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A vida sexual dos outros

por Camila Pavanelli (25/10/2012)

Se até as novelas ultimamente têm sido complexas, por que é que a vida deveria ficar para trás

Festa de senhorinhas da igreja. Aquelas, vocês sabem bem. Ou melhor, não sabem não e preciso explicar, porque nem senhorinha nem igreja é tudo igual. As desta festa são de uma igreja em que não pode um monte de coisa. Não pode cortar o cabelo, não pode dançar, não pode maquiagem, não pode calça. Tem que ser temente a Deus e obediente ao marido. E com tudo o que não pode, quer saber de uma coisa? Podendo ou não, essas senhorinhas têm vida sexual. Porque todo mundo tem. Somos criados para acreditar que apenas os galãs e galoas da novela das 8 têm o direito a uma vida sexual digna desse nome – uma vida que traga prazer sexual. Na nossa hierarquia-fajuta-implícita das vidas sexuais, galãs >>> nós >>> senhorinhas, quando não há nenhum motivo para que a realidade não seja toda ao contrário. Ou você acha mesmo que entende muito mais de sexo que sua bisavó só porque nasceu algumas décadas depois e tem acesso à internet?

Tendemos a pensar que “cruzes, essa religião repressiva e credo e tal acaba com a vida sexual das pessoas”, e esquecemos que as pessoas são sempre muito mais do que o pastor (que, aliás, também é uma pessoa) gostaria que elas fossem. Estamos descobrindo isso em política apenas agora – não há repúdio a quiteguei que faça um candidato falido ganhar uma eleição. E se as pessoas não deixam o pastor decidir seu voto, coisa que acontece a cada dois anos, imagina a vida sexual delas, que é uma questão diária. Porque mesmo que essas mulheres obedeçam aos pastores e maridos. Obedecem por aqui e mandam por ali. E tantas vezes obedecem meia-boca – exatamente como você faz no seu trabalho. Nunca é demais lembrar que você não é necessariamente mais esperta e safa que a sua tataravó. Pode até ser que você seja; terá sido um mero acaso, e não o resultado de um processo de seleção natural.

A igreja das mulheres da festa é uma que está sempre pintada de cinza. Como as mulheres não podem pintar os cabelos, suas cabeças, com o tempo, acabam ficando cinza também. Quando trinta ou quarenta delas se reúnem, você finalmente entende o que são os tais cinquenta tons de cinza – sobretudo porque o cinza espalha-se também pelas roupas, que muitas delas acabam preferindo às outras cores. É como se encarnassem em seu corpo a arquitetura da igreja. E, ainda assim – a vida tem múltiplos tons de todas as cores, basta não ser daltônico para enxergar. De repente você vê um rosa-choque em um colar, e uma bolsa amarelo-neon saída de um lookbook de blogueira fashion no colo de uma senhorinha dos cabelos cinza. Olhando bem, em meio a todo aquele cinza, você começa a perceber que as senhorinhas não precisam nem mesmo desobedecer as regras da igreja para subverter a ordem cinzenta – basta compensá-las exagerando bastante em outros detalhes. Então você vê, aqui e ali, saltos tamanho 15, joias que brilham e fazem barulho, perfumes fortíssimos, decotes nas blusas, fendas nas saias, chapéus espalhafatosos. E vendo ainda mais de perto, você finalmente para de ver e começa a ouvir. Que é quando você fica sabendo de coisas que não estão no manual Malafaia do bem-viver. Você ouve o orgulho infinito de uma delas pelo filho gay – dela, que só sai de casa com a expressa autorização do marido. Se até as novelas ultimamente têm sido complexas, por que é que a vida deveria ficar para trás.

Ouvindo mais e ouvindo sempre, você ouve os questionamentos espírito-sexuais de uma senhora cinza da cabeça aos pés. A vida às vezes gosta de ser engraçada, e justo esta senhora – nenhum decote, nenhuma maquiagem, nenhum sinal de cor – estava absolutamente encantada pelo livro Cinquenta Tons de Cinza. Ele incutiu-lhe dúvidas que a levaram a aconselhar-se com uma amiga mais avançada na hierarquia espiritual da igreja. O tema central dos questionamentos, resumidamente, era se o pecado na vida pública é pecado também na vida privada; quais os limites, até onde se pode ir em matéria de sexo. Ou seja, nada com que a humanidade não venha se debatendo há 10 mil anos.

– Por exemplo – dizia ela. – O meu marido não vai me ver pelada de qualquer forma? Então que mal tem eu usar uma camisolinha rendada e curtinha, se ele vai me ver pelada depois? Por que isso seria pecado?

– Tá certo – concorda a outra, a mais espiritualmente avançada. – Uma camisolinha só não tem problema, não é nada demais.

– Pois então – retoma a primeira, animada pelo apoio da amiga mais evoluída. – Se uma camisolinha tá tudo bem, e se eu quiser usar uma fantasia mais ousada – uma roupinha de enfermeira, uma cinta-liga provocante? É pecado aos olhos de Deus?

As outras senhorinhas que estavam por perto tossem, engasgam, fingem que não é com elas. Mas uma delas, que ouvia a conversa de longe e é mais avançada ainda na hierarquia espiritual da igreja (e logo se verá por quê), se adianta e se imiscui na conversa.

– Irmã – elas se chamam de irmãs -, o que importa aos olhos de Deus é o que vai no coração do casal. Se o casal sente no seu coração que o que estão fazendo é bom e é para o bem do casal, então isso não constitui pecado algum aos olhos de Deus. O casal, os dois juntos, é que definem o que acontece entre quatro paredes e ninguém tem nada a ver com isso.

E é isso. Sabe aquela musiquinha que diz que todo mundo foi criança, até Hitler? Pois bem, as pessoas religiosas costumam ser vistas como os Hitlers do sexo, gente cuja vida sexual é o terror do terror. E não, né? Mas não mesmo. Que o digam os esposos de certas senhorinhas da igreja.

Camila Pavanelli

Doutoranda em Psicologia Social na USP.