O tratamento relativístico de Paul Dirac e as experiências com raios cósmicos abriram as portas para um verdadeiro zoológico de partículas subatômicas.
[ parte I. parte II ]
O Modelo Padrão
1.
Na última parte desta série falei sobre como os físicos do início do século XX começaram a desvendar o enigma da composição da matéria. Vamos relembrar: diversas experiências de 1895 a 1932 estabeleceram que os átomos são compostos de um núcleo central, que concentra mais de 99% da massa total do conjunto e de uma nuvem de partículas negativamente carregadas orbitando ao seu redor. Essas partículas negativas são chamadas de elétrons. O núcleo, por sua vez, é formado por prótons, com carga elétrica positiva, e nêutrons, que não apresentam carga. Essas três partículas apresentam outras propriedades, tais como campos magnéticos intrínsecos, diferentes níveis de energia etc. E as diferentes configurações de prótons, nêutrons e elétrons formam os 92 elementos encontrados na Natureza, mais quantos elementos artificiais os físicos nucleares conseguirem forjar. A essas três partículas de matéria adicionamos o fóton, o discreto quantum de luz postulado por Einstein que, apesar de não ter massa, carrega quantidade de movimento, exerce pressão e atua diretamente nas transições de energia dos átomos. Fótons são emitidos ou absorvidos a cada vez que um átomo altera seu estado energético.
Elétrons, prótons e nêutrons possuem massa, e fótons, não. Além disso, fótons podem se acumular num mesmo estado quântico sem nenhum problema – partículas que se comportam assim são chamadas de bósons, porque obedecem as regras estatísticas calculadas por Satyendra Nath Bose, um físico indiano, e por Albert Einstein. Já os outros três são férmions, porque obedecem as regras estatísticas calculadas por Enrico Fermi e Paul Dirac. Dois férmions não podem ocupar o mesmo estado quântico simultaneamente – é a raiz do princípio de exclusão de Pauli, que aprendemos nas aulinhas de química do Ensino Médio.
As três partículas “clássicas” mais o fóton não são suficientes, entretanto, para descrevermos o que acontece no mundo submicroscópico. Por quê? Bem, como eu disse no artigo anterior, é preciso explicar por que raios o núcleo, que concentra todas as cargas positivas do átomo, consegue se manter estável sem se desfazer por causa da repulsão elétrica entre os prótons. Teria que haver uma outra força em ação, muito mais intensa que a interação coulombiana entre cargas, para manter o conjunto do núcleo coeso. Pior ainda, a nova força teria que atuar apenas a distâncias minúsculas, da ordem do diâmetro nuclear.
Esse era o enigma enfrentado pelo pesquisador japonês Hideki Yukawa. Ele imaginou que a força forte, como a chamava, tinha que ser mediada por um campo – da mesma forma que o campo eletromagnético media as interações entre prótons e elétrons e o campo gravitacional media as interações entre a Terra e a Lua. Então, assim como o fóton é a partícula mensageira do campo eletromagnético, Yukawa imaginou que um “parente” do fóton poderia ser o mensageiro da força forte. Esse novo bóson teria massa, que Yukawa calculou ser da ordem de 300 vezes a massa do elétron, e algo em torno de 1/6 da massa de um próton. Por essa razão, foi chamado de méson, ou seja, de peso intermediário entre o leve lépton (elétron) e os pesados bárions (prótons e nêutrons). O primeiro candidato ao méson pi, como foi chamado por Yukawa, foi observado em 1936 por um grupo que estudava raios cósmicos – chuveiros de partículas de origem espacial que bombardeiam a atmosfera, eu, você e tudo no mundo a todo momento. Mas era alarme falso. A partícula descoberta era o múon, que tem propriedades muito mais análogas ao elétron do que a outra coisa. Mais tarde, graças às pesquisas de um grupo do qual fazia parte o brasileiro César Lattes, o méson pi foi finalmente descoberto em 1947.
Paralelamente ao trabalho de Yukawa, Paul Dirac tentava dar um tratamento relativístico às equações da mecânica quântica, para dar conta de fenômenos mais energéticos. Uma das consequências desse tratamento foi que as novas equações obtidas sugeriam a existência de anti-partículas para cada partícula existente. Uma anti-partícula (também chamada de partícula de anti-matéria) tem massa idêntica à sua partícula correspondente, mas outras propriedades tais como carga e momento magnético são invertidas. Além do mais, se uma partícula colide com sua anti-partícula, as duas se aniquilam e se transformam num chuveiro de raios gama. O fóton é sua própria anti-partícula, mas até mesmo o nêutron possui um gêmeo de anti-matéria.
2.
O tratamento relativístico de Dirac e as experiências com raios cósmicos abriram as portas para um verdadeiro zoológico de partículas subatômicas. Onde antes havia apenas quatro, logo começaram a aparecer dezenas delas. Afinal, pela teoria da relatividade, massa e energia são equivalentes. Então, se bombardearmos um núcleo atômico com energia suficiente, não apenas ele será quebrado, mas novas partículas podem aparecer. É o caso até mesmo de processos naturais, como o decaimento beta, estudado desde 1930. Dentro de núcleos radioativos muito pesados, como o Césio-137, por exemplo, um nêutron pode decair em um próton, emitindo um elétron e uma pequena partícula sem carga, o neutrino, para compensar o balanço de energia. Para complicar as coisas, notou-se que havia mais de um tipo de neutrino, além dos anti-neutrinos correspondentes. Tecnicamente, aliás, o neutrino do decaimento beta do césio é um anti-neutrino, por causa de certas leis de conservação e razões de simetria. E, como eu disse antes, o decaimento beta era indício de uma outra força em ação, que foi logo chamada de força nuclear fraca, ou interação fraca, para diferenciar da interação forte de Yukawa. Naturalmente, a interação fraca também precisava ser quantizada, da mesma forma que o eletromagnetismo e a interação forte. E, quantizada, precisava de partículas mediadoras, os bósons W+, W- e Z, cuja existência só foi confirmada bem mais tarde no CERN.
Outra complicação apareceu nos anos 60, quando indícios apontavam definitivamente para a existência de uma estrutura mais fundamental dentro de prótons e nêutrons, os chamados quarks. Quarks nunca aparecem isolados, mas sempre se combinam em duplas ou trios. Partículas formadas por quarks são chamadas de hádrons, porque elas sofrem a ação da interação forte.
Eu poderia prosseguir, mas acho que vocês pegaram a ideia: no final dos anos 60, o tamanho do bestiário de partículas subatômicas era imenso e era preciso pôr alguma ordem na casa. E então, como crianças que enfrentam um quebra-cabeças de milhares de peças, os físicos começaram a elaborar um modelo que classificasse e explicasse as partículas em seus diferentes tipos, massas e estatísticas. A ideia central – tentem se lembrar disso se os nomes de partículas começarem a ficar confusos – é tabelar um conjunto mínimo de partículas fundamentais; ou seja, os tijolinhos básicos que constroem toda a matéria conhecida. Esse é o tal Modelo Padrão do qual tanto se fala. Vou apresentar um rascunho do modelo.
Primeiro, as partículas fundamentais se dividem em léptons, quarks e mediadoras. Há três gerações, isto é, três tipos de léptons: o elétron, o múon e o tau. Cada geração tem um neutrino correspondente e cada um tem uma anti-partícula. São, portanto, seis léptons e seis anti-léptons.
Quarks se apresentam em seis sabores diferentes (que não tem nada a ver com o sabor de um doce ou de um prato de comida) e respectivas anti-partículas. Os quarks up e down são os constituintes de prótons e nêutrons, e são os quarks mais leves. Além desses temos os quarks charm e strange, de segunda geração, e os quarks top e bottom, apenas recentemente descobertos. Como eu disse, quarks são os tijolinhos que constituem os hadrons, grupo que inclui prótons, nêutrons e mésons. Quarks, aliás, são partículas curiosas. São as únicas partículas fundamentais conhecidas que são afetadas por todas as quatro forças fundamentais. Possuem massa, portanto são afetados pela gravidade. Possuem carga, e reagem a forças eletromagnéticas. Seus diferentes sabores refletem sensibilidade à interação fraca. E a susceptibilidade à interação forte vem do fato que quarks se apresentam em três cores distintas. Novamente, isso é apenas um nome para uma propriedade tão fundamental quanto a carga elétrica ou a massa, e que não tem nada a ver com a cor de objetos cotidianos. Os físicos nos anos 60 e 70 tinham um peculiar senso de humor.
Finalmente, restam as partículas mediadoras das forças. Sabemos que o fóton é o mediador do eletromagnetismo. O bóson Z e os dois tipos de W são os mediadores da interação fraca. E a interação forte? Bem, Yukawa pensava que o píon era o responsável por ela, mas como se viu a partir dos anos 60 o píon (como todos os mésons) é formado por quarks. Então foi preciso procurar por algo ainda mais fundamental – os chamados gluons. Hoje sabemos que os píons interagem dentro de núcleos atômicos, mas os gluons interagem entre os próprios quarks. Gluons, assim como os quarks, também exibem três cores. Existem oito tipos diferentes de gluons, o que eleva a contagem de partículas mediadoras para doze.
Assim, se vocês contaram direitinho, são 60 partículas fundamentais até agora – 12 léptons, 36 quarks e 12 mediadoras. Mas o Modelo Padrão não é apenas uma tabelinha com nomes esquisitos de partículas mais esquisitas ainda. Ele apresenta leis de conservação – de carga, de cor, de sabor, entre outras – e demais regrinhas dizendo o que pode ou não pode ocorrer numa reação entre partículas subatômicas. Então, em vez de tabelar uma quantidade cada vez maior de partículas, o Modelo Padrão nos dá as ferramentas necessárias para prever onde partículas até agora desconhecidas vão aparecer e que aparência vão ter. Além disso, o Modelo Padrão foi usado com tremendo sucesso para explicar como as forças fundamentais da Natureza podem ser unificadas. Já falei como a eletricidade e o magnetismo, que sempre foram tratadas como coisas distintas, foram unificadas na Teoria Eletromagnética de Maxwell no século XIX. No processo de construção do Modelo Padrão os físicos foram capazes de unificar o eletromagnetismo à interação fraca e, mais tarde, à interação forte. Essa nova teoria, chamada de Cromodinâmica Quântica, usa argumentos de simetria e descreve como, sob determinadas condições ambientais, eletromagnetismo, interação forte e fraca podem ser entendidos como aspectos diferentes de uma mesma força.
Ufa! Parece que demos conta de tudo! Toda a matéria que conhecemos pode ser descrita por combinações entre essas 60 partículas, certo?
Bem… não.
Em primeiro lugar, o Modelo Padrão é incompleto. Em lugar nenhum ele sequer tenta levar em conta a interação gravitacional. Segundo (e mais importante), os mesmos argumentos de simetria que foram usados para construir a Cromodinâmica Quântica sugerem que a massa de algumas partículas conhecidas deveria ser igual a zero. Que essas partículas tenham massa é um sério problema, um buraco enorme numa teoria de outra forma muito boa.
Como veremos na parte final desta série, Peter Higgs teve que vir ao resgate do Modelo Padrão.
[ parte IV ]
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