Parte das críticas à classe média também se aplica perfeitamente ao PT
1.
Este texto nasceu de um desconforto com a facilidade com que se critica a classe média atualmente – ou melhor, da facilidade com que a classe média critica a si própria. Da Carta Capital ao Zero Hora, estamos todos prontos para apontar o conservadorismo, o preconceito, a burrice e a breguice dos cidadãos de classe média. Tenho de reconhecer que, muitas vezes, é difícil discordar dessas críticas. Ocorre apenas que, quando se elege uma classe social como bode expiatório dos problemas do país, algo me diz que vale a pena, no mínimo, olhar para as críticas a esta classe com alguma desconfiança.
Ao refletir sobre as manifestações que vêm ocorrendo desde junho, cheguei à conclusão de que, em um sentido bastante concreto e nada irônico, a classe média efetivamente sofre. Minha tese é de que a classe média tradicional – aquela que conquistou sua posição privilegiada antes da ascensão do lulismo (Souza & Lamounier, 2010) – apresenta traços defensivos tanto melancólicos como maníacos. Serei obrigada, então, a fazer uma breve incursão pela psicanálise para explicar como Freud compreende a melancolia – deixarei para abordar a mania mais adiante.
Para Freud (1917/2006), a melancolia se assemelha ao estado de luto, diferenciando-se dele por uma única característica. O luto seria resultado da perda de um objeto, sendo que tanto “perda” quanto “objeto” devem ser compreendidos aqui em um sentido amplo: a perda não se restringe à morte em senso estrito, mas pode ser uma perda de natureza mais ideal; da mesma forma, o objeto tanto pode ser uma pessoa como algo mais abstrato, como a pátria, a liberdade etc. Comparando o quadro clínico do luto àquele que se verifica na melancolia, Freud percebe uma única diferença entre eles: o distúrbio na autoestima, presente nesta e ausente naquele. Os melancólicos tendem, sem razão aparente, a se autorrecriminar e autovilipendiar.
O que Freud descobre é que essas autorrecriminações não são aleatórias:
Ao ouvirmos pacientemente as múltiplas auto-recriminações do melancólico, não temos como evitar a impressão de que as mais graves acusações com freqüência não se encaixam exatamente à própria pessoa, mas que – com insignificantes modificações – se aplicam perfeitamente a uma outra pessoa que o doente ama, amou ou deveria amar. Sempre que se examinam mais a fundo esses conteúdos, o doente acaba por confirmar essa suposição. Assim, tem-se nas mãos a chave para o quadro da doença: as auto-recriminações são recriminações dirigidas a um objeto amado, as quais foram retiradas desse objeto e desviadas para o próprio Eu. (Freud, 1917/2006, p. 107)
As lamúrias do melancólico indicam, portanto, que este sente ter sofrido algum tipo de injustiça pelo ente amado que foi perdido. Freud resume bem essa ideia na seguinte passagem:
Havia ocorrido uma escolha de objeto, isto é, o enlaçamento [Bindung] da libido a uma determinada pessoa. Entretanto, uma ofensa real ou decepção proveniente da pessoa amada causou um estremecimento dessa relação com o objeto. O resultado não foi um processo normal de retirada da libido desse objeto e a seguir seu deslocamento para outro objeto, mas sim algo diverso (…). O que se seguiu foi que o investimento de carga no objeto se mostrou pouco resistente e firme e foi retirado. A libido então liberada, em vez de ser transferida a outro objeto, foi recolhida para dentro do Eu. Lá essa libido não foi utilizada para uma função qualquer, e sim para produzir uma identificação do Eu com o objeto que tinha sido abandonado. (Freud, 1917/2006, p. 108)
O Eu, portanto, identifica-se ao objeto perdido e desloca para si próprio críticas que deveriam ser dirigidas ao objeto. Mas o curioso é que, concomitantemente a essa depreciação do eu, ocorre também a idealização do objeto que se perdeu. Posto de forma esquemática, é como se o melancólico dissesse: “não foi o objeto que me decepcionou: sou eu o culpado de tudo”. A melancolia, segundo Ogden (2005), é fruto justamente da impossibilidade de encarar a dor da perda do objeto amado. Ao se autorrecriminar, o melancólico preserva o objeto em uma posição idealizada, negando sua morte.
Esse pequeno panorama conceitual é suficiente para resgatar a ideia que pretendo desenvolver. Minha tese é de que a classe média tradicional sofre de melancolia e de mania – mas qual seria o objeto cuja perda ela é incapaz de elaborar?
Antes que se prossiga, é preciso fazer a ressalva de que a classe média tradicional está longe de ser um grupo homogêneo, constituindo, segundo Lamounier & Souza (2010), cerca de 16% da população brasileira. Neste vasto contingente, podemos identificar desejos e aspirações não apenas diversos como muitas vezes conflitantes entre si.
Identificamos a perda – lembrando que Freud considera que não apenas pessoas, mas também ideais, constituem objetos passíveis de perda – do Partido dos Trabalhadores, tal como foi constituído em 1980, agregando as aspirações de diversos movimentos sociais.
Os dois mandatos de Lula, segundo Singer (2012), caracterizaram-se por uma espécie de “formação de compromisso” entre os ideais de 1980 e a Carta ao Povo Brasileiro de 2002, que dava garantias ao capital. Se, por um lado, adotaram-se muitos aspectos da tão criticada política econômica neoliberal implementada por FHC, por outro lado de fato foram promovidos avanços significativos que estavam previstos no programa histórico do Partido dos Trabalhadores.
Pode-se dizer que a avaliação de Nobre (2013) coincide com a de Singer em que os ideais da época da fundação do partido diluíram-se com sua chegada ao poder, mas a ênfase de Nobre recai sobre as alianças feitas pelo PT, enquanto Singer aborda mais detidamente a política econômica do lulismo. O conceito-chave, para Nobre, é o peemedebismo: uma blindagem do sistema político contra a sociedade caracterizada pela aliança de forças díspares de modo a obscurecer os conflitos de interesses entre elas, garantindo, assim, a governabilidade. Enquanto em uma democracia plena vigora o conflito direto de interesses à luz do dia, o peemedebismo caracteriza-se pela conciliação de interesses diversos por meio de alianças e conchavos.
Nobre observa que, em sua fundação, o PT distanciava-se do peemedebismo, tendo se recusado a participar da eleição indireta de janeiro de 1985 que elegeu como presidente Tancredo Neves tendo como vice José Sarney, notório apoiador da ditadura militar. Mas o partido que por tanto tempo foi o “representante por excelência do antipeemedebismo” (Nobre, 2013) aderiu a ele a partir do escândalo do mensalão, e as ferramentas de blindagem peemedebistas acentuaram-se na presidência de Dilma Rousseff, segundo o autor.
Estamos de acordo com Nobre (2013) quando afirma que o peemedebismo entra em crise com as manifestações de 2013. Quando nos referimos à morte simbólica do PT, estamos nos referindo ao partido como organização político-partidária permeável às demandas da sociedade por um país mais justo – isto é, o oposto do peemedebismo, que se caracteriza justamente pela blindagem à sociedade em nome da governabilidade. Nesse sentido, a ausência de diálogo do governo federal com os movimentos sociais é notável – para ficar em apenas dois exemplos bastante significativos, a presidenta recebeu os movimentos indígena e LGBT pela primeira vez somente após as manifestações este ano.
Em suma, o aumento do poder de consumo dos mais pobres que marcou o governo Lula não parece mais suficiente para garantir o respaldo popular – ou, pelo menos, da classe trabalhadora que ascendeu a partir do lulismo – ao PT. Se, por um lado, as manifestações questionam as formas de representação política em vigor (com várias Câmaras municipais sendo ocupadas, por exemplo), por outro, é curioso notar que os manifestantes reivindicam justamente uma participação maior do Estado em suas vidas, com mais e melhores investimentos públicos – algo que a própria presidenta reconhece em seu pronunciamento à nação de 24/06.
Bandeiras tradicionais da esquerda, como a universalização dos sistemas públicos de saúde e educação, são levantadas nas ruas tanto por aqueles que dependem desses sistemas públicos e não têm acesso a saúde e educação de qualidade como por integrantes da classe média que, certamente, têm condições de pagar por serviços particulares. As manifestações parecem mostrar que, se o PT foi competente em gerar e distribuir renda para os mais pobres, não foi capaz de melhorar a qualidade dos serviços públicos de forma mais ampla. Nesse sentido, parece significativo que o estopim das manifestações tenha sido a questão do transporte público, em um momento em que cada vez mais pessoas têm condições de adquirir seu próprio automóvel particular. Senão o país, pelo menos as grandes cidades chegaram a um curioso impasse: de que adianta todos termos condições de pagar por automóveis particulares se, dado que o transporte público é insuficiente e precário, todos ficaremos presos no trânsito?
Se o fato de que agora mais pessoas têm renda suficiente para adquirir automóveis particulares é uma conquista louvável do governo Lula, essa conquista por si só não está mais dando conta dos sonhos e aspirações da população. Aqui, acreditamos que é possível generalizar para além da classe média: o acesso a serviços públicos de qualidade é uma aspiração geral, tanto da classe média quanto da classe trabalhadora.
É isto, portanto, o que se perdeu: um partido de esquerda combativo que ouve as reivindicações da população, que não se resigna a alianças esdrúxulas em nome da governabilidade e que luta pela implementação de serviços públicos de qualidade para todos. Nesse sentido, parte da classe média pode com razão afirmar que sofreu uma “ofensa real ou decepção” (Freud, 1917/2006, p. 108) com o Partido dos Trabalhadores.
A reação de parte da classe média tradicional à perda do objeto que lhe desapontou é claramente melancólica, com recriminações que caberiam perfeitamente ao PT sendo direcionadas, em vez disso, a si mesma. Não deixa de ser surpreendente que a classe média, alvo de tantas críticas, seja tão criticada justamente por integrantes da própria classe. Isto não significa, naturalmente, que todas as críticas à classe média feitas por seus integrantes sejam desprovidas de sentido; gostaríamos apenas de chamar a atenção para o fato de que parte delas, no mínimo, também se aplica perfeitamente ao PT.
2.
Tomemos como exemplo dois casos paradigmáticos das autorrecriminações melancólicas da classe média, provenientes de dois emissores tão mais impressionantes quanto distintos em suas formas de enunciação: de um lado, o tumblr Classe Média Sofre, que se vale da ironia para criticar afirmações vistas como típicas de membros da classe média; de outro, a professora Marilena Chaui, uma das pensadoras mais importantes e respeitadas do país. Em comum, o fato de tanto os colaboradores do tumblr quanto Chaui pertencerem à classe média tradicional.
Vejamos o caso do Classe Média Sofre. Criado em 2011, o tumblr pode ser definido como uma compilação de postagens em redes sociais que expressam preconceito de classe, sempre acompanhadas de comentários irônicos. O site tornou-se um sucesso e a expressão “classe média sofre” foi popularizada. Queixas sobre os pobres, que passaram a coabitar espaços até então restritos à classe média tradicional, preencheram as páginas do tumblr com enorme rapidez, já que o site passou a contar com inúmeros colaboradores anônimos que o alimentavam com verdadeiras pérolas do preconceito de classe. A quantidade das postagens comprova o vergonhoso e tacanho conservadorismo da classe média, que se regozija ao chamar Lula de analfabeto e bolsa família de bolsa esmola. A própria existência do site e seu grande sucesso, porém – lembremos que o Classe Média Sofre critica tal preconceito fazendo uso da ironia –, é prova de que no interior dessa camada são muitos os que discordam de tal postura.
Mas não são apenas exemplos de preconceito de classe o que se encontra no Classe Média Sofre. Uma rápida olhada em suas tags revela que os colaboradores também criticam jargões racistas e homofóbicos. Esse conjunto de características enquadra a genérica categoria de classe média. Como os próprios criadores do site dizem, “para fins desse tumblr, a expressão ‘classe média’ é definida da maneira mais ampla possível como ‘todos os brasileiros, menos os mais nababescamente ricos e os mais abjetamente miseráveis’. O blog poderia se chamar ‘Geração Mimimi’ ou ‘Brasileiro Sofre’ e seria exatamente igual.”
Pois bem: o site poderia se chamar outra coisa, mas não se chama. Denominado classe média sofre, indica que é a ela que todos esses preconceitos são atribuídos. Existe aqui pelo menos uma crítica feita à classe média que faria mais sentido se aplicada ao PT. No texto de apresentação do site, os colaboradores afirmam: “A pobre classe média brasileira escorchada-de-impostos sofre. (…) Carrega esse país nas costas e o que ganha em troca? Nada. Literalmente nada. E ainda tem que pagar do próprio bolso a escola particular, o hospital particular, tudo.”
Naturalmente, a ideia de que a classe trabalhadora se aproveita do suado dinheiro dos impostos pagos pela classe média (como se apenas a classe média trabalhasse e gerasse riqueza) é tão obviamente ideológica que nem vale a pena ser analisada e desconstruída. Mas o texto não para por aí: a próxima frase faz troça da queixa da classe média por ter de pagar por escola e hospital particular.
Minha questão é: e quem disse que a reivindicação por saúde e educação pública e de qualidade não é absolutamente legítima? Não é uma reivindicação histórica da esquerda? Quando foi que sonhar com um país com serviços públicos de qualidade virou motivo de escárnio? Parece-nos que, em vez de a classe média criticar a si própria (os próprios criadores do tumblr afirmam que este “não pode ser visto como crítica, mas autocrítica”) por querer não mais pagar por escola e hospital particulares (como se se tratasse de uma reivindicação absurda ou como se isso fosse tão ideológico quanto as críticas rasteiras ao Bolsa Família), muito mais pertinente seria criticar um governo que, a despeito do óbvio avanço na redistribuição de renda que promoveu, pouco avançou no que se refere à qualidade e alcance dos serviços públicos prestados (e aqui, além de saúde e educação, entram também transporte, segurança, saneamento básico1).
Passemos ao segundo e mais emblemático exemplo. Em livro comemorativo dos dez anos de governo petista (Sader, 2013), Marilena Chaui narra três crônicas que ilustram a face odiosa da classe média. Duas delas tiveram grande circulação na mídia: a oposição de moradores de Higienópolis à construção de estação de metrô no bairro, que traria “gente diferenciada” (isto é, pobre) para a região, e a queixa de pessoas de classe média alta para quem os aeroportos estariam lotados graças ao governo, que os “entupiu […] com a gentalha que deveria estar nas estações rodoviárias, onde é o seu lugar!” (Chaui, 2013, p. 133).
É uma história particular o que compõe a terceira crônica. Nela, a narradora-personagem reclama do local no qual um casal de classe média estaciona o carro, obstruindo outras vagas. Diante do protesto, o homem responde: “Você pensa que eu vou estacionar o meu Mercedes em qualquer lugar?” (p. 134), o que Chauí avalia como fascista, chamando o interlocutor de abominação política. Quando a mulher do casal a agride fisicamente, a filósofa a qualifica como abominação ética. Finalmente, ao ser xingada de velha e feia, considera o interlocutor uma abominação cognitiva, chegando à seguinte conclusão: “a classe média é uma abominação política, porque ela é fascista; ética, porque ela é violenta; cognitiva, porque ela é ignorante. (Chaui, em palestra proferida em 16 de maio de 2013, no lançamento do livro organizado por Sader)”.
Trata-se de uma crítica à classe média feita a partir de seu próprio interior, já que Chaui também pertence a este segmento da sociedade. É curiosa a atribuição dessas características à classe média, dado que certamente tais adjetivos aplicam-se não só a ela como também a outros grupos. Por que tamanha ênfase ao direcioná-los à classe média? Seria ela a responsável por todos os problemas do país? Será que, depois de uma década no poder, o governo do PT não deveria ser alvo de críticas mais contundentes por parte da esquerda? O intrigante é que esses julgamentos podem visivelmente se voltar contra o PT.
Falemos, primeiramente, do fascismo. Na crônica de Chaui, o termo é usado como xingamento pela narradora quando o dono da Mercedes, no melhor estilo “quem você pensa que é / sabe com quem você está falando”, coloca-se em posição de autoridade frente à sua interlocutora. O termo fascismo, que pode assumir tantos significados, aqui aparece sinônimo aproximado de autoritarismo. Ora, se é de autoritarismo que estamos falando, o que dizer de um governo que corta o ponto de servidores federais em greve, não se pronuncia sobre a violência perpetrada pelas diversas polícias estaduais na repressão às manifestações (o que, na prática, significa endossá-la) e convoca o Exército para garantir o leilão do pré-sal?
Quando o assunto é ignorância, como interpretar a afirmação da presidenta de que o governo “não faz propaganda de orientação sexual”? Tal declaração, feita diante de um dos cenários mais impactantes em relação a homofobia no Brasil, contrasta com o que recentemente ocorreu no Chile. Enquanto lá um único caso de morte por homofobia provocou comoção nacional e pronunciamento público do presidente condenando o crime, no Brasil o governo federal se cala quando o país ocupa o primeiro lugar no ranking mundial de assassinatos homofóbicos, concentrando 44% do total de homicídios por opção homossexual. Além disso, como se sabe, o governo mantém laços estreitos com os setores conservadores da Igreja Evangélica, que ferrenhamente se opõem à abertura para o debate sobre esse urgente e gravíssimo problema.
Por fim, se o assunto é violência, não podemos deixar de mencionar aquela que é infligida às populações indígenas. No período de 2003 a 2012 (governos Lula e Dilma), o número médio de assassinatos a indígenas a cada ano aumentou 173%, se comparado com o período de 1995 a 2002. Um exemplo recente é o assassinato pela Polícia Federal de um índio da etnia terena, cujo único “crime” foi reivindicar pacificamente seu direito à terra. Além disso, segundo o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), houve aumento de 48% nas ocupações ilegais de TIs entre 2011 e 2012. Vale notar também que, juntos, os governos Lula e Dilma demarcaram menos terras que seus antecessores desde a redemocratização. E, para deixar ainda mais claro de que lado o governo federal está, as regras da demarcação de terras indígenas serão modificadas para contemplar os interesses dos produtores rurais.
Para ficar em apenas mais um exemplo, a construção da Usina de Belo Monte, projeto herdado da ditadura militar, também vem sendo acompanhada de incontáveis violências e desrespeito aos direitos de populações indígenas e ribeirinhas. O governo recusou-se a realizar as Oitivas Indígenas, em que os indígenas deveriam ser informados objetivamente sobre a obra e seus impactos e, além disso, deveriam ter sua opinião ouvida e respeitada. Com isso, descumpriu-se sumariamente a Constituição e a Convenção da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário.
Ressalte-se que o fato de certas críticas feitas à classe média serem pertinentes não implica a idealização das outras classes. Mais uma vez: por que ela é escolhida entre todas? Se a bancada evangélica chegou ao poder, isso não resulta do voto da antiga classe média, mas de concessões feitas pelo PT a políticos eleitos com o voto da classe trabalhadora. E o que dizer dos grandes donos de terra? Essa parcela, que recebe apoio do governo e paira longe da classe média, age de modo criminoso na ocupação de terras indígenas. É por tal razão que o destaque raivoso dado à classe média só pode chamar a atenção de quem se propõe a olhar para o fenômeno desde um ponto de vista psicanalítico. Afinal, o que é o seu conservadorismo ridículo ou até mesmo pernicioso perto de um governo que concede poderes inauditos às bancadas evangélica e ruralista?
Parece que parte da classe média de esquerda e intelectualizada recusa-se a perceber que o PT se tornou um partido cuja prática pouco difere daquelas que, em sua fundação, visava combater. Reconhecer esse fato não significa ignorar as razões históricas que poderiam situá-lo. Também não se trata da defesa do mero abandono do partido para aqueles que nele militam. Elaborar o luto da morte do PT não implica forçosamente apoiar outro partido – significa simplesmente admitir que o espaço para práticas de esquerda dentro do PT é estreito e aceitar que nem todas as críticas que a ele se dirigem são fruto de mero preconceito. Ou seja: nem todas as manifestações contrárias ao partido nascem de pessoas que não suportam ver pobres invadindo aeroportos ou um torneiro mecânico ocupando a presidência. Já é hora de reconhecer que o PT não faz concessões e alianças esdrúxulas tendo em vista uma agenda de esquerda – essa agenda foi esquecida e abandonada pelo partido.
3.
Passemos agora ao estado de espírito que seria o contraponto da melancolia: a mania. Nela, “(…) cada um dos conflitos de ambivalência afrouxa a fixação da libido ao objeto, desvalorizando-o, rebaixando-o, como que matando-o a pancadas” (Freud, 1917/2006, p. 115). Assim, se na melancolia temos a depreciação do eu e a idealização do objeto que se perdeu, na mania, inversamente, o desdém é dirigido ao objeto, estando a idealização reservada ao eu. Melanie Klein desenvolve a noção de mania em um sentido que, segundo Ogden (2005), está pressuposto no texto de Freud, especificamente no trecho que acabamos de citar: o controle, o desprezo e o triunfo sobre o objeto são os elementos que constituem a tríade kleiniana da mania e podem ser vislumbrados nessa primeira descrição de Freud do tratamento que o eu confere ao objeto perdido.
É importante notar que, do ponto de vista de Ogden (2005), tanto a melancolia quanto a mania são estratégias simetricamente opostas para dar conta de um mesmo problema: a perda do objeto amado. De forma esquemática, é como se a pessoa maníaca, negando a importância do objeto, afirmasse: “e daí que o objeto morreu? Afinal, ele era desprezível!”
Parece-nos, assim, que a perda do PT, nos termos que descrevemos anteriormente, gerou também uma reação maníaca em outra parcela da classe média. Nada poderia expressar melhor a idealização do eu própria da defesa maníaca do que o grito entoado por manifestantes da classe médica contra o programa Mais Médicos do governo federal: “Somos ricos, somos cultos! Abaixo os corruptos!”
Quando estes manifestantes falam em corruptos – termo frequentemente grafado como “corruPTo” –, sabemos bem a quem estão se referindo. O protesto contra a corrupção não é, necessariamente e a princípio, um protesto que vai contra os ideais da esquerda: assim como reivindicações por saúde e educação, o protesto contra a corrupção – entendido como a reivindicação pelo gasto eficaz do dinheiro público – também pode ser considerada uma bandeira tradicional da esquerda. Sabemos, porém, que esta bandeira pode facilmente ser apropriada por grupos que tentam restringir a corrupção a uma única categoria social (i.e. os políticos, ignorando a corrupção em outras instituições que contam com servidores públicos, como a Justiça, a Polícia Militar, etc.), ignoram a existência de corruptores e consideram o mensalão uma espécie de Marco Inaugural da Corrupção no Brasil – elegendo, na prática, o Partido dos Trabalhadores como bode expiatório para todo mau uso do dinheiro público jamais efetuado no país.
No grito de guerra dos manifestantes médicos, temos a lógica da mania explicitada: a idealização do eu (“somos ricos, somos cultos”), acoplada à desvalorização do objeto (o PT), que é reduzido a uma única (e obviamente condenável) característica: a prática da corrupção. Mas desvalorizar o objeto não significa apenas ressaltar um ponto negativo: para focar um objeto, é necessário desfocar todo um contexto. Ao fazer a equivalência PT = corrupção, os manifestantes não apenas ignoram, de forma seletiva, tantos outros esquemas de corrupção que contaram com o envolvimento de outros partidos políticos; a equivalência PT = corrupção ignora também avanços que só foram possíveis devido a ações concretas do PT durante o governo Lula. Como mostra Singer (2010), não se pode considerar a brutal queda na desigualdade de renda registrada durante o governo Lula como fruto apenas do boom das commodities; houve uma clara política de distribuição de renda do governo federal, o que não se observou em governos anteriores.
A seletividade dessa operação maníaca, que ignora todos os aspectos positivos do objeto para focar (e exagerar) um único ponto condenável, não se aplica apenas ao objeto perdido, mas também ao eu. Ao se considerar “ricos e cultos”, é de se supor que os manifestantes, representantes-mor da reação maníaca da classe média à perda do PT, considerem-se dignos de alguns privilégios em um país repleto de pessoas clamando por saúde e educação. De fato, parece que os manifestantes pedem por saúde e educação para todos… Desde que esse “todos” sejam apenas eles mesmos: quando surgem propostas concretas para ampliar a oferta de serviços de saúde (caso do programa Mais Médicos) ou garantir direitos a uma categoria de trabalhadoras (caso da PEC das domésticas), parte da classe média rebela-se e afirma estar sendo prejudicada em seus direitos.
Não é novidade para ninguém que distribuir renda significa mover os recursos concentrados. O governo Lula foi hábil ao conseguir promover a ascensão da classe D sem abalar os “andares de cima”. Com o fim do boom das commodities, parece que, se o país quiser continuar caminhando no sentido de uma sociedade mais justa, a classe média terá de abrir mão de alguns de seus privilégios – coisa que nem sempre parece estar disposta a fazer.
Vale resumir o que desenvolvemos até aqui: diante do fim simbólico do PT enquanto partido permeável às demandas de sua base de sustentação original – isto é, um partido preocupado em promover a justiça social –, parte da classe média reage de forma melancólica e parte de forma maníaca. A reação melancólica envolve o enaltecimento do objeto (com a exaltação das melhorias conquistadas nos governos do PT e a recusa a quaisquer críticas que lhes sejam direcionadas) e a depreciação do eu (as insistentes críticas à classe média). Já a reação maníaca envolve a depreciação do objeto (o PT visto unicamente como um partido de incompetentes e corruptos, sendo-lhe recusado qualquer papel na diminuição da desigualdade social observada no país) e o enaltecimento do eu (“somos ricos, somos cultos”).
A única saída para este impasse, como ensina Freud, é a dolorosa e paciente elaboração do luto. Novas formas de mobilização política – novas formas de investimento libidinal, portanto – implicam necessariamente a elaboração psíquica do que o Partido dos Trabalhadores representa e representou para a história do Brasil.
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Referências
Chaui, M. (2013). Uma Nova Classe Trabalhadora. In: E. Sader (org.), 10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil – Lula e Dilma. São Paulo: Boitempo Editorial.
Freud, S. (2006). Luto e melancolia. In: S. Freud, Escritos sobre a psicologia do inconsciente (L. Hans, trad., Volume II: 1915-1920, pp. 99-122). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1917)
Nobre, M. (2013). Choque de democracia – Razões da Revolta. São Paulo: Companhia das Letras. [Edição Kindle]
Ogden, T. (2005). This art of psychoanalysis: dreaming undreamt dreams and interrupted cries. Londres & Nova York: Routledge.
Sader, E. (org.) (2013). 10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil – Lula e Dilma. São Paulo: Boitempo.
Singer, A. (2012). Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras. [Edição Kindle]
Souza, A. & Lamounier, B. (2010). A Classe Média Brasileira. Ambições, valores e projetos de sociedade. Rio de Janeiro: Elsevier; Brasília, DF: CNI.
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¹ Singer (2010) levanta uma discussão interessantíssima sobre os reais avanços conquistados pelo governo Lula. Citando dados do IPEA, o autor afirma que o percentual de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza absoluta no Brasil – isto é, com renda inferior ao valor de uma cesta de alimentos contendo o mínimo de calorias necessárias para suprir uma pessoa de acordo com os critérios da FAO – caiu de 36% para 23% entre 2003 e 2008. Concomitante a isso, o salário mínimo teve um aumento real de 33% no mesmo período. Contudo, Singer discorda de que essas mudanças, embora extremamente significativas, representem o ingresso da quase totalidade da população na classe média ou sejam o equivalente brasileiro do “New Deal” americano. Ele faz as devidas ressalvas a essa leitura apressada dos fatos enfatizando que a renda é apenas um – embora certamente muito importante – dos critérios de mensuração da pobreza, que deveria ser entendida como a “privação de capacidades básicas” (Veiga apud Singer, 2010). A falta de acesso ao esgotamento sanitário por 56% da população brasileira constituiria, assim, um claro indicador de pobreza.
Camila Pavanelli
Doutoranda em Psicologia Social na USP.