Roth demonstra os potenciais da honra como força capaz de desembrutecer o homem
“Acredite-me, nunca um alcóolatra ‘apreciou’ menos o seu álcool do que eu. Por acaso um epilético desfruta de seus ataques? Ou um louco dos seus surtos?”. Assim escreveu Joseph Roth em carta para Stefan Zweig datada de 22 de dezembro de 1933. Já estava em Paris, seu novo lar, após fugir do Terceiro Reich por ocasião da ascensão de Hitler – a quem o judeu Roth criticava abertamente. Carregava consigo a nefasta experiência de lutar na Primeira Guerra Mundial, tendo sido soldado no front oriental. À época já cultivava uma íntima relação com a bebida. Um dos grandes divisores de águas em sua vida foi o adoecimento da esposa Friederike Reichler. Era 1928 e ela, que já manifestava sinais de acentuada fragilidade emocional, finalmente apresentou sintomas do que seria diagnosticado em breve como esquizofrenia. O casal, até então, gozava de uma vida relativamente tranquila, ainda que não economicamente estável. Acredita-se que na década de vinte Roth foi o jornalista mais estimado da Alemanha. Certamente havia abandonado há tempos a categoria de promessa para se consolidar com uma carreira de respeito no Frankfurter Zeitung e galgando rapidamente os degraus do reconhecimento. A partir da doença da mulher um abismo se abriu sob os pés do escritor que, em queda livre, estreitou os laços com o álcool e até o fim de sua curta vida passou cada vez menos tempo sóbrio. Morreu de tuberculose, solitário e esquálido, atrelado a uma cama de hospital em 1939, sofrendo de delirium tremens, logo após terminar de escrever A lenda do santo beberrão. Não viu Friederike ser assassinada pelos nazistas no ano seguinte. O obituário de 7 de junho de 1939 do New York Times enaltece suas qualidades, elogiando principalmente os romances Jó e A marcha de Radetzky.
Este breve background histórico é importante para melhor compreender os dois romances que a Estação Liberdade lançou recentemente no Brasil: A lenda do santo beberrão e Hotel Savoy. Eles ocupam polos opostos em sua produção – Savoy foi seu segundo livro, embora o autor alegue ser o primeiro, e A lenda… o último. Ambos trazem similaridades, sobretudo em duas figuras arquetípicas bastante representadas nas obras: a imagem do andarilho sem rumo e a do salvador misterioso. Tanto o mendigo Andreas quanto o soldado Gabriel Dan correspondem aos alter egos andarilhos de Joseph Roth, ele mesmo um nômade. Ele dizia que seus únicos bens eram três malas que carregou consigo através de seis países. Mas quem são os salvadores? Vamos às histórias.
A lenda do santo beberrão é uma breve narrativa sobre Andreas, habitante miserável das ruas de Paris acostumado a adormecer sob as pontes do Sena. Procura viver um dia por vez aplicando seu escasso dinheiro naquilo que lhe é prioridade: a bebida. Certa manhã entra em cena a figura do salvador, um indivíduo elegante que se encontra com Andreas ao acaso, crente de sua benevolente posição enquanto mensageiro de Deus. Ao mendigo ele concede um generoso empréstimo em dinheiro, que deverá ser pago a Santa Terezinha na capela de Sainte Marie des Batignolles – mais por insistência de Andreas do que pela vontade do elegante cavalheiro. Em seguida o salvador desaparece e a partir daí a sorte muda para o anti-herói, em uma sucessão de acontecimentos insólitos que preenchem de absurdos a prosa de Roth, sempre repleta de surpresas. Como se contasse uma parábola o autor exagera sua própria experiência, flertando com características de movimentos literários ainda em estágio embrionário, como o Teatro do Absurdo.
O resgate do mendigo Andreas é o resgate de uma humanidade perdida entre dois capítulos nefastos da história – as duas Grandes Guerras -, ainda incerta de seus próprios passos no período mais nebuloso de nossa época. Pense na imagem de uma caixa de Pandora aberta que despeja todos os seus flagelos sobre a Europa. O protagonista de Roth é a personificação dessa Europa calamitosa, vulnerável e imprevisível. Mas, como no mito grego, ainda resta alguma esperança. Em A lenda do santo beberrão o escritor presta tributo ao único valor remanescente num homem que, como o solo europeu que lhe serve de cama e abrigo, já é pura ruína, mas jamais se esquece da sua honra, agarrado a ela com uma inocência quase infantil incomum em seu tempo. Joseph Roth demonstra os potenciais da honra como força capaz de desembrutecer o homem e ressignificar uma vida. A vida de Andreas só muda porque ele não se esquece do seu compromisso: devolver o dinheiro à santa. E é isso que dá sentido à sua vida e a coloca em movimento.
Já Hotel Savoy tem como protagonista Gabriel Dan, “judeu russo egresso de um campo de concentração na Sibéria”, como diz a informação na orelha do livro. Mas pouco se sabe sobre sua vida pregressa. O que se sabe é que a Europa ainda convulsiona, prostrada que está sobre os escombros da Primeira Guerra Mundial e as transformações da Revolução Russa. Gabriel chega ao hotel Savoy apenas com a sua bagagem, disposto a ficar alguns dias antes de seguir viagem. Descobre que o local é um palácio de desafortunados presos para sempre ao hotel pelo ciclo interminável de dívidas que ele gera. Chegaram de passagem, como Gabriel Dan, e ali criaram raízes. Mas, de alguma forma, essas raízes impostas por forças externas ajudaram os habitantes do hotel Savoy a forjar novos laços e identidades. Diz Gabriel a certa altura: “fui para o meu quarto como se tivesse reencontrado minha pátria” – e suas palavras não poderiam ser mais verdadeiras. Judeus errantes, dançarinas, trabalhadores, alguns nômades e excêntricos de toda sorte – todos encontram no hotel um abrigo apátrida, independentemente de seu país de origem. No pós-guerra as incertas fronteiras da Europa já não pertencem a ninguém.
A cidade ao redor também não possui encantos. Sob chuva eterna e céus cinzentos os funcionários de uma fábrica fazem greve, o esgoto corre livre sem canais para escoá-lo, e desempregados, andarilhos e soldados sem rumo ocupam as ruas com sua melancolia onipresente. Todos aguardam a vida de Henry Bloomfield, o milionário local, figura messiânica que, como Cristo, espera-se que traga uma boa nova e cure a população de suas infelicidades como Jesus fez com os leprosos. Roth transporta para as páginas de Hotel Savoy as impressões do que viu após lutar na Primeira Guerra. Sua narrativa é fria e distante como o olhar de um observador que jamais intervém.
Não nos interessa conhecer Gabriel Dan. Também não interessa buscar um enredo em Hotel Savoy. É um livro incomum e Joseph Roth um escritor atípico. A ação do livro é apenas uma sucessão de episódios relatados pelo personagem-narrador – por seus olhos somos também hóspedes e também esperamos pela salvação de Bloomfield. Não há uma cadeia de acontecimentos, nem início, meio e fim. Há um slice of life, narrativa de trechos da vida como ela é, do belo e do sórdido da mesma maneira.
É fato que Joseph Roth não é um escritor para todas as horas. Suas histórias não tem a pretensão de serem mais do que são, a mensagem é clara e objetiva, sem floreios retóricos e acessos de lirismo desnecessário. Não foi o glamour de uma vida literária e o reconhecimento que o fizeram se dedicar à arte da escrita. Seus livros não se destacam pela criatividade, mas por uma prosa leve e irônica, densa em sua simplicidade. Ele cria um mosaico de experiências em que cada palavra carrega em si um pequeno fardo de realidade. Destaca-se a influência do feuilleton, espécie de jornalismo produzida por Joseph Roth que consiste, em suas próprias palavras, em “dizer a verdade em meia página” – os capítulos de ambos os livros são curtos, especialmente em A lenda do santo beberrão. Sua preocupação é a transmissão da experiência através de uma verdade despida de sentimentalismos, e nisso reside o poder de sua narrativa. Observe o trecho a seguir, retirado de Hotel Savoy, que ilustra a passagem em que Gabriel Dan encontra outros soldados como ele, regressados da guerra:
É triste ver passar um, que não conheço, mas com quem dividimos a hora da morte. No momento mais cruel de nossas vidas, éramos um medo só – e agora não nos reconhecemos. Lembro-me de ter sentido a mesma tristeza, quando uma vez vi uma menina – encontramo-nos num trem – e não sabia se deveria dormir com ela ou só ter minhas roupas costuradas por ela.
Roth queria escrever sobre quem, na sua visão, não estava nos livros, ou não estava o suficiente. Seus personagens não são dados à reflexão. São, antes, vítimas de um maquinário oculto que os empurra como gado em direção a um abatedouro invisível mas eficiente, que os encontrará não se sabe onde e nem quando. Ele estava ao lado dos pobres e, apesar de ter seus primeiros escritos assinados como “Joseph Vermelho”, passou a detestar a Rússia e os Estados Unidos em igual medida. Concentrou seus esforços em restaurar a dignidade dos humildes na literatura sem romantizar sua figura, como forma de respeito às suas histórias e tribulações.
Ele levou mais do que meia página para contar a verdade inconveniente do seu tempo, travestida nas andanças e nos infortúnios de seus andarilhos e bêbados. Naquele tempo, boa parte da Europa dormia sob os mesmos jornais que aqueciam o mendigo Andreas. Para eles Joseph Roth escrevia.
::: A lenda do santo beberrão :::
::: Joseph Roth (trad. Mario Frungillo) :::
::: Estação Liberdade, 2013, 84 páginas :::
::: Hotel Savoy :::
::: Joseph Roth (trad. Silvia Bittencourt) :::
::: Estação Liberdade, 2013, 184 páginas :::
Douglas Marques
Psicólogo curitibano, atua junto a migrantes e refugiados. Também se refugia, mas nos livros. Está concluindo especialização em antropologia cultural.
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