A leitura de Monteiro Lobato serve mais à perpetuação do racismo ou à promoção de valores como ceticismo?
Tenho uma dívida enorme para com Monteiro Lobato. Mesmo. Eu não seria escritor, não seria blogueiro, não seria jornalista, sem ele. Não escreveria fantasia, aventura e ficção científica se não tivesse lido Os Doze Trabalhos de Hércules e sua adaptação da lenda de Robin Hood. Não teria me interessado tanto pela ciência e pela cultura clássica sem A Reforma da Natureza, O Minotauro e Viagem ao Céu. Não teria aprendido a desconfiar da autoridade constituída e a duvidar, sempre, das “boas intenções” do governo e do capital sem O Poço do Visconde.
Confesso que a fase “doméstica” da saga do Sítio do Pica-Pau Amarelo, mais centrada no sítio em si e no folclore brasileiro (como Reinações de Narizinho, O Saci, As Caçadas de Pedrinho) sempre me fascinaram muito menos. Qual a graça de perseguir sacis no mato com uma peneira se dava para caçar hidras e centauros da Grécia micênica com clava e flechas envenenadas, ora bolas?
Por conta disso, a celeuma atual em torno de As Caçadas de Pedrinho me pega meio que de calças curtas, e não por me remeter de volta à infância, mas porque se trata de um livro, a meu ver, menor, de que tenho lembranças bem pouco claras e com o qual minha ligação afetiva é quase nula.
De qualquer modo: o ponto central da crise é a acusação de que a obra reforça esterótipos racistas e, por conta disso, deveria ser considerada inadequada para certa faixa etária, a menos se complementada por notas, prefácios ou posfácios explicativos. Em algumas manifestações, fica claro que o problema realmente não é do livro, mas da incompetência dos professores em trabalhá-lo. Teme-se, por exemplo, que os epítetos coloridos (sem trocadilho) usados pela boneca Emília para desancar Tia Nastácia sejam reproduzidos nos pátios escolares. Mas suponho que parte da missão civilizatória da escola envolva ensinar a respeitar o próximo.
Dizer que o texto de Lobato “sanciona” o uso de linguagem racista (note-se que Emília, mesmo sendo carismática, é também tratada como inconveniente e grosseira) é como dizer que as aventuras de Arsène Lupin “sancionam” o crime.
O risco de algum leitor resolver imitar as facetas menos recomendáveis de personagens da obra lida existe em qualquer contexto, e o contexto escolar está lá para, entre outras coisas, orientar os jovens a não fazer isso e explicar o porquê. Botar uma nota de rodapé nos diálogos de Emília dizendo que não se deve xingar os outros por causa da cor da pele me parece tão “útil” quanto botar uma nota de rodapé nos diálogos de Drácula dizendo que não se deve matar as pessoas para beber-lhes o sangue. Mas, de repente, dado o nível da educação e a qualidade dos professores, isso acabe se mostrando necessário. O que seria uma pena.
O problema maior é que, dada a temperatura alcançada pela discussão, entrou em curso uma espécie de character assassination da obra infanto-juvenil (e não só: até o conto “Negrinha” entrou na roda) de Monteiro Lobato, in toto. De repente, seus textos passaram a ser tratados, em certos círculos, como peças de propaganda nazista, que precisam ser manipuladas com luvas de chumbo e longas pinças, como as que Homer Simpson usa para mover bastões de combustível nuclear.
Com isso, perde-se de vista o impacto mais geral e duradouro da obra: afinal, a leitura da literatura infanto-juvenil de Monteiro Lobato serve mais à perpetuação do racismo ou à promoção de valores como ceticismo, amor às artes, à ciência e à literatura, ao desenvolvimento do senso crítico?
Há um conto, acho que está em A Reforma da Natureza, em que Emília flagra uma flor branca tentando tiranizar as demais flores do canteiro, que são coloridas. E esta mesma Emília, que tanto destrata Tia Nastácia, resgata a autoestima das flores coloridas e leva-as à revolta ao convencê-las de que o fato de terem pigmentos tornava-as mais ricas que a déspota branca, desprovida deles.
De tudo que Lobato escreveu que pode ser interpretado como tratando de questões de raça, essa alegoria foi a que mais me marcou, na infância. Nunca a esqueci.
Carlos Orsi
Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.