Há um abismo entre nós

por Paulo Roberto Silva (14/10/2013)

As atitudes no campo da política reforçam a existência de um abismo entre sociedade e atores políticos

Entre setembro e outubro a sociedade recebeu sinais de que os gritos de junho entram no modo “ignore”. Estes sinais vieram dos mais diferentes lugares:

  • O Tribunal Superior Eleitoral não levantou suspeitas sobre dois partidos construídos às sombras e com assinaturas manifestamente fraudadas, mas decidiram barrar a Rede Sustentabilidade, a qual, discorde-se ou não de seu propósito, coletou suas assinaturas para legalização à luz do dia;
  • Marina Silva, que até outro dia aparecia como a campeã da “nova política”, aderiu imediatamente ao projeto Eduardo Campos;
  • Apesar de uma manifestação de massas em apoio à greve dos professores estaduais e municipais do Rio de Janeiro, governador e prefeito aproveitam a radicalização dos black blocs e continuam recusando-se a receber os líderes grevistas;
  • O Senado aprovou a lei que dificulta a criação de novos partidos.

Claro que na lista acima não incluí a decisão do STF de conceder os embargos infringentes aos réus do mensalão – uma decisão que se justifica legalmente e que não significa absolvição automática – nem a surpreendente conclusão do inquérito do caso Amarildo – esta sim uma conquista da sociedade.

Mas o fato é que a distância que se estabelece entre os anseios de uma ampla parcela da sociedade civil e as atitudes dos atores políticos no Brasil de 2013 configura um abismo similar ao que separava o rico glutão e o pobre Lázaro após a morte, na parábola do evangelho de Lucas. Se voltarmos ainda mais no tempo, veremos que a lista acima só tende a crescer. Mesmo no período mencionado, poderíamos listar o passeio da ministra Ideli Salvatti em helicópteros do Samu ou o gasto elevado e ineficiente no Ministério da Cultura na feira do livro de Frankfurt.

É normal e saudável que exista uma certa assimetria entre os atores políticos e a sociedade civil. Claude Lefort, em A Invenção Democrática, por exemplo, afirma que a diferenciação entre sociedade e Estado é a grande conquista da democracia moderna, justamente porque ela cria o campo dos direitos como algo a ser constantemente afirmado e reconquistado pela sociedade contra o Estado. Uma completa assimilação da sociedade pelo corpo político resultaria em totalitarismo.

(O mesmo valeria ser dito em relação ao mercado. Karl Polanyi, em sua A Grande Transformação, estabelece uma dicotomia não entre sociedade e Estado, mas entre sociedade e Mercado, considerando o Estado um espaço de defesa da sociedade. Habermas, de forma muito mais abrangente em sua Teoria do Agir Comunicativo, apresenta a Política e o Mercado como dois sistemas que buscam colonizar o mundo da vida da sociedade. A vantagem do modelo de Habermas é tratar tanto o Mercado quanto o Estado como sistemas diferenciados da sociedade, mas que mantém com ela vasos comunicantes.)

O ponto é que na democracia a relação assimétrica agente-principal estabelecida entre sociedade e políticos se resolve por meio de vasos comunicantes institucionais, por meio dos quais os atores sociais fazem valer seu interesse ou seu direito contra os desvios dos atores políticos. No Brasil de 2013, parece que estes vasos comunicantes não estão funcionando como deveriam.

Um dos vasos comunicantes que funcionam mal no Brasil são os partidos políticos. Como bem lembrou Hugo Silva em seu artigo recente neste Amálgama, falta democracia intrapartidária. A única experiência recente de um partido de massas com democracia interna no Brasil, o PT, tem nos últimos dez anos se auto-engessado e eliminado os espaços internos de debate. O PSOL apresenta espaços de debate, mas que na prática são campos de disputa entre suas tendências internas, todas grupos com perfil bolchevique em maior ou menor grau, o que significa uma atuação centralizada. Com isto, também aqui o debate não flui, e as chances de um reles militante de base influir nos rumos do partido tende a zero. O Rede se apresentava como uma opção de democracia interna, mas a forma como Marina Silva aderiu a Eduardo Campos mostra que também neste caso a democracia interna não passa de ilusão.

A democracia intrapartidária é um elemento vital da democracia europeia e norte-americana. Ela permite que um desconhecido Obama vença a candidata da direção do partido democrata e se torne o presidente da República. O mesmo pode ser dito da conservadora Tatcher em relação ao seu partido no Reino Unido. Mecanismos como primárias e caucus tornam real a possibilidade de viradas de mesa pela base dentro dos grandes partidos. E, como Weber lembra em seu ensaio A Política como Vocação, estes mecanismos surgiram junto com o fortalecimento das máquinas eleitorais. No Brasil, as máquinas eleitorais tornaram os partidos verdadeiras capitanias hereditárias, cada uma comandada por seu coronel.

Outro vaso comunicante pouco eficiente são os canais de democracia direta. Estes, evidentemente, funcionam mal porque assim interessa aos donos do poder. E funcionam mal porque a nossa cultura é de pouca participação política. Vejamos o caso dos projetos de lei de iniciativa popular. Para serem exequíveis, demandam do Congresso a conferência das assinaturas coletadas, em um processo semelhante ao do TSE para criação de partidos. A diferença é que, ao contrário da hipocrisia da Justiça eleitoral que diz acreditar na capacidade dos cartórios eleitorais conferirem as assinaturas com precisão, a Câmara admite que não consegue fazê-lo. Nas Assembleias estaduais, falta até mesmo este pouco de informação que a Câmara Federal disponibiliza.

Cito o caso da iniciativa popular porque desde agosto estou mantendo uma proposta em consulta pública na internet. Apesar de toda a campanha que fiz nas redes sociais, especialmente junto a usuários de transporte público, a audiência ao projeto foi simplesmente um desastre. Sequer recebemos críticas, apenas sugestões de amigos mais próximos. Os interessados não se moveram para comentar – pergunto-me se estariam dispostos a assinar.

Em momentos como o que estamos passando, resta à sociedade dois caminhos. Um é se adaptar à dor de não ser ouvido. Outro é agir para fazer valer os vasos comunicantes institucionais que obrigam os nossos representantes a se afinarem aos nossos interesses. Para isso, é necessário confiança, liderança e vontade. Mas sinto que às classes mais favorecidas falta vontade, e às menos favorecidas, liderança e confiança.

Paulo Roberto Silva

Jornalista e empreendedor. Mestre em Integração da América Latina pela USP.

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