Nossa extinção nunca é meramente biológica, somos levados por outrem em sua passagem.
Falecido em 2007 no Recife, Evaldo Coutinho, um dos únicos filósofos brasileiros no sentido genuíno do termo, erigiu um pensamento interpessoal acerca da morte e da finitude. Arquiteto, esteta, advogado e membro da Academia Pernambucana de Letras, deixou nove obras oficiais que sustentam um sistema filosófico que mescla filosofia, arte, estética, arquitetura e cinema. Trabalhou uma fenomenologia com sentimento brasileiro, com aroma de Engenho, com visual de arquitetura Neocolonial e com sensação de pontes sobre rios.
A tanatologia nesse pensador é social e ao mesmo tempo ensimesmada. Um homem velho, se pode depreender, tendo conhecido diversas outras pessoas, leva consigo ao morrer todas as lembranças e as vivências que possuía junto aos outros no mundo. Suponhamos que eu tenha morrido em 2008. Se de lá para cá todos que me conhecem tivessem morrido, eu cairia no esquecimento total, aniquilado não só na biologia, mas na existência real não-efetiva que ainda sou.
Todos estão morrendo nas mortes de outrem. Enquanto o outro vive – e foi conosco no mundo – tem a capacidade de suster minha presença como alguém ausente. Assim acontece com alguém que acaba de me conhecer. Eis que neste acontecer possuo mais uma testemunha da minha existência. Na morte do Eu tudo quanto é “existenciamento” adquirido desaba junto. Nesse sentido, a ideia de “morrer mil mortes” faz grande sentido. Estamos morrendo diariamente na morte dos que nos conhecem. Nossa extinção nunca é meramente biológica, somos levados por outrem em sua passagem.
Anuncia-se ai o início de uma reconstituição de testemunhos e da vida de quem se foi. A possibilidade de uma biografia se realiza justamente nos relatos e depoimentos de quem susteve a vida de outrem ao seu redor. Se fosse possível que todas as pessoas que conhecem um indivíduo – e testemunharam sua vida até então – desaparecem repentinamente, o sujeito teria uma identidade nadificada. Precisaria construir outras relações com novas testemunhas. Seria necessário recomeçar.
Em O lugar de todos os lugares, Coutinho ajuíza:
Quando morre alguém, à sua morte sou levado em conjunção com essa obscuridade nele, fisionomicamente diluído nela, negando-me a mim no seio desse perecimento, extinto comigo todo meu repertório, o ponto intestemunhável desse alguém […] Em outras palavras, o meu repertório enquanto se me apega, some-se no falecimento de outrem, e tanto mais densamente quando esse outrem o conhecia em grande parte. […] sobrevindo a morte no campo das testemunhas se faz perecer em toda integridade, tantas vezes quantas são as mortes. Neste sentido, a pessoa se afigura o centro num jogo de apareceres e desapareceres de si própria […] A acumulação de mortes no curso de testemunhada existência, significa, paradoxalmente, a destinação com que todos se afetam no esforço de prolongar a dita existência.
Já em Ser e estar em nós, afirma:
Antes que chegue o momento de se apagar a nossa luz, nascemos e morremos à medida que penetramos no álbum de outrem e nele nos perdemos por extinção do volume repleto de tantos retratos; essas existências diminutas de nós mesmos, não são mais do que modalidades que se condicionam ao nosso ato de ser, cujas decorrências serão interrompidas com a nossa morte.
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http://outraspalavras José Augusto Dionízio
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Zeca Viana
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alef henrique