sem fé também têm melhoras, afinal, ou será que só ateus morrem no SUS? –, basicamente desmente o texto, permeado de advertências sobre o caráter pantanoso da questão.

E o lide, dizendo que o número de curas de câncer “pela fé” parece ser ainda menor que o de remissões espontâneas sem intervenções religiosas, vem enterrado na última linha.

Para os não-iniciados: “lide”, em jargão jornalístico, é a informação mais relevante do texto. Na prática jornalística usual, essa informação deve ser apresentada sempre no primeiro parágrafo. Daí vem a palavra “lide”, do inglês lead, “o que vem primeiro”, “o que encabeça”. “Enterrar o lide” é escondê-lo em outras partes da matéria. Um lide pode acabar enterrado por vários motivos, incluindo falta de tempo para estruturar melhor o texto, mas às vezes jornalistas optam por enterrá-lo deliberadamente, na esperança de que uma informação desagradável passe despercebida. Uma piada que ouvi certa vez diz que o lide é como um zumbi: não basta enterrá-lo, é preciso decapitá-lo e cremá-lo.

Mas, enfim, pondo de lado a vontade de vender ao leitor do jornal dominical a reconfortante e altamente digestiva impressão de que algumas doses de superstição e pó de pirlimpimpim podem, talvez, quem sabe, de repente, até fazer bem, o que se pode afirmar sobre a relação entre fé e saúde?

Alguém realmente interessado em informar objetivamente o leitor poderia ter encontrado na internet um paper da Colaboração Cochrane que conclui que a maioria dos estudos existentes não mostra nenhum efeito positivo das preces sobre a saúde, e outro, publicado em 2002 nos Annals of Behavioural Medicine, concluindo que “há pouca base empírica para se afirmar que envolvimento ou atividade religiosa associa-se a resultados de saúde benéficos”.

O trabalho da Annals é especialmente importante porque põe em relevo o fato de que os “fatores religiosos” que parecem fazer bem à saúde são, na verdade, fatores que nada têm a ver com as alegações específicas da religião. Por exemplo: freiras enclausuradas têm pressão arterial menor porque vivem vidas regradas e tranquilas, longe do estresse do dia-a-dia, ou porque estão mais perto de Jesus? O fato de que monges budistas também têm uma saúde cardiovascular invejável sugere fortemente que a primeira opção é a correta. Mas “fé faz bem” deve vender mais jornal que “respirar fundo e relaxar faz bem”, suponho.

Por fim, a matéria da FSP menciona os “cirurgiões espirituais” das Filipinas sem citar que eles foram desmascarados seguidas vezes como prestidigitadores e charlatães. O que é possível conferir no vídeo abaixo:

Carlos Orsi

Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.