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Redenção. Tal coisa não existe no universo de Ronaldo Correia de Brito

“Estive lá fora”, de Ronaldo Correia de Brito

O drama se passa no período da ditadura, cidade de Recife. Cirilo é um jovem estudante de medicina, saído do interior do Ceará. Geraldo, seu irmão mais velho, também havia ido estudar na capital pernambucana, mas acabou envolvido no movimento estudantil mais radical e, por isso, vivia escondido ou em fuga. Cirilo será encarregado pela mãe, desesperada em saber o paradeiro de Geraldo, de ir atrás deste e lhe mandar notícias. E Cirilo de fato acabará cara a cara com o irmão revolucionário.

Esse é um ótimo livro. Fora de dúvida, Ronaldo Correia de Brito é um dos ficcionistas nacionais que se tem a obrigação de acompanhar atentamente a cada lançamento. As descrições de ambientes, as vívidas sensações, os diálogos, tudo continua excelente no autor de Galileia. Em todo o Estive lá fora, só há talvez uma única frase irredimível – “Mesmo não depilando as axilas, Fernanda transpirava doçura e feminilidade”.

Geraldo, sob inspeção em capítulos avançados, se mostrará um chato de galochas, para cunhar uma expressão. Pode ser que ele lute por boas causas, mas é o típico sujeito com que você pode contar para fazer uma revolução e para nada mais. No Ceará, seu pai Luis Eugênio, antes ateu praticante e direitista robusto, agora já mostra sinais de demência. O sumiço do filho faz com que ele escreva (ou melhor, monte, confeccione) um livro, de capa preta, com notícias, indícios e elucubrações sobre o paradeiro de Geraldo – recortes de jornais, transcrições de relatos captados em noticiosos radiofônicos. Ele ainda tenta encaixar todo o caos político-familiar dentro da estrutura de pensamento adotada no passado para outras matérias – “As anotações foram essenciais para ele compreender a luta do filho a partir de uma lógica política e matemática”.

Cirilo mora na Casa do Estudante. Dá aulas particulares para ter com que se sustentar. Fuma maconha. Está envolvido em um triângulo amoroso. Politicamente, ele difere do irmão, mas sem ser seu oposto. É adepto de uma espécie de “niilismo positivo”; “embora fosse sensível às causas sociais e aos problemas humanos, sentia-se avesso aos sistemas organizados de pensamento e ação”; “preferia os transtornos causados pela arte às perturbações políticas”. Ele por ele mesmo, em carta à mãe: “Minha atitude perante a vida e minhas ideias mais profundas são contrarrevolucionárias. Refiro-me tanto à revolução que Geraldo pretende fazer quanto ao golpe militar que chamam revolução”.

Cirilo é um anarquista? Um acomodado, no fundo alienado? Não importa. O que importa é que a última coisa que deseja é ser tragado para o estilo de vida e as lutas do irmão. Tudo o que quer é se formar médico e fazer o esforço dos pais ter valido a pena. Mas ele irá ao encontro do irmão, por meio de amigos em comum, em pontos escuros da Recife ameaçadora, com Rurais aterrorizantes à espreita nas esquinas. Seus sentimentos em relação a Geraldo são ambíguos. Chega perto de admirá-lo ao refletir sobre sua própria vida de sexo, drogas, estudos e emprego medíocre. Não estaria jogando seus anos fora, num tempo em que a juventude mundial estava nas ruas lutando por uma vida melhor para todos? Mas depois… não! O irmão estava era, isso sim, sacrificando-se “por ideologias de prazo vencido como os remédios”.

Redenção. É mortificadoramente prazeroso ver como tal coisa não existe no universo de Ronaldo Correia de Brito. Exceto quando é fajuta. E não estou falando apenas do novo livro. Neste, o leitor, como se não conhecesse Ronaldo, demora um pouco procurando o sentido para tanto tormento, até se dar conta de que o sentido da coisa toda é isso mesmo: monotonia, previsibilidade, imobilidade sufocadora. O heroísmo juvenil dos sessentas está em todo lugar, mas não na prosa de Ronaldo. Será possível existir algo menos heroico do que o seguinte histórico de um amigo de Cirilo? – “Casou jovem com uma mulher que não ama, mas faz sexo bem. Teve duas filhas, ganha um salário miserável num emprego burocrático, recebe ajuda do pai, um protético que fabrica dentaduras”.

Após muita maconha, sexo selvagem com Paula, um fora desta, após muitas necessidades deixadas por satisfazer pelo salário de fome, após encontrar o irmão meio perturbado meio resoluto, após voltar a perder contato com o irmão e imaginar os piores cenários, Cirilo tenta um retorno à igreja (fora coroinha na infância), até devido a um pedido da mãe, mas a tentativa dá em nada; as pinturas de santos mutilados dão-lhe asco e reafirmam sua ideia de que bom de verdade é o sexo violento com Paula. Apela ao misticismo oriental, mas isso também não dá em nada além do deboche de companheiros de faculdade. Tenta se despir do passado recente, esquecendo Paula e o amigo e amante de Paula, Leonardo, misturando-se com novas caras na Casa do Estudante, mas as chances dessas novas amizades prosperarem são baixas. Estive lá fora vai acabando e restam a Cirilo apenas dúvidas. “Em que ponto a vida de Cirilo precisa recomeçar?”, pergunta-se o narrador. “Cirilo não lembra o que enterrou de importante e precisa desenterrar”. O romance é composto basicamente por esse narrador e por cartas que o protagonista e a mãe escrevem um para o outro.

No Recife, Cirilo consegue que um jovem dissidente encontre refúgio em sua cidade natal, na casa dos próprios pais. E de repente se vê com ciúmes do rapaz, perdido lá no interior cearense, imaginando-o “com um saco preso ao corpo, colhendo os capuchos brancos”. Poderia ser a volta ao lar a única escapatória? Ah sim! – Cirilo tem constantes ideações suicidas.

::: Estive lá fora :::
::: Ronaldo Correia de Brito :::
::: Alfaguara, 2012, 295 páginas :::
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Daniel Lopes

Editor da Amálgama.

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