O encontro criacionista ocorre esta semana. Por que a Unicamp empresta seu prestígio a um evento desse tipo?
[Atualização, 14/10/13: O Fórum de Filosofia e Ciência das Origens foi cancelado (leia abaixo para entender). Segundo fui informado, a decisão de suspendê-lo foi tomada ainda na semana passada, mas por algum motivo a página continuava no ar. Hoje foi retirada. A administração central da Unicamp está de parabéns por ter tomado a decisão mais acertada para esse caso. Infelizmente não foi a primeira nem será a última vez que criacionistas e adeptos do intelligent design tentarão buscar credibilidade nas universidades brasileiras.]
Mais do que tentar angariar novos adeptos, o movimento criacionista e de “intelligent design” no Brasil busca desesperadamente ser reconhecido como ciência. Não é por outro motivo que instituições de ensino superior confessionais ligadas a denominações protestantes promovem periodicamente eventos supostamente científicos onde chamam “especialistas” para debater o que eles entendem por darwinismo ou por “ciência das Origens”.
Eu já me manifestei sobre o triste caso da Universidade Presbiteriana Mackenzie aqui e aqui. O evento “Darwinismo Hoje” já chegou na sua quarta edição, sempre com os mesmos palestrantes dedicados a negar Darwin e com a mesma irrelevância científica. Não deixa de ser triste que uma universidade privada brasileira, que está construindo o que espera que venha a ser uma referência mundial em pesquisas com grafeno, coloque sua reputação como instituição científica em risco por esse tipo de iniciativa que agrada aos religiosos fundamentalistas mas não contribui em nada para o avanço da ciência ou do próprio criacionismo – dado que para ele todas as respostas já estão escritas. Universidades confessionais protestantes americanas de primeira linha como Harvard, Princeton ou Yale jamais permitiram que um evento desse tipo ocorresse em suas dependências. Recentemente o Centro Universitário Adventista de São Paulo organizou o encontro criacionista O Universitário Cristão e as Origens, repetindo os mesmos palestrantes e os mesmos argumentos.
Há alguns anos duas palestras foram proferidas por um criacionista americano na Unicamp. Na ocasião, juntamente com colegas, conseguimos deixar claro que não se tratava de um evento oficial da Unicamp e o logotipo da Unicamp que estava no cartaz foi retirado. De lá para cá, pelo menos por 3 vezes foram canceladas palestras criacionistas em diferentes institutos da Unicamp e no encontro da SBPC que ocorreu na universidade. Eu sempre defendi o direito dos criacionistas de terem e defenderem sua opinião e a propagarem dentro de suas igrejas, na imprensa ou na mídia, ao mesmo tempo que mantenho que criacionismo não deve ser validado nem ter espaço na universidade.
Por isso causou-me surpresa que a administração central da Unicamp, uma universidade pública e prestigiada como uma das melhores do Brasil, esteja dando suporte institucional para um evento criacionista que ocorrerá dia 17/10 dentro da série de debates chamados de Fóruns Permanentes. Trata-se do 1º Fórum de Filosofia e Ciência das Origens (espero que seja também o último!). [Atualização, 14/10/13: o evento foi cancelado.]
Esse evento chama a atenção por vários aspectos que destoam de uma atividade acadêmica em uma universidade de ponta. Não há nenhum docente da Unicamp na comissão organizadora, e nenhum dos funcionários envolvidos trabalha com pesquisas no tema. Como mostrarei a seguir, nenhum dos palestrantes tem um perfil acadêmico compatível com essa universidade, exceto pelo Professor Marcos Eberlin, do Instituto de Química da Unicamp, que participará da sessão de abertura. O Prof. Eberlin é um reconhecido pesquisador na sua área de atuação, com um expressivo reconhecimento pela comunidade, e é autor ou coautor de mais de 420 artigos publicados em revistas de seletiva política editorial – nenhum deles sobre criacionismo ou intelligent design! Vale notar que o Prof. Eberlin é um assíduo participante nos eventos já citados no Mackenzie e na UNASP.
As duas primeiras palestras estão a cargo do Prof. Russell Humphreys, que tem um doutorado em Física e foi professor associado no Institute for Creation Research. Seu currículo contém patentes e publicações em periódicos de seletiva política editorial, especialmente na área de instrumentação, mas também vários artigos delirantes, publicados em revistas criacionistas, que pretendem mostrar pela teoria da relatividade que a Terra foi criada em 6 dias e não tem mais que 6 mil anos (coincidentemente os tempos prescritos nas sagradas escrituras), que ocorreu um dilúvio (idem) durante o qual o campo magnético da Terra foi invertido várias vezes fazendo com que os fósseis pareçam mais antigos do que realmente seriam, que o decaimento nuclear prova que o planeta tem entre 4 e 14 mil anos (idem) e que o voo do Pioneer mostra que Deus existe. Nenhum físico que se preza levaria esse tipo de trabalho a sério.
O evento continua com uma palestra do Prof. Nahor Neves, da UNASP, que é doutor em geociências. O Prof. Neves também é assíduo participante em eventos criacionistas. Dos seus 10 trabalhos publicados em periódicos, apenas um, o mais antigo, é em um periódico com seletiva política editorial – e o trabalho não é sobre criacionismo. O próximo palestrante, Prof. Rodrigo Silva, da UNASP, tem doutorado em Teologia Bíblica e apresenta semanalmente o programa Evidências na TV Novo Tempo. ele falará sobre Arqueologia e os mistérios das origens humanas. O último palestrante será o jornalista e escritor Michelson Borges, que não tem Currículo Lattes mas mantém os blogs Criacionismo e Michelson Borges. Borges vem tentando mostrar, sem sucesso, que criacionismo é ciência.
Por que a Unicamp empresta seu prestígio a um evento desse tipo, que estaria muito mais apropriadamente sediado em alguma igreja ou associação cristã?
Só consigo imaginar que trata-se de mais um esforço dos criacionistas para ganhar status de ciência. Todos os palestrantes compartilham a mesma visão de mundo baseada na leitura literal da Bíblia. Não existe a menor chance de ocorrer um debate. Mesmo que algum dos palestrantes fosse um cientista, não ocorreria um debate científico. Ao contrário da ciência, que elabora seus modelos em torno de resultados experimentais e fatos, os criacionistas buscam adaptar os fatos e resultados experimentais ao que prescreve a Bíblia judaico-cristã.
Eu não vou a esse evento e espero que os colegas cientistas façam o mesmo. Participar significa validar como ciência a anticiência dos criacionistas. Debater com eles é perda de tempo, pois não há evidência na Terra (ou no céu) que os faça rever seu modelo e suas posições, como os cientistas costumam fazer. Ao contrário, como muito bem faz o Prof. Humphreys, eles preferem mudar os fatos para adaptá-los ao modelo.
Esse evento não vai fazer da Unicamp uma universidade pior, mas vai mostrar que em nome da abertura para a diversidade de pensamento podemos nos expor a situações embaraçosas que deveriam ser evitadas. Universidades, museus e bibliotecas são (ou deveriam ser) os repositórios do saber. Até hoje a reputação da UnB é manchada pela existência do Núcleo de Estudos de Fenômenos Paranormais e pelo curso de extensão em Astrologia, a ponto de ter sido solicitado seu fechamento.
Leandro Tessler
Físico (UFRGS) Ph.D. (Universidade de Tel Aviv), Professor Associado do Instituto de Física Gleb Wataghin da Unicamp.