Como funciona esse mecanismo de Higgs? A melhor analogia que vi até agora é a das celebridades numa festa.
[ leia as partes I, II e III ]
O Higgs, finalmente
A física gosta de trabalhar com simetrias. Elas simplificam as nossas vidas e tornam a descrição de fenômenos complexos em tarefas bem mais fáceis. Quando um físico fala em “simetria”, ele geralmente está se referindo a quantidades ou propriedades que permanecem imutáveis frente a uma mudança na maneira de descrever um fenômeno. Por exemplo, se queremos medir uma esfera, tanto faz se tomamos a medição antes ou depois de girar a esfera – ela possui uma simetria em sua forma de tal maneira que suas dimensões são as mesmas por qualquer ângulo que olhemos. Mas leis físicas possuem suas próprias simetrias. Aferir uma certa propriedade física num canto do laboratório ou em outro canto é indiferente. Da mesma forma, realizar um experimento semana passada, hoje, ou amanhã não influi no resultado, tudo mais sendo o mesmo.
Um tipo muito importante de simetria é o que chamamos em português com o nome esquisito invariância de calibre. O nome é feio, mas o conceito é bastante simples. Pensem num carrinho de montanha russa que sobe lentamente a parte mais alta do circuito, para por um instante, e se lança de lá para percorrer o resto do circuito a diferentes velocidades. Ali, naquele momento imediatamente antes de se precipitar, o carrinho está no ponto mais alto de sua trajetória, onde ele acumula um máximo de energia potencial gravitacional. Toda essa energia potencial vai se transformar em energia cinética (e alguns sustos, mas isso não entra nas equações), que por sua vez é o que faz o carrinho ser capaz de percorrer o resto do circuito da montanha russa. Pois bem: se vocês puxarem pela memória das aulinhas do Ensino Médio, talvez se recordem dos professores dizendo que o valor absoluto da energia potencial era uma convenção. Tanto faz eu dizer que a energia potencial no alto da montanha russa é 100 joules, 10 milhões de joules, ou zero. O importante é que haja uma diferença de potencial entre o ponto mais alto e o ponto mais baixo da trajetória; e essa diferença de potencial é invariante. Ela é totalmente independente do valor arbitrário que eu escolhi. Apenas a diferença de potencial entre os dois pontos importa para os cálculos da energia cinética. Se eu resolver o problema da montanha russa assumindo que o zero da energia potencial é o solo e depois refizer o problema adicionando 50 joules ao potencial em todos os pontos da trajetória, chegarei ao mesmíssimo resultado de antes. Esse valor arbitrário do potencial é o que os físicos chamam de calibre, portanto invariância de calibre é quando podemos somar um valor qualquer a um potencial e todo o resto permanece igual.
Quando os físicos davam os retoques finais no Modelo Padrão, uma inconsistência implicante teimava em aparecer. O fóton, partícula mensageira da interação eletromagnética, tem a propriedade de ser invariante por mudança de calibre – pelos mesmos motivos do exemplo gravitacional acima. Da mesma forma, todas as outras interações entre bósons mensageiros e partículas fundamentais precisavam receber um tratamento invariante por calibre. Ocorre que os dois bósons W e o bóson Z da interação fraca possuem massa. Se essa massa fosse colocada diretamente nas equações de invariância, o sistema todo apresentava divergências; valores que iam ao infinito, em total desacordo com o mundo real. Era como se, pelas contas que todo mundo estava acostumado a fazer, essas partículas tivessem que ter massa nula, como o fóton.
Eu espero que vocês estejam impressionados – o Modelo Padrão, teoria de enorme sucesso em prever a composição de todas as partículas subatômicas conhecidas, seus modos de decaimento e todas as forças da Natureza, não funcionava direito quando se levava em conta a massa dos bósons da interação fraca. Isso é um tremendo furo na teoria.
Felizmente, físicos não desistem frente a pequenas inconsistências desse tipo. O sucesso do Modelo Padrão indicava que em alguma coisa eles estavam acertando, então talvez houvesse um truque matemático que pudesse corrigir o problema da massa e colocar tudo nos eixos de novo. E, de fato, tudo o que era necessário era introduzir um termo extra nas equações que incluísse tanto a energia potencial quanto a cinética. Foi o que Peter Higgs fez em 1964, aproveitando algumas ideias que já estavam sendo lançadas à época, mas introduzindo uma sutileza a mais.
Esse termo representa um novo campo, até então desconhecido. E, como qualquer campo, ele precisava ter uma partícula associada, responsável pelas interações de todas as outras partículas com ele mesmo. A esperteza do truque era que a expressão desse novo campo possuía um termo implícito de massa.
Graças a essa nova maneira de fazer as contas de invariância de calibre, o Modelo Padrão estava “salvo”. Em condições suficientemente altas de energia, ou seja, parecidas com aquelas altas energias imediatamente após o Big Bang, todas as forças são iguais umas às outras e as partículas não têm massa. Quando o Universo esfriou e o nível de energia baixou o suficiente, as forças foram se separando e assumiram a forma que têm hoje. Mais importante, as partículas, que até então não tinham massa, passaram a interagir com esse campo de Higgs, como foi chamado, e através dessa interação, adquiriam massa elas próprias.
E como funciona esse mecanismo de Higgs? A melhor analogia que vi até agora é a das celebridades numa festa. Imagine que há um salão de festas lotado, com pessoas em pé mais ou menos igualmente distribuídas. Todas estão conversando normalmente com as pessoas que estão mais próximas. Subitamente, uma celebridade famosa e simpática entra no salão. As pessoas então se aglomeram em torno da celebridade e tentam conversar com ela. A celebridade gostaria de chegar até a mesa de comes e bebes, mas, simpática como é, não se furta a conversar com seus fãs. Então, ela acaba se movendo mais lentamente do que poderia, caso não fosse uma celebridade, ou caso o salão não estivesse cheio. Se uma segunda celebridade entrar no salão, não tão famosa e não tão simpática, menos pessoas vão se aglomerar em torno dela, e possivelmente ela conseguirá alcançar a mesa de comes e bebes antes da primeira. Nesta analogia, as pessoas comuns no salão de festas representam o campo de Higgs. A primeira celebridade representa uma partícula que interage fortemente com o Higgs, e portanto, possui, uma massa elevada. A segunda celebridade interage menos com o Higgs, e possui uma massa menor. Uma não-celebridade não interage, e pode se mover livremente à velocidade da luz, como se não tivesse massa.
O maior problema com a ideia de Peter Higgs é que o bóson associado ao campo (o tal bóson de Higgs) é uma partícula muito difícil de achar. Primeiro, ela só poderia aparecer em colisões de altíssima energia, o que significa que precisamos de um acelerador de partículas gigantesco e caro para ter esperança de encontrá-lo. Segundo, como a meia-vida do bóson de Higgs é muito pequena, da ordem de 10-22 s, só podemos observá-lo indiretamente, através dos subprodutos de seu decaimento. Ocorre que o Higgs decai com grande probabilidade em partículas que são produzidas por outras reações bem mais prosaicas. A única chance que temos de observar o bóson de Higgs, portanto, é de produzir um número enorme de colisões, da ordem de quatrilhões de eventos, na esperança de detectar alguns dos modos de decaimento mais raros, que não pudessem ser confundidos com alguma outra coisa.
Em 4 de julho de 2012, quase cinquenta anos após o trabalho de Peter Higgs, os cientistas do CERN anunciaram a descoberta de uma partícula “compatível com o bóson de Higgs”. Essa linguagem cautelosa é própria da ciência; mas quase ninguém mais seriamente duvida que não seja o elusivo bóson. É a culminação de décadas de trabalho e esforço coletivos de milhares de cientistas e engenheiros na tentativa de melhor descrever o Universo que nos cerca.
E o que vem agora? Bem, como eu disse na terceira parte da série, o Modelo Padrão continua incompleto. Mesmo com o mecanismo de Higgs dando conta da massa das partículas fundamentais e com a existência do bóson de Higgs confirmada, ainda não temos uma formulação que inclua a interação gravitacional na brincadeira. Não sabemos sequer se a gravidade é quantizável, ou qual seria a “cara” de uma teoria de gravidade quântica, embora haja algumas pistas interessantes. É muito possível que, quando o enigma da gravidade for resolvido, tenhamos que abandonar o Modelo Padrão em favor de alguma outra teoria mais completa.
Como sempre, a parte mais interessante da física não acontece quando uma pergunta é respondida, mas com as novas perguntas que surgem com essa nova resposta. Eu mal posso esperar para ver o que virá.
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Rogério
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http://otelhado.wordpress.com Daniel Bezerra
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Dalila
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Fábio Pitombeira